O pacto de Dilma começa por mais austeridade fiscal?

09 jan 2016 . 15:02

O pacto de Dilma começa por mais austeridade fiscal?

O único aspecto a lamentar é que o primeiro elemento apresentado por Dilma tenha sido aquele que terminou por ser qualificado como o da “responsabilidade fiscal”. Ora, pelas próprias intervenções realizadas pela Presidenta em ocasiões anteriores, não haveria com o que se preocupar nesse domínio, pois a situação econômica estaria sob controle.

No fogo da cena política nacional, tensionada pela pressão das mobilizações realizadas por todo o País, a Presidenta Dilma resolveu finalmente romper a atitude passiva com que vinha lidando com a situação até o momento e procurou sair para a ofensiva. Para tanto, apresentou um conjunto de 5 pactos, sobre os quais haveria como responder aos anseios das ruas e avançar na agenda política propositiva.

Os temas propostos por ela, em reunião organizada com governadores e prefeitos, refletiram de forma bastante adequada as expectativas geradas pelos movimentos. Assim foram listados itens como: i) caminhos para a reforma política; ii) criminalização da corrupção; iii) recursos para saúde; iv) melhoria no sistema de transportes; v) verbas para educação; entre outros.

Primeiro pacto: “responsabilidad e fiscal”
No entanto, um aspecto essencial passou um tanto despercebido e não recebeu o tratamento merecido pelos órgãos de comunicação. Talvez, inclusive, pelo fato de ele não estar presente na longa lista de reivindicações dos movimentos e entidades. Assim, o único aspecto a lamentar é que o primeiro elemento apresentado por Dilma tenha sido aquele que terminou por ser qualificado como o da “responsabilidade fiscal”. Vejamos com suas próprias palavras, como ela abriu sua exposição no encontro:

“O primeiro pacto é pela responsabilidade fiscal, para garantir a estabilidade da economia e o controle da inflação. Este é um pacto perene de todos nós. Essa é uma dimensão especialmente importante no momento atual, quando a prolongada crise econômica mundial ainda castiga com volatilidade todas as nações”

Ora, pelas próprias intervenções realizadas pela Presidenta e m ocasiões anteriores, não haveria com o que se preocupar nesse domínio, pois a situação econômica estaria sob controle. Assim foi, por exemplo, sua declaração pouco mais de uma semana antes do lançamento dos pactos. Em sentido contrário, ela havia assegurado que

“A situação real do Brasil é de inflação sob controle, contas públicas sob controle. Isso significa que, quando nós olhamos no entorno, a relação do Brasil com vários componentes que caracterizam os indicadores macroeconômicos é muito saudável”.

Não havia a menor necessidade de iniciar o chamamento para um pacto em torno da ação do governo federal concentrando as ações em um aspecto que é justamente um dos mais equivocados, no conjunto das políticas públicas desenvolvidas pelo governo. Inclusive porque há outros mecanismos, que passam longe da austeridade e da ortodoxia, para zelar pela estabilidade econômica e controle dos preços. Essa aura toda criada em torno de um falso “mito intocável” – responsabilidade fiscal – é um grande jogo de cena, uma concessão inexplicável ao discurso hegemonizado pelo financismo e multiplicado sociedade afora, de maneira totalmente acrítica, pelos grandes órgãos de imprensa.

Superávit primário permanece intocável
Em termos gerais, é óbvio que cabe a todo chefe de governo cuidar pelo bom funcionamento das finanças públicas – seja no âmbito municipal, estadual ou federal. A administração pública opera sua atividade com base em orçamentos votados pelos colegiados legislativos correspondentes, onde estão definidas as previsões de receita e as determinações de despesas em programas, ações e projetos do governo. Mas não é exatamente dessa regra geral e correta de boa conduta no manejo das contas da administração pública que se trata quando surgem recomendações a respeito de “seriedade e rigor na condução da questão fiscal”. Aqui a porca torce o rabo e o arsenal do liberalismo conservador apresenta as suas garras.

Esse discurso todo ganha força e influência a partir da consolidação dos programas de ajuste macroeconômico, tal como propostos pelo chamado Consenso de Washington. Junto com outras recomendações como privatização de empresas estatais, desregulamentação de setores que operam com bens e serviços públicos, abertura comercial às importações, liberdade de fluxo internacional de capitais, redução da presença pública à dimensão de um Estado mínimo e outros pontos da reforma neoliberal, vinha sempre a necessidade de medidas para assegurar essa tal de “responsabilidade fiscal”.

Lei de Responsabilidade Fiscal e os obstáculos ao desenvolvimento
No caso brasileiro, ela foi sendo colocada em prática através de decisões no âmbito do governo e se concretizou de forma mais institucional apenas em 2000, quando o governo FHC fez com que o Congresso Nacional aprovasse a Lei Complementar n° 101, que passou a ser conhecida como a Lei de Responsabilidade Fiscal. O texto procura regulamentar as relações econômicas e financeiras entre as diversas instâncias de governo no interior do pacto federativo (União, Estados e Municípios), mas acaba por criar exigências e engessamentos que comprometem a possibilidade de ação da maior parte dos chefes dos executivos. Com isso, queimou-se uma oportunidade de implementar uma boa ideia republicana em função do viés pró financismo.

Mas talvez o aspecto mais prejudicial da lei seja a cristalização de obstáculos para o encaminhamento de uma política econômica progressista e desenvolvimentista, inclusive no plano federal. A preocupação central é com a remuneração dos juros e serviço s da dívida pública, por meio de estabelecimento de conceitos prejudiciais, como o do superávit primário. Com isso, todo o foco concentrado na redução das despesas públicas para se obter o equilíbrio orçamentário não passa de cortina de fumaça para esconder um tipo especial de gasto governamental. Trata-se da despesa financeira. E aqui a diferença de tratamento em favor da abordagem financista fica evidente. De acordo com a perspectiva da “responsabilidade fiscal”, esse tipo de rubrica não fica sujeito a nenhum tipo de controle, ao contrário do que ocorre com os demais itens de gasto publico, a exemplo de pessoal, investimentos e programas de natureza social.

A pergunta que permanece sem resposta refere-se às motivações que teriam levado a Presidenta a colocar esse item como o primeiro ponto do pacto para superação da crise institucional. Se ela mesma considera que a economia vai bem, que a estabilidade está sob controle, não haveria razÍ es para fazer esse tipo de chamamento em prol de uma opção nitidamente conservadora em termos da política econômica levada a cabo por seu governo. O reforço de consolidação de metas contraproducentes, como a do superávit primário, e de elevação da taxa de juros oficial soa como um apelo equivocado e desnecessário.

Na verdade, além de inusitado e fora de contexto, o pedido a favor da “responsabilidade fiscal” – jogado assim no vazio – se revela em total contradição com o espírito do conjunto das outras propostas. Os demais pactos em torno da educação, saúde transportes, por exemplo, implicam o aumento das despesas públicas para dar conta das necessidades fundamentais em tais setores. Não há como executá-los em um ambiente de “austeridade do gasto público” – a não ser que a intenção subjacente seja de continuar com a política de concessões e privatização. O governo não deve ficar temeroso e encurralado pelo discurso liberal c onservador, que vive a pregar a redução da carga tributária e a condenar todo e qualquer tipo de ação do Estado no domínio da economia e dos serviços públicos.

Por um Pacto Nacional em prol do desenvolvimento social e econômico
Caso a Presidenta quisesse mesmo iniciar sua exposição com um elemento de política econômica, o mais adequado seria buscar um outro tom. Para manter coerência com a saída para frente dos demais 4 itens, Dilma poderia sugerir um pacto nacional contra o financismo e pela redução da carga financeira no orçamento público e na economia em geral. Com isso, deveria solicitar apoio popular para uma recomendação à equipe econômica, que abandonasse de vez essas metas de superávit primário e ampliasse as realizações no quesito de investimento público.

Por outro lado, a Presidenta certamente seria muito aplaudida se lançasse um pacto nacio nal contra o processo de desindustrialização que atravessa nossa economia. Isso implicaria em mudar um dos eixos de sua política econômica.

Deixar de fortalecer apenas as atividades de exportações de produtos primários, a exemplo das “commodities” do agronegócio e os minérios extraídos de nosso subsolo pela Vale privatizada e outras grandes corporações. Para dar viabilidade a tal guinada em prol da maioria do País, Dilma sabe que deve alterar a política de câmbio valorizado artificialmente. Com isso, os produtos manufaturados importados a preços irrisórios – em especial da China – passariam a ter concorrência de bens industrializados produzidos internamente.

Além disso, ela poderia lançar um apelo para reduzir o processo de desnacionalização de nossa economia. Essa iniciativa contaria com forte apoio popular, uma vez que estão cada vez mais freqüentes as operações de venda de empresas estratégicas de setores importan tes para grupos multinacionais.

Afinal, a tendência de conglomerados estrangeiros adquirirem posição expressiva em ramos como educação, saúde, indústria de bens de consumo, comércio, agronegócio e outros pode comprometer seriamente a capacidade econômica no futuro. Trata-se, entre outros aspectos, de zelar de forma responsável por nossa soberania.

Em suma, Dilma deveria abrir sua intervenção para propor uma unidade nacional em torno de um verdadeiro projeto de desenvolvimento do Brasil, pautado pela distribuição de renda, geração de emprego e sustentabilidade. Com isso, poderia abandonar de vez esse ramerrame dos ajustes pontuais na política econômica, pautados exclusivamente pelos interesses do mercado financeiro. Mais uma vez, a Presidenta perdeu a oportunidade de se liberar das amarras que ainda mantêm com o ideário da austeridade e da ortodoxia.


Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10

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