Je suis mal humorada

26 fev 2015 . 18:33

jesuis-1Último domingo do mês, pleno verão, praias lotadas, nada de chuva. O tempo seco não ajuda o trabalho do ar condicionado que parece necessitar de um pequeno milagre para resfriar um cômodo. Ligo o ventilador e sento para tomar a sopa do cardápio prescrito para que eu cumpra a promessa de um 2015 enxuto.

Quantos quilos? E lá vai janeiro… Parece que ontem ainda era réveillon. Parece que ontem ainda não era janeiro, esse janeiro de Paris e seus 17 mortos: je suis. O mês que conjugou o verbo ser pelo mundo. Ser Charlie? Ser poder abrir a boca e falar seja o que for. Ou não? 
Mastigo um pedaço de tofu, que tem baixa caloria e é rico em proteína e cálcio: nada de abrir a boca para comer seja o que for. Ser manequim 36. Ser Nigéria e seus 2000 mortos, cujo número infinitamente mais assustador não mereceu sequer metade da produção jornalística mundial dirigida à França, e se não fossem as redes sociais a martelarem o assunto por alguns dias, não teríamos tido a oportunidade de encostar em nossos sofás e, pela televisão, nos inteirarmos da situação. 
Depois vem uma gelatina dietética, com a qual meus flertes com o vegetarianismo precisam conviver em harmonia, fazendo vista grossa, enquanto os tranquilizo lembrando-os que o desjejum amanhã é com um maravilhoso suco de clorofila, com sementes germinadas, raízes e todas naturebices das quais tanto gosto.
Mas aí veio o ENEM e suas 526 mil notas zero em redação para estourar a boca do balão. Revivo o choque que, indignada, me fez conjugar o nosso ser como uma nação de analfabetos, para em seguida pensar que não era para tanto, talvez o excesso de drama desta primeira sentença que me veio assim, tão instantânea, estivesse relacionado ao então período hormonal, bem conhecido por tornar as mulheres suscetíveis a exageros emocionais e de julgamentos. A semente de linhaça, presente no cardápio com todos os seus ômegas, certamente auxiliará no caso.
E para inserir outro número à crônica, digo que foi um, UM único dia que se falou no assunto com a devida ênfase, pois nossos letrados jornalistas, logo em seguida, acharam mais atraente retornar à tragédia francesa, e aos outros novos e velhos temas que têm ganho nossas manchetes. A fila anda, como se diz. Não a minha. Sou lenta. Permaneço no mesmo contexto, incapaz de virar a página sobre a qual ainda estarei debruçada no próximo mês.
Uma revista trouxe em sua capa, na semana dos atentados em Paris, a foto de um lápis, canetas e outros instrumentos de escrita encimando a frase encorajadora em caixa alta: CIDADÃOS, ÀS ARMAS! Mais um je suis… não era para nós, cidadãos rudimentares a vivermos ainda uma espécie de pré-história idiomática, essa idade da pedra lascada que a nós faz parecerem como aparelhos de alta tecnologia um lápis e uma caneta. Uma amiga, iniciando um curso de engenharia em Petrópolis, me narra que um professor causou um mal estar geral na turma ao ditar a palavra “pormenorizar” em meio a um enunciado. Esses futuros engenheiros não sabiam o seu significado, tampouco como escrevê-la.
Comento esse ocorrido com minha comadre que é professora no curso de farmácia de uma faculdade em São Paulo, e ela me inunda com uma enxurrada dos mais crassos erros ortográficos com os quais ela tem de lidar ao corrigir os trabalhos de seus alunos, nossos futuros farmacêuticos. Melhor não pensar nos futuros médicos…
As armas, tão dignamente exaltadas na dita revista, serão empunhadas pelos que bravamente caminharam junto aos engajados líderes mundiais pelas ruas de Paris. Aqui, ainda precisamos compreender a diferença da conjugação de um verbo no presente e no infinitivo, falar corretamente os plurais, isso só para o começo. Esperançosa, aguardei a próxima capa da publicação, mas nada, nem uma menção à nossa tragédia educacional, nada. Fiquei sem vontade de abri-la para ver se o assunto fora tratado dentro.
“Uma nação de analfabetos”, escapa-me novamente aqui, já sem as desculpas pré-menstruais. Agora deve ser o efeito das privações calóricas que, todos sabem, mexe com os nervos de qualquer um, e reparem que a nutricionista jurou que a semente de chia providencia uma sensação prolongada de saciedade. Olho o relógio e vejo que está quase na hora da bendita gelatina.
E lá vai janeiro, nos levando com seus petrolões, calorões, apagões e arrastões, e, para discuti-los, precisamos primeiro aprender a ler e a escrever. Quem sabe no próximo ENEM, com um tema mais midiático, como sugeriu nosso ministro da educação, talvez o pau de selfie.
Esta crônica está meio mal humorada. É nisso que dá escrever com fome.
Bárbara Caldas, escritora.

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