Primórdios da industrialização
O processo de industrialização do Brasil se tornou constante a partir da década de 1870 e a partir da década de 1890 o movimento operário brasileiro começou a ganhar forma. De caráter predominantemente anarcossindicalista, o movimento tendia para a ação direta e para a oposição à política institucional, uma vez que, segundo os princípios anarquistas, o poder político, em qualquer instância, atendia à manutenção do capitalismo.
Os programas sindicais eram fiéis ao modelo europeu, demasiadamente rígidos e esquemáticos. Isto era um problema na medida em que, no Brasil, o movimento operário nasceu em condições muito diferentes de seus tradicionais antecedentes do Velho Mundo.
Por exemplo, na Inglaterra, berço da Revolução Industrial do século XVIII, a população absorvida pela indústria consistia em massas que haviam sido expulsas dos campos pela nobreza, e já estavam incorporadas às cidades.
Muito diferente da experiência inglesa, as indústrias brasileiras, que começaram a dar sinais no século XIX, nasceram, segundo Carone, no espaço agrário, sofrendo os efeitos do seu habitat e contando com uma população que vivia e trabalhava nas fazendas. Mais do que isto, apesar de exigir do trabalhador novo comportamento no trabalho, a indústria não conseguiu romper, num primeiro momento, com as relações paternalistas que predominavam à época.
A grande dificuldade das incipientes organizações operárias era adequar o discurso teórico elaborado no contexto europeu à realidade de um país dominado por oligarquias fundiárias, em que a população urbana ocupava papel secundário, com uma burguesia inexpressiva e um proletariado mínimo, disperso em algumas poucas cidades.
A dificuldade era fazer uma leitura fiel da realidade brasileira, e interpretá-la à luz de teorias sociológicas e econômicas, ensejando discursos propositivos com os quais o povo brasileiro pudesse se identificar. Este descompasso se estendeu até a década de 1920, quando o perfil ideológico das organizações passaram para um novo plano.
Condições de trabalho
1850 a 1950:
Grosso modo três elementos caracterizaram as relações de trabalho nas fábricas têxteis até 1950:
1 – O emprego de mulheres e menores em grande escala: Os trabalhos feminino e infantil eram predominantes nas funções leves e menos técnicas. Segundo recenseamento de 1920 havia predomínio de mão de obra masculina e adulta nas funções: batedores e preparatórias para fiação (que demandam força), engomador, tintureiro, estampador e mecânico (que demandam técnica). Nos trabalhos de comando e controle do proletariado dentro da fábrica a mão de obra masculina adulta também era predominante.
Observa-se também uma grande desigualdade etária e de gênero com relação aos salários:
O homem adulto era o que ganhava mais.
A mulher adulta recebia em torno de 62% do salário do homem.
A menina, menor, recebia 40,5% do salário do home.
O menino, menor, 39%.
Isso explica o fato de a indústria contratar mão de obra infantil e feminina em grande escala.
De qualquer forma, em 1919, os rendimentos dos operários têxteis eram insuficientes para sobrevivência.
A maior parte das indústrias possuía uma jornada de oito horas diárias, com repouso aos domingos.
2 – As condições de trabalho e no interior da fábrica eram precárias: não havia ventilação, ocasionando uma alta concentração de poeiras e partículas. A iluminação era irregular. As instalações sanitárias eram, em sua maioria, sujas e fétidas. O espaço era pequeno. A ocorrência de mutilações era frequente.
Estas condições geraram revolta e movimentos operários.
Para conter os movimentos diversas leis foram criadas através da Comissão de Legislação Social da Câmara dos Deputados, como a Lei de Férias, de 1925, que garantia quinze dias de descanso remunerado, e o Código do Menor, de 1926, que proibia o trabalho de menores de quatorze anos e limitava a jornada para seis horas diárias, proibindo o trabalho noturno, para quem tinha entre quatorze e dezoito anos.
3 – A resistência da burguesia têxtil na concessão de benefícios mínimos para o proletariado:
Os burgueses têxteis paulistas, através de suas representações patronais: Centro dos Industriais de Fiação e Tecelagem de São Paulo, Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, Centro Industrial de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro), foram contrários às leis, considerando-as “impraticáveis”.
Contra o descanso anual de quinze dias argumentavam que:
“Diferentemente do trabalhador intelectual (comércio e escritório) o cérebro do operário, como trabalhador braçal, não dispende energia. Ninguém ignora que as pessoas submetidas a intenso esforço cerebral esgotam-se dentro de curto prazo e que os indivíduos acostumados a trabalho manual, intenso e repetido, mas cujo cérebro está habitualmente em repouso, dificilmente conhecerão esse esgotamento. Além disso, como o trabalhador intelectual tomou férias para repousar, repousará realmente em ambiente próprio ao descanso, pois o seu lar é acolhedor e amável. Voltará para o escritório com a sua psicologia inalterada, pois não saiu do seu habitat costumeiro. O proletariado, por sua vez, diferentemente tomará férias compelido por lei. Não as quis nunca, nunca teve necessidade real e inadiável, de um período de repouso para o revigoramento de suas forças que não se esgotam. Que fará um trabalhador braçal durante um ócio de quinze dias? O seu lar sem conforto não o prenderá. Seria forçado a matar as suas longas horas de inanição na rua transformando-se em um verdadeiro perigo social. (…) O trabalhador brasileiro aplica a sua atividade durante um horário suave e nas nossas fábricas não existe aquela disciplina férrea em que o operário é compelido a dar sempre o máximo possível de rendimento. Somos um povo sentimental e o operário trabalha como pode e não conhece ainda aquela febre de trabalho que caracteriza as usinas dos antigos países estrangeiros” (1).
Contra o Código de Menores argumentavam que “devido ao grande número de menores nas fábricas o Código desorganizaria completamente o setor”. Repetiam as mesmas ideias do perigo social, no caso da demissão em massa de menores “a imoralidade dominaria as ruas com a presença de tantas crianças inativas”. Alegavam que o trabalho do menor era “muito suave”. Por último, alertavam que os pais operários poderiam se revoltar, já que seus filhos eram fundamentais para a constituição da renda familiar (2).
Todas essas argumentações não tinham embasamento e visavam apenas esvaziar as leis sociais. A situação de trabalho era precária, o esforço era intenso e qualquer falta era descontada no salário. Além disso, os operários ansiavam pela Lei de Férias, como atesta a União dos Operários em Fábricas de Tecidos de São Paulo, que organizou ampla divulgação da Lei em 1931.
Apesar da pressão patronal o Governo manteve as leis citadas, ao menos até a Revolução de outubro de 1930 (Edgard Carone. A República Nova (1930 – 1937). 3ª Edição Ed Difel, SP, 1982).
Entretanto o governo e os industriais, em sua maioria, negligenciaram sua aplicação e fiscalização (3).
Início século 20
Com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, o Brasil tornou-se exportador de gêneros alimentícios aos países da Tríplice Entente (Reino Unido, a França e o Império Russo); essas exportações se aceleraram a partir de 1915, reduzindo a oferta de alimentos disponíveis para o consumo interno e provocando altas em seus preços. Entre 1914 e 1923, o salário havia subido 71% enquanto o custo de vida havia aumentado 189%; isso representava uma queda de dois terços no poder de compra dos salários. Para salário médio de um operário de cerca de 100 mil réis correspondia um consumo básico que para uma família com dois filhos atingia a 207 mil réis. O trabalho infantil era generalizado.
Não faltavam motivos para reivindicações por parte dos trabalhadores. Naquela época o custo de vida aumentava dia-a-dia, e os operários trabalhavam em média 14 horas diárias, sem férias, sem descanso semanal remunerado, sem nenhum tipo de assistência e toda a produção era vendida para a Europa, que estava em guerra.
1917
A greve mais importante naquele processo, foi a greve de 1917, a maior até então ocorrida no Brasil. Ela teve início em São Paulo, em julho, e espalhou-se pelo país como um vagalhão deixando marcas profundas na história operária e abrindo um período de greves revolucionárias que durou até 1919. Naquela época o operariado paulista se encontrava em uma situação de miséria.
E julho 1917 São Paulo foi cenário de um movimento que iria mudar os rumos do sindicalismo no Brasil. A greve iniciada em uma fábrica têxtil da capital paulista, conhecida como greve de 1917, foi considerada, pela historiografia como a primeira greve geral do Brasil. O movimento, que se expandiu por diversas categorias, chegou a contar com a participação de mais de quarenta mil trabalhadores. O Brasil nunca havia visto movimento popular de tão grande importância. Iniciado por uma corporação de tecelões, estendeu-se rapidamente e, em quatro dias, paralisou toda a vida da capital. Todas as classes laboriosas, espontaneamente ou arrastadas pela pressão coletiva nele tomaram parte.
Em 21 de julho de 1917 o jornal A Plebe, anarquista, publicou:
A greve geral de 1917 não pode, de maneira alguma, ser equiparada sob qualquer aspecto que seja examinada, com outros movimentos que posteriormente se verificaram como sendo manifestações do operariado. Isso não, absolutamente não! A greve geral de 1917 foi um movimento espontâneo do proletariado sem a interferência, direta ou indireta, de quem quer que seja. Foi uma manifestação explosiva, consequentemente de um longo período da vida tormentosa que então levava a classe trabalhadora. A carestia do indispensável à subsistência do povo trabalhador tinha como aliada a insuficiência dos ganhos; a possibilidade normal de legítimas reivindicações de indispensáveis melhorias de situação esbarrava com a sistemática reação policial; as organizações dos trabalhadores eram constantemente assaltadas e impedidas de funcionar; os postos policiais superlotavam-se de operários, cujas residências eram invadidas e devassadas; qualquer tentativa de reunião de trabalhadores provocava a intervenção brutal da Polícia. A reação imperava nas mais odiosas modalidades. O ambiente proletário era de incertezas, de sobressaltos, de angústias. A situação tornava-se insustentável (4).
José Martinez
Em 9 de julho, uma carga de cavalaria foi lançada contra os operários que protestavam na porta da fábrica Mariângela, no Brás resultou na morte do jovem anarquista espanhol José Martinez. Seu funeral atraiu uma multidão que atravessou a cidade acompanhando o corpo até o cemitério do Araçá onde foi sepultado. Indignados e já preparados para a greve os operários da indústria têxtil Cotonifício Crespi, com sede na Mooca entraram em greve, e logo foram seguidos por outras fábricas e bairros operários. Três dias depois mais de 70 mil trabalhadores já aderiram a greve. Armazéns foram saqueados, bondes e outros veículos foram incendiados e barricadas foram erguidas em meio às ruas.
Segundo o anarquista Edgard Leuenroth, um dos líderes da greve:
“O enterro dessa vítima da reação foi uma das mais impressionantes demonstrações populares até então verificadas em São Paulo. Partindo o féretro da Rua Caetano Pinto, no Brás, estendeu-se o cortejo, como um oceano humano, por toda a avenida Rangel Pestana até a então Ladeira do Carmo em caminho da Cidade, sob um silencio impressionante, que assumiu o aspecto de uma advertência. Foram percorridas as principais ruas do centro. Debalde a Policia cercava os encontros de ruas. A multidão ia rompendo todos os cordões, prosseguindo sua impetuosa marca até o cemitério. À beira da sepultura revezaram os oradores, em indignadas manifestações de repulsa à reação. No regresso do cemitério, uma parte da multidão reuniu-se em comício na Praça da Sé; a outra parte desceu para o Brás, até à rua Caetano Pinto, onde, em frente à casa da família do operário assassinado, foi realizado outro comício.”
A greve de 1917 teve grande adesão
Em Campinas – O operariado campineiro resolveu declarar-se em greve e reivindicar aumento salarial de 20% a partir do dia 16 de julho. Nesse dia, por volta das 13hs, operários da Companhia Mogyana, Mac Hardy e Lidgerwood, numa grande massa, percorreram as ruas da cidade. Dois deles foram presos. No trajeto muitos outros operários aderiram ao movimento. Em Santos – operários das construções civis, de pedras e granitos, aderiram no dia 15. Um comício foi realizado em frente a sede da União Geral dos Trabalhadores, na Rua Braz Cubas, 375. Os grevistas reivindicavam aumento salarial, jornada de oito horas diárias, entre outras coisas. Em Sorocada – Na manhã do dia 16, cerca de cinco mil operários entraram em greve. A tarde esse número chegou a oito mil. Muitas mulheres participaram do movimento. Em Piracicaba – no dia 16 e 17 observou-se forte movimento que paralisou a cidade. Em São Roque, em Jundiaí, em São Caetano, em Limeira e até mesmo no Rio de Janeiro, através da Federação Operária do Rio de Janeiro, se solidarizou aos operários da capital paulista.
Categorias envolvidas
Têxteis, metalúrgicos, gráficos, transportes coletivos, construção civil, vidreiros, carroceiros, lixeiros, fósforos, moagem, calçados, alimentos, cerâmica e alfaiates.
Além da capital, ocorreram paralisações em Campinas, Sorocaba, Jundiaí, Ribeirão Preto, Santos, Rio Claro e São Carlos.
Reivindicações
Jornada de 8 horas/diárias e semana inglesa (trabalho aos sábados somente pela manhã);
Aumento de, no mínimo, 25%;
Aumento de 50% para trabalho extraordinário;
Pagamentos efetuados a cada 15 dias – sem atrasos;
Regulamentação do trabalho, legislação para o menor;
Reconhecimento do direito de associação dos operários;
Liberdade para os detidos na greve.
Descanso semanal (ainda sem remuneração).
Comitê de Defesa Proletária
A situação entre os operários e os patrões ficou insustentável e, para chegar a alguma solução houve a intermediação de jornalistas, organizados no Comitê de Defesa Proletária. Segundo Pedro Lucas Marques Lourenço:
“Na primeira reunião foi examinado o memorial das reivindicações dos trabalhadores, apresentado pelo Comitê de Defesa Proletária, que a comissão de jornalistas estava encarregada de levar ao governo do Estado. A segunda reunião teve o seu início retardado, em virtude da prisão de dois dos membros do comitê de Defesa Proletária ao saírem da redação, após a primeira reunião. Os entendimentos seriam rompidos se esses dois elementos não fossem imediatamente postos em liberdade. Essa resolução foi transmitida ao presidente do Estado. A exigência foi atendida, os elementos levados à redação, e a reunião pôde ser realizada com breve duração, pois o governo ainda não havia entregue a sua resolução. A resolução da concessão das reivindicações dos trabalhadores foi dada por intermédio da Comissão de Jornalistas, com a informação de que já estavam sendo libertados os operários presos durante o movimento. Foram realizados comícios dos trabalhadores em vários bairros para a decisão da retomada do trabalho, que se iniciou no dia imediato. São Paulo reiniciava suas atividades laboriosas. A cidade retomava o seu aspecto costumeiro, restando, entretanto, a triste lembrança das vítimas que haviam deixado lares enlutados” (5).
Fim da greve
O presidente do Estado de São Paulo, na época, Altino Arantes assumiria a defesa dos interesses das classes dominantes atribuindo à greve a uma infiltração de anarquistas e comunistas, considerados subversivos. A partir desses eventos passou a considerar perigosa a generalização dos movimentos grevistas e instituiu, no plano policial, a prevenção aos movimentos gerais e a perseguição aos anarquistas.
Diante da extensão e da duração do movimento os patrões aceitaram as reivindicações, mas não as cumpriram. O movimento foi reprimido, levando a expulsão de militantes estrangeiros, com o confinamento de brasileiros na Colônia Cleveland e com a prisão e espancamento de vários operários.
Em 15 de julho, a greve foi encerrada com a conquista de 20% de reajuste, por parte do governo, e promessas de libertação dos que foram presos durante o conflito e a fiscalização do trabalho de menores e mulheres. Mas o movimento desencadeou, até 1920, uma onda de greves no Brasil e deixou como mártir o sapateiro Antônio Martinez de apenas 21 anos.
No entanto as vitórias conquistadas não estavam à altura das grandes mobilizações ocorridas. Os anarquistas, que dirigiam a maioria dessas lutas, pecavam pelo excesso de espontaneismo, pelo menosprezo à organização centralizada, pela supervalorização dos sindicatos e da luta exclusivamente econômica, pelo menosprezo a luta política e pela organização de partidos operários. A greve de 1917 expôs o fracasso da orientação anarcossindicalista frente às tarefas históricas que a nova etapa do desenvolvimento impunha: a organização política autônoma dos operários e o cumprimento de seu papel de dirigente da luta revolucionária de todos os trabalhadores e forças progressistas da sociedade. É nesse sentido que a greve de 1917 marcou o apogeu e queda do anarcossindicalismo e revelou a necessidade de uma sólida organização política operária para impulsionar a luta contra o Estado dos latifundiários, banqueiros, comerciantes e industriais.
Há que se reconhecer, entretanto, que ela revelou a emergência de um forte movimento de base operária. Foi nela que o operário fabril estreou como o setor dirigente da luta dos trabalhadores. Nos anos seguintes, a luta pela afirmação operária, pela conquista dos objetivos de classe e pela autonomia da classe operária foi um dos eixos centrais da conjuntura política (Fausto: 1977).
(1) Situação da indústria algodoeira – Memorial apresentado ao Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio pelo CIFTA-Rio, em 28 de novembro de 1930, em Nos fios de uma trama esquecida: a indústria têxtil paulista nas décadas pós-Depressão (1919-1950) Tese mestrado Felipe Pereira Loureiro, SP, 2006.
(2) Circulares do CIESP. Memorial apresentado pelo Centro das Indústrias do Estado de São Paulo ao presidente da Câmara dos Deputados, 27 de abril de 1929, em Nos fios de uma trama esquecida: a indústria têxtil paulista nas décadas pós-Depressão (1919-1950) Tese mestrado Felipe Pereira Loureiro, SP, 2006.
(3) Nos fios de uma trama esquecida: a indústria têxtil paulista nas décadas pós-Depressão (1919-1950) Tese mestrado Felipe Pereira Loureiro, SP, 2006.
(4) A Plebe, nº6 21 de julho de 1917.
(5) Pedro Lucas Marques Lourenço.