Ditadura militar: miséria, violência, resistência e decadência

30 jul 2019 . 12:39

Na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964 iniciava-se, no Brasil, um período de atraso político e desigualdade social que durou por 21 anos, submetendo o País ao mais longo período de exceção de sua história republicana

Por Carolina Maria Ruy

Desde que assumiu a Presidência da República, em setembro de 1961, João Goulart exerceu uma gestão marcada pela sombra de um golpe. Em seu governo, Jango se aproximou dos movimentos sociais criando condições para o crescimento do movimento sindical. Tanto que, durante sua Presidência, foi criado o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), formado, sobretudo, pelos comunistas ligados ao PCB e pelos trabalhistas ligados ao antigo PTB.

Mas, apesar dessa sua postura, Jango não era socialista. Delineado nas chamadas Reformas de Base, o projeto de Jango incluía apoiar pequenos capitalistas, o que geraria uma relativa quebra de monopólios.

A ameaça ao poder do grande capital, entretanto, não apenas incomodou a elite brasileira, que viu a possibilidade de perder seu sistema de privilégio, como também, e principalmente, dado o contexto dual da Guerra Fria (capitalismo versus comunismo), fez com que os Estados Unidos da América encarassem a condução do governo brasileiro como uma afronta aos seus interesses políticos, sociais e econômicos.

Revolta dos marinheiros

Em março de 1964 a situação caminhava para decisões extremas. O famoso Comício da Central do Brasil, na capital fluminense, no dia 13 de março, a revolta dos marinheiros da Marinha do Brasil, em 25 de março, e a palestra que Jango realizou, em 30 de março de 1964, no automóvel Clube do Rio de Janeiro, foram tentativas do presidente em estabelecer uma rede de apoio.

Mas a manipulação estadunidense o deixou de mãos atadas. Além de ter bancado campanhas eleitorais de políticos simpáticos a sua economia, e uma intensa campanha anticomunista na grande imprensa, os EUA orientaram deliberadamente militares brasileiros a promover o golpe, posicionando uma divisão da Marinha dos Estados Unidos, a Quarta Frota, em direção ao Brasil, caso Jango resistisse e houvesse a necessidade de intervir militarmente.

A data estabelecida para o golpe foi quatro abril de 1964. Poucos dias antes, contudo, em 31 de março, o general Olímpio Mourão Filho, comandante do IV Exército, resolveu se antecipar, partindo com suas tropas de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro às três horas da manhã. Desta forma, em 1º de abril de 1964, uma reunião entre Armando de Moraes Ancora, comandante do I Exército, e Amauri Kruel, comandante do II Exército, com a presença do general Emílio Garrastazu Médici, decidiu pela união das tropasna deflagração do golpe.

Apesar da pressão do Exército, foi no Congresso Nacional que o golpe se efetivou. Auro Soares de Moura Andrade, presidente do Senado, declarou vaga a Presidência do Brasil, apesar de João Goulart estar no País em plena vigência do mandato. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, foi empossado como presidente provisório. Atraso político Naquela madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964 iniciava-se, no Brasil, um período de atraso político e desigualdade social que perdurou por 21 anos, submetendo o País ao mais longo período de exceção de sua história republicana.

O famigerado Ato Institucional nº 5

É consenso entre políticos, jornalistas, intelectuais e demais interessados na história do nosso País que o quinto Ato Institucional decretado pelos militares marcou o período mais duro da ditadura de 1964. Consenso também é que a reação do governo perante a intensificação dos movimentos de resistência ao regime – em especial as guerrilhas armadas, a guerrilha do Araguaia e as greves de Contagem e de Osasco – sinalizava para o endurecimento da política.

O AI-5, decretado pelo presidente marechal Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, inaugurou uma série de Atos Institucionais que fecharam cada vez mais o governo, e deram poderes cada vez mais absolutos para o Executivo.

Basta constatar que os quatro primeiros Atos – que viabilizaram a instituição do regime militar – promoveram a perseguição política a instituições e pessoas de perfis divergentes àquele pregado pelos militares, e impuseram uma nova Constituição, pautada pela Constituição fascista de 1937 – foram decretados entre abril de 1964 e dezembro de 1966 –, em 31 meses, e os outros treze Atos Institucionais foram decretados entre dezembro de 1968 e outubro de 1969 – em 10 meses.

Em dezembro de 1968 a conjuntura política brasileira era tensa. Além dos movimentos sociais que se manifestavam contra o golpe, já começavam a surgir pelo País comitês pela Anistia aos presos políticos. E o governo, comandado por aqueles que eram considerados “a linha dura” até mesmo dentro do regime, não aceitava nenhum tipo de oposição, mostrando-se disposto a usar toda sua força para aniquilá-la.

Foi o que aconteceu no episódio em que o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, proferiu um discurso, na Câmara dos Deputados, no dia 2 de setembro aquele ano. Moreira Alves lançou um apelo para que o povo não participasse dos desfiles militares de 7 de setembro, chamou os quartéis militares de “covis de torturadores” entre outras coisas. Sua manifestação de repúdio foi endossada por outro deputado do MDB, Hermano Alves, que naquele mesmo período escreveu uma série de artigos no Correio da Manhã considerados provocadores.

Considerando tais demonstrações ofensivas o governo iniciou um processo para cassar os dois deputados. Entretanto, eles não haviam infringido a Lei, e a  possibilidade da cassação gerou uma tensão política que se desenrolou até o dia 12 de dezembro, quando a Câmara recusou (com colaboração de políticos da própria Arena) o pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves.

A recusa deixou a cúpula do governo de mãos atadas. Mas no dia seguinte eles dariam o xeque-mate, promulgando o Ato Institucional número 5, que autorizava o presidente da República, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a uma série de ações arbitrárias, como cassar mandatos parlamentares, suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão, decretar o confisco de bens considerados ilícitos e suspender a garantia do habeas-corpus.

No mesmo dia foi decretado o recesso do Congresso Nacional, que só seria reaberto em outubro de 1969, para referendar a escolha do general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência da República.

No fim de dezembro de 1968, 11 deputados federais foram cassados, entre eles Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. A lista de cassações aumentou em janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal.

Com isto sindicalistas, estudantes e todo tipo de ativista de esquerda foram perseguidos, presos, ou entraram para a clandestinidade.

Brasil, Osasco, SP, 18/07/1968. Policiais da Força Pública fazem a guarda na frente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, onde estão líderes sindicais, um dia após a intervenção de força para desocupar greve nas empresas Lonaflex e Cobrasma. Pasta: 46.600 – Crédito:ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/Codigo imagem:109245

O famigerado AI-5 só seria revogado dez anos depois, no dia 13 de outubro de 1978 (através de uma emenda constitucional que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1979), pelo presidente Ernesto Geisel. Através de uma política de distensão paulatina do regime, Geisel revogou os Atos Institucionais e complementares que iam contra à Constituição Federal1. Com isso ele conseguiu fazer seu sucessor: João Batista Figueiredo, o último general presidente. Figueiredo substituiu Geisel em meio a uma crescente crise econômica acompanhada por uma onda de reivindicações trabalhistas.

O início da decadência

Desde o golpe de 1964, o governo militar foi permeado por uma tensão entre duas visões hegemônicas acerca da política nacional. Tanto que, quando o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência, em março de 1974, sinalizando um relativo afrouxamento político, expoentes da chamada “linha dura” do regime ficaram contrariados.

Mas, embora Geisel integrasse um grupo mais liberal entre os militares, a intenção em promover a abertura “lenta e gradual” não foi o que o levou ao Planalto. Pelo contrário, o contexto econômico e político nacional, e, sobretudo, internacional, empurravam a linha dura do regime para o fundo do poço.

Isto porque, em primeiro lugar, o milagre econômico, iniciado em 1969, que apesar de não romper com a desigualdade social, sustentava a ideia de que o Brasil era uma potência em desenvolvimento, chegava ao fim.

Em segundo lugar, nas eleições de 1974 o MDB, partido de oposição ao  governo, ganhou espaço conquistando 59% dos votos para o Senado, 48% da Câmara dos Deputados e a prefeitura da maioria das cidades.

Em terceiro lugar, esta distensão se deu pela pressão social contra as arbitrariedades ocorridas, sobretudo após o AI-5, de dezembro de 1968.

E, em quarto lugar, este processo foi cercado de interesses escusos, que já apontavam para um novo sistema econômico, incompatível com a rigidez política empreendida até aqui.

Geisel venceu a parada sem que, no entanto, parassem com os assassinatos. E iniciou a abertura lenta, gradual e segura, que o jornalista Emiliano José, chamou de “transição pactuada, marcada por prisões, torturas e desaparecimentos” (O silêncio dos inocentes – revista Teoria e Debate nº 110).

As mortes sob tortura do estudante Alexandre Vannucchi Leme, em 1973, e do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, nas dependências do II Exército,  mobilizaram milhares de civis, marcando um momento de repúdio social em relação ao regime. As cerimônias em torno do enterro do metalúrgico Manuel Fiel Filho, em 1976, assassinado sob as mesmas circunstâncias, por outro lado, não mobilizaram multidões, mas tiveram desdobramentos políticos decisivos.

O assassinato, injustificável até mesmo entre os agentes da repressão, de Fiel filho, levou Geisel a exonerar o comandante do II Exército, responsável pelo DOI-CODI paulista, Ednardo D’Ávila Mello, lançando-se ao primeiro choque frontal com um chefe militar. Em sua série sobre a ditadura militar, o jornalista Elio Gaspari enfatiza a contrariedade de Geisel, demonstrando como esta decisão marcou uma divergência dentro do governo:

Foi ao choque sem deixar espaço para negociação, nem mesmo para salvar as aparências. Sumária, a demissão negou a Ednardo o direito de argumentar que passara o fim de semana fora de São Paulo. Imediatamente foi estabelecida uma relação de causa e efeito com a morte do operário. (…) O regime acumulara em torno de trezentos mortos e cerca de seis mil denúncias de tortura. Mas, na noite de 18 de janeiro de 1976, o problema do general Ernesto Geisel relacionara-se com a disciplina militar, não com os direitos humanos. (Gaspari –A ditadura encurralada, Companhia das Letras, 2004).

Ednardo trocou de cargo com Dilermando Gomes Monteiro, que era chefe do Departamento de Ensino e Pesquisa, sem grandes alardes na imprensa. Tal cautela mascarava uma crise de grandes proporções que se abatera sobre o governo militar. Crise que chegaria ao ápice com a demissão do próprio ministro do Exército, Sylvio Frota, em 12 de outubro de 1977.

Expoente da linha dura do regime, Frota, que ambicionava ocupar a cadeira de presidente, foi substituído pelo general Fernando Belfort Bethlem, então comandante do III Exército. Foi o sinal definitivo de que a linha dura entrara em decadência.

A greve geral de 1983

Entre o fim da década de 1970 e o início da de 1980 o movimento social ressurgiria com força, resgatando, no sindicalismo, o legado das greves de metalúrgicos de Contagem (MG) e de Osasco (SP) de 1968.

As greves por reposição salarial deflagradas após a denúncia do Dieese sobre a manipulação, pelo governo federal, dos índices oficiais da inflação de 1973, desencadearam um processo grevista que se repetiu em 1978, 1979 e 1980. A nova realidade que se abria no horizonte mostrava-se cada vez mais forte. Assim, em 1981 realizou-se a 1ª Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat) e em 1983 ocorreu a primeira greve geral sob a ditadura militar, contra pacotes econômicos, impostos pelo FMI, que apertariam ainda mais a economia nacional, com a paralisação de cerca de três milhões de trabalhadores.

Aquela greve se deu em um contexto marcado pelos sintomas da eleição do presidente norte-americano Ronald Reagan, em 1981, que, de mãos dadas com a primeira ministra britânica, Margareth Thatcher (eleita em 1979), orquestrou uma política econômica internacional calcada no estado mínimo e na austeridade fiscal, elevando brutalmente os juros internacionais.

No Brasil, a economia entrou em colapso e, em 1982, o governo militar recorreu aos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI), que impôs severas condições para efetuar a transação. Subordinado ao FMI, o País teve que mudar as regras para a política salarial, ajustando os vencimentos abaixo da inflação e, para os gastos do governo, minimizando os investimentos na área social.

A elevação do desemprego e do custo de vida foram as consequências imediatas. E a imposição de uma série de decretos pioraria ainda mais a vida dos trabalhadores.

Após a divulgação do decreto 2025, de 30 de maio de 1983, que eliminava benefícios e direitos dos empregados das estatais e do funcionalismo público, os trabalhadores aprovaram, no dia 16 de junho, o estado de greve.

O governo militar chegou a recuar de sua decisão. Treze dias depois, entretanto, o presidente Figueiredo assinou um novo Decreto, o 2036, que retirou direitos elementares do funcionalismo, como abono de férias, promoções, auxílios alimentação e transporte, salário adicional anual e a participação nos lucros.

Manifestações contra as medidas se espalhavam pelo País. Mas, mais um decreto ainda estava por vir: o famigerado 2045, de 14 de julho de 1983, que arrochou ainda mais os salários e atingiu os aluguéis e o Sistema Financeiro da Habitação (SFH).

Seguiu-se daí uma grande mobilização entre os trabalhadores, que se prepararam para a greve. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo distribuiu um milhão de panfletos convocando os trabalhadores para a paralisação, e a Comissão Pró-CUT do Estado de São Paulo anunciou a distribuição de 1,2 milhão de comunicados com a seguinte pauta de reivindicações:

• Fim das intervenções e devolução dos sindicatos de Campinas, Bahia e São Bernardo.
• Fora o pacote das estatais – Decreto-lei 2036.
• Fim do roubo no INPC – contra os Decretos do arrocho 2012, 2014 e 2045.
• Revogação do Pacote do BNH.
• Congelamento dos preços dos itens de primeira necessidade.
• Criação de empregos e de salário desemprego.
• Estabilidade.
• Redução da jornada de trabalho sem redução dos salários.
• Reforma agrária.
• Fora o FMI.

Uma semana depois da decretação do 2045, cerca de três milhões de trabalhadores, de diversas categorias e Estados, paralisaram suas atividades na maior greve geral ocorrida durante o regime militar.

O dia 21 de julho de 1983, uma quinta-feira, amanheceu como um feriado. Entre os grevistas, a adesão de 255 motoristas e cobradores de ônibus reforçou ainda mais o clima de paralisação que dominava a cidade de São Paulo. E a cavalaria da Polícia Militar, que tomou o centro da cidade, promoveu uma intensa repressão, com mais de oitocentas prisões.

Apesar disto, os trabalhadores conseguiram derrubar os Decretos 2036 e 2045, e a greve foi considerada positiva.

O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo teve uma forte participação naquele movimento. “Metalúrgicos de São Paulo, Um Projeto, Um Processo, Uma Realidade”, documento publicado pelo Sindicato em dezembro de 1983, relata que 90% dos metalúrgicos da Capital aderiram à greve, e que todo esse processo de lutas contra os decretos levou a um expressivo aumento da participação dos trabalhadores nas assembleias.

Democracia em construção

Nos anos seguinte os trabalhadores organizados tiveram decisiva participação nas campanhas pelas Diretas Já!, na elaboração da Constituição Cidadã e na construção da democracia. O acalorado debate sobre a representação sindical, fomentado pela Conclat, resultou na criação de centrais sindicais CUT, em 1983, CGT, em 1986 e Força Sindical, em 1991.

Contudo, embora em 1985 a ditadura tenha chegado ao fim, ela deixou muitas sequelas. Além de ter aprofundado a dívida externa e, consequentemente, elevado os índices de inflação, os militares promoveram um profundo desfalque nos movimentos sociais.

Militantes e lideranças estratégicas para estes movimentos foram afastadas, isoladas ou mesmo assassinadas nos porões do DOI-CODI.

Passados 50 anos do golpe, a democracia brasileira ainda é um processo em construção. Vestígios da ditadura militar ainda pesam sobre a sociedade. Debatê-la não é debater o passado. Debatê-la é buscar compreender os entraves políticos, econômicos e sociais que se colocam como pedras no caminho do pleno avanço da nação.

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Carolina Maria Ruy é jornalista, coordenadora de projetos do Centro de Cultura e Memória Sindical

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