Cinema, realidade dilacerada e tempo fragmentado

19 jun 2015 . 18:15

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Bêbado, trôpego e com a barba por fazer, o poeta Charles Serking dirige-se a uma plateia de estudantes – aos quais supostamente palestrava – e enfatiza que o fundamental é ter estilo.

Esta é uma cena do filme Crônica de um amor louco (1981), de Marco Ferreri, baseado em contos do escritor Charles Bukowski, que retratam o submundo de Los Angeles.

O fundamental é ter estilo! Na boca de um escritor maldito e marginal, esta frase – no começo dos anos 80 – soou como um programa, prenúncio de um estilo de vida onde a arrogância e a alienação yuppies seriam a tônica. A arte como estilo de vida, a estetização da existência, a busca frenética do prazer e a sacralização do consumo (de luxo, obviamente) elevada a meta suprema da existência humana!. O cinema foi um porta-voz privilegiado desse ponto de vista, ilustrado por filmes tão díspares como Nove e meia semanas de amor, de Adrian Lyne, ou Sid and Nancy, de Alex Cox (ambos de 1986).

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Foi no cinema, também, que ocorreu o questionamento dessa estética, fechando brilhantemente a década. Filmes como o badalado Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders; Sociedade dos poetas mortos, de Peter Weir; Sexo, mentiras e vídeo-tape, de Steven Soderbergh; Campo dos Sonhos, de Phil Alden Robinson (todos de 1989) – entre outros – trataram da temática da condição humana no mundo moderno.

“Arte do século”, segundo Lênin – que via nele um poderoso instrumento para a educação popular – o cinema é também “psicanálise de massa”, para o francês Félix Guatari. Ele capta a inquietação das pessoas e a domestica, impedindo-a de ameaçar o sistema social dominante.

Cinema como fator de elevação cultural do povo, de libertação, ou sinônimo de evasão, de alienação?

A obra de arte enquanto instrumento de conhecimento pode ser encarada sob duas formas fundamentais. Uma delas vê a arte como reflexo de problemas que estão no homem e no mundo, e que afetam a vida humana. Outra a encara como forma de contato místico com uma realidade essencial situada além do mundo físico, inacessível aos sentidos e ao conhecimento racional.

A primeira forma, a arte como conhecimento objetivo, racional, do mundo e seus problemas, amplia, diversifica, cristaliza e generaliza a experiência humana. Seu tema são as múltiplas faces da vida do homem no mundo, a reflexão sobre elas e a possibilidade de transmiti-las para outros homens, distantes no espaço e no tempo. Encara o futuro como o campo de florescimento de suas teses e o mundo como uma realidade plástica e moldável, sujeita aos desígnios humanos. Por isso, necessariamente, é também uma arte que toma o partido do progresso e da evolução das relações entre os homens, trabalhando pela superação de formas antiquadas de organização da vida.

A arte como forma de contato suprassensível com uma realidade intangível aos sentidos está, ao contrário, intimamente ligada à fuga do mundo real, à renúncia à ação para transformá-lo, à negação do conhecimento objetivo e sua utilidade. Valorizando o inconsciente, o irracional, as sensações. Troca a atividade intelectual consciente pela intuição, e o conhecimento derivado do uso da razão e da investigação dos processos reais é abandonada em proveito da introspecção, da experiência interior, da iluminação mística. Intimamente ligada à impotência social e política, a estetização da vida aparece nos momentos em que a sociedade parece romper-se de alto a baixo, ameaçando os privilégios da elite. Liga-se assim às várias formas de autoritarismo e conspirações antidemocráticas que abundam na história humana.

O historiador Carl Schoske, escrevendo sobre a Viena do final do século XIX, mostrou como a burguesia austríaca passou a encarar a arte como uma “válvula de escape, um refúgio fora do desagradável mundo da realidade política cada vez mais ameaçadora”. A consequência foi a estetização da vida, a defesa da arte pela arte e do belo como um programa existencial, e a valorização do misticismo e da intuição em lugar da atividade racional consciente. “A vida da arte se tornou um sucedâneo da vida de ação”, diz ele.

A francesa Simone de Beauvoir relata coisa parecida em seu livro O pensamento de direita hoje, publicado no Brasil em 1967. Ela cita o desabafo de Drieu la Rochelle, um escritor de direita, falecido em 1945: “não sei amar. O amor à beleza é um pretexto para odiar os homens”. Essas palavras, diz Beauvoir, confirmam o que Sartre já havia denunciado na peça Saint Genet: “o esteticismo não procede, de modo algum, de um amor incondicional ao belo; nasce do ressentimento”. Concluindo, a escritora diz que a visão estética da vida é uma arma que muitos usam para justificar a ordem estabelecida e, simultaneamente, para se permitir desprezar aqueles que esta ordem oprime e massacra.

O esteticismo narcisista e alienado teve grande expressão na década de 1980, impondo-se através da cultura pessimista cujo lema é viver o presente, o aqui-e-agora – a cultura descartável, sem ideias, sem ligação crítica com o passado nem responsabilidade pelo futuro que, a pretexto de uma suposta democratização, iguala indistintamente todas as formas de manifestação do espírito humano. Tudo é cultura, diz seu lema. Assim, um filme publicitário passa a ter o mesmo valor que uma obra de Michelangelo.

Se Freud tem razão ao dizer que “o poeta nos permite desfrutar nossas próprias fantasias, sem censura nem pudor”, o papel da arte vai além do meramente educativo. Não se limita à difusão de teses e estilos de vida. Ao atender a exigências psíquicas individuais, a cultura alimenta as fantasias que ajudam a estruturar a personalidade, as formas de sentir e de pensar de cada um de nós. Em nosso tempo, a arte baseada em imagens em movimento (o cinema, a telenovela, a televisão, o videoclip) dominam a cultura de massas. Nas modernas sociedades capitalistas o imperativo de se viver o presente traduz-se numa incapacidade profunda de se pensar o passado e o futuro como partes do mesmo processo que flui no “aqui-e-agora”.

A destruição da perspectiva histórica dá lugar à incapacidade de compreensão do presente como parte de um processo cujas raízes estão na experiência humana vivida e compartilhada coletivamente. A realidade é transformada em imagens dilaceradas e o tempo é fragmentado numa série de presentes perpétuos, uma contínua “mudança que apaga aquelas tradições que as formações sociais anteriores, de uma maneira ou de outra, tiveram de preservar”, diz o crítico norte-americano da cultura contemporânea Fredric Jameson. Na arte essa realidade se traduz em pessimismo, desagregação e dissipação.

Sid and Nancy (1986) conta a trágica história do criador da banda punk Sex Pistols, Sid Vicious, e sua namorada, Nancy Spungen;cinema-12 The wall (1982) leva o inconformismo adolescente ao paroxismo na obra da banda de rock Pink Floyd. Filmes como estes mostram o lado doloroso, dessa realidade. A impotência perante a história revela-se também na nostalgia – uma forma de recriação acrílica, indolor, de um passado encarado sem conexão com o presente.

O escritor Sérgio Paulo Rouanet lembra, por exemplo, como a cinefilia recupera e confere estatuto de grande arte a filmes como Casablanca (1942), que é, na verdade, uma banal história de amor e guerra dirigida por Michael Curtiz. A indústria cultural moderna, diz Rouanet, atende à ”fantasias materiais de riqueza, fantasias eróticas de amor sentimental ou adultérios elegantes”, etc. Tanto a elite como o povo não estão isentos destas fantasias. Contudo, o intelectual, o membro da elite, não consome o mesmo tipo de produção artística que o povo – mas também nem sempre é servido pela alta cultura contemporânea, que “não oferece um campo muito fértil para o imaginário”. Assim, filmes como Casablanca socorrem essa expectativa de consumo elitista. Ao recorrer a “uma cultura de massas fóssil”, o intelectual de classe média “transforma-a em cultura erudita. Enfeita a obra com uma aura apócrifa”, tornando-a aceitável para um público culto.

“Para as moças operárias, o horóscopo e a fotonovela; para o intelectual, Casablanca. As aparências são salvas, e as hierarquias sociais também”, diz Rouanet.

No final da década de 1980, essa tematização oca do passado parecia esvair-se. A história, a reflexão sobre as relações pessoais, pareciam voltar aos filmes mais valorizados. Em Campo dos sonhos, Ray Kinsella acerta as contas com os fantasmas de seu passado – o pai, as figuras míticas do esporte e da política. Ao mesmo tempo revaloriza o sonho utópico de uma vida melhor: contra a lógica yuppie de sucesso material e financeiro individual como caminho para a felicidade, Ray Kinsella aponta a larga estrada frequentada pelas multidões. Porém, limitado pelo programa liberal subjacente à sua crítica, mistura valores patrióticos norte-americanos tradicionais com o espírito da contracultura dos anos 1960, e não consegue mais do que uma metáfora descontente com o presente.

cinema-13Sociedade dos poetas mortos ressente-se dessa mesma limitação. A ressonância de poetas como o latino Horácio e o norte-americano Walt Whitman, e de pensadores como os norte-americanos Henry Thoreau e Thomas Jefferson, fazem de John Keating – o poeta-professor que encantou multidões – uma espécie de precursor dos hippies (o filme se passa nos anos 1950) e avô dos yuppies dos anos 1980. “Vive o dia de hoje”, diz o Carpe diem de Horácio, amiúde citado no filme. “Vive o dia de hoje. Capture-o / não confie no incerto amanhã”.

Keating faz seus alunos descobrirem na poesia a “essência da vida” e a forma de deixar registrado seu próprio verso neste longo poema que é a história humana. Isto é, prega a estetização da vida, ao mesmo tempo em que critica o saber alienado. O conhecimento pelo conhecimento não basta, é preciso a descoberta de algo em torno do que organizar a vida.

A ideologia liberal se trai aqui ao indicar que é dentro de cada um de nós, nas profundezas solitárias do nosso coração, que essa descoberta pode acontecer. A saída é individual, e não coletiva – coletiva é apenas a revolta estéril, passiva e meramente defensiva, onde o grupo protesta contra o fechamento desse caminho de florescimento individual. A poesia é transformada no recurso para formar bons médicos, advogados, executivos – que sejam ao mesmo tempo homens sensíveis e críticos.

Como os hippies dos anos 60, cuja crítica social traduziu-se em viagens individuais através da mente que os levaram à margem da vida coletiva, a um arremedo de sociedade alternativa cujo fôlego foi mais curto do que a década que os viu nascer, e cuja bandeira – o pleno desenvolvimento individual, o cada-um-na-sua – floresceu na geração seguinte, nos suntuosos escritórios de Wall Street; nos yuppies conservadores, integrados socialmente, narcísicos, dedicados a viver intensamente suas vidas, sem riscos desnecessários e sem limites éticos ou morais. John, o protagonista de Nove e meia semanas de amor bem poderia ser filho de um dos alunos de John Keating…

Asas do Desejo, Sexo, mentiras e video-tape e Teoremacinema-14

A exposição mais acabada e brilhante das teses que predominaram nos anos 80 no cinema aparece em Asas do Desejo (1987), que se beneficia da rica tradição filosófica alemã e a ilustra de maneira poética. Particularmente o pensamento de Martin Heidegger, um servidor do nazismo, um dos fundadores do existencialismo, e pensador que procurou dar novos fundamentos ao idealismo contemporâneo.

Asas do Desejo bebe nas fontes desse pensamento que transforma a filosofia numa atividade radicalmente subjetiva e prega a união mística com o sagrado, o divino, os deuses. Segundo a qual só os poetas, os artistas, os loucos, os místicos, as crianças, os que renunciam ao uso da razão, são capazes da “abertura” que leva ao conhecimento verdadeiro, autêntico, transcendental. Os anjos de Wim Wenders habitam nessa esfera situada além dos sentidos humanos – uma realidade sem tempo nem história, cinzenta e tediosa, onde não existem sensações, descobertas, riscos.

Fora do tempo, os anjos vivem um presente perpétuo. Portadores de um conhecimento total e absoluto, são incapazes de interferir no curso da vida humana cuja imensa e variada manifestação acompanham. Apenas as crianças, os artistas, os anciãos, sentem sua presença diáfana e incomunicável. A esfera dos anjos é a esfera da espiritualidade e do conhecimento – da teoria, poder-se-ia dizer.
Os humanos, por sua vez, estão presos à esfera da transitoriedade da vida, que é compensada pela possibilidade de vivê-la intensamente, vida cuja riqueza e colorido resultam do permanente confronto das vontades individuais, do risco, do esforço necessário para garantir a sobrevivência. Mas é também a esfera da alienação, da irrisão, da perda de sentido da vida, da solidão e do sentimento de abandono.

Outro tema da filosofia existencialista presente em Asas do desejo é a contraposição entre a vida e a inteligência, a teoria e a prática.
A teoria é cinza, e verde-ouro a árvore da vida, escreveu Goethe há mais de duzentos anos. Uma interpretação equívoca dessa frase perpassa o pensamento que, a pretexto de valorizar a espontaneidade de todos os fatos da vida, mesmo os menores e mais corriqueiros, dilui toda consideração moral ou ética, iguala todos os comportamentos e vontades, e legitima a busca de satisfação para todos os desejos.

A liberdade e a felicidade se resumiriam, assim, em viver, em deixar a vida florescer – um pensamento extremamente adequado às necessidades das forças dominantes em nossa época. Asas do desejo não cai na armadilha existencialista mas; contraditoriamente, contrasta com esse pensamento ao sugerir que a saída para a vida humana não é meramente individual, mas está no encontro com um outro que nos complete. Ela transparece no encontro entre Marion, a trapezista, e Damiel, o anjo que quis se tornar homem. Da mesma forma que os poéticos anjos de Wim Wenders, a prosaica epopeia de dois casais foge do beco sem saída do pessimismo em cinema-15Sexo, mentiras e video-tape.

Criticando sutilmente a doença consumista da psicanálise, também vê no encontro, no diálogo aberto e franco, a saída do atoleiro existencial que aflige tanta gente em nosso tempo. A temática do anjo, da aparição repentina de alguém que desestrutura a vida anterior, se repete aqui. Só que Graham, o “anjo” de Sexo, mentiras e video-tape está na linhagem do “anjo” que Terence Stamp encarnou em Teorema, de Pier Paolo Pasolini (1969): um anjo terrível, não-conformista, profundamente humano e humanizador, ao contrário dos anjos de Wim Wenders, que se humanizam.

O tema de Sexo, mentiras e video-tape é a intrincada rede emocional que envolve quatro pessoas. Emoção que foi tão louvada, transformada em eixo estrutural de certos pensamentos, que fez do cinema uma autêntica psicanálise de massas. A estética burguesa de nosso tempo – tempo de predomínio das multinacionais e da retórica cultural que cria o consenso necessário para a organização da sociedade de acordo com os interesses do imperialismo e seus aliados – insiste na emoção como traço essencial da arte e do pensamento.

Não há novidade aqui, porém. Desde tempos imemoriais os homens discutem o papel da emoção e sua relação com a razão na criação de obras do pensamento. Bertolt Brecht, o maior dramaturgo marxista, ressaltou a importância da unidade razão-emoção e recusou em sua arte toda emoção que levasse à ignorância ou que fosse produto da ignorância, explica o teatrólogo brasileiro Augusto Boal.

Ernest Fischer, pensador marxista austríaco, acrescenta: “O poeta é o descobridor da experiência; através dele, outros aprendem a reconhecê-la como experiência também deles e, por meio da expressão que ela afinal encontrou, chegam a assimilá-la”. Definindo a arte como “o meio de tornar-se um com o todo da realidade, como o caminho do indivíduo para a plenitude”, Fischer enfatizou também a união entre razão, emoção e memória:

“Para conseguir ser um artista, é necessário dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção, para um artista, não é tudo; ele precisa também saber tratá-la, transmití-la, precisa conhecer todas as regras, técnicas, recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e sujeita à concentração da arte. A paixão que consome o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista não é possuído pela besta-fera, mas doma-a”.

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Um pensamento semelhante ao de Steven Soderberg, diretor de  Sexo, mentiras e video-tape: “a gente precisa ultrapassar três fases na expressão artística, seja ela qual for. Na primeira, você imita seus ídolos; na segunda, você começa a pesquisar, a refletir sobre seus sentimentos e ideias, e para de imitar os outros; na terceira, você usa suas emoções e sentimentos, sua experiência, e cria uma ficção que expressa o que você é”, diz ele.

A arte – e o cinema – percorre caminhos equívocos em nosso tempo, que levam à introspecção, à intuição, ao misticismo, ao indivíduo voltado sobre si próprio. A saída para nossos problemas está em nossa subjetividade, dizem. Alguns artistas, porém, não se conformam com isso. Propõe o rompimento do individualismo compreendendo que ele não é a expressão da individualidade, mas sufoca-a. Procuram o pleno desenvolvimento da individualidade no mundo, no contato com outros homens.

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“A arte é o homem somado à natureza”, escreveu certa vez Van Gogh. “É a ação de romper uma passagem num muro de ferro invisível que parece encontrar-se entre o que se sente e o que é possível”, escreveu em outra ocasião. Uma passagem para a comunicação com os outros homens. Longe de janela aberta para uma realidade transcendental – como querem os místicos e irracionalistas de todos os matizes – a arte propicia uma ligação profunda entre todos os homens, generaliza e partilha suas experiências, registra sua vida e o esforço de resolver os problemas que ela coloca.

Ao fazê-lo, eleva a compreensão das relações humanas de todas as espécies e articula sua comunicação com os semelhantes. Contra os que querem a arte como um meio de comunicação com o divino e um suposto suprassensorial, a arte aparece aqui como janela para o mundo, como a mais valiosa forma de comunicação entre os homens.

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José Carlos Ruy é jornalista

Série de textos publicada no jornal A Classe Operária de 31/08/ a 13/09/1990.

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