24 set 2019 . 19:02
Por Carolina Maria Ruy
Quatro dias depois de a menina Ágatha ser morta com um tiro nas costas, vítima de bala perdida em uma ação policial no Rio de Janeiro, o governador do Estado, Wilson Witzel publicou um decreto que acaba com incentivo à diminuição de mortes cometidas por policiais. O governador determinou que o estado não deve mais gratificar policiais pela redução de mortes em operações ou em confronto.
Esta medida vai na contramão de uma política que visa conter a crescente violência policial. Segundo matéria do G1, as ‘mortes por intervenção de agente do Estado’ aumentaram ano a ano desde 2013. Até agosto deste ano, 2019, 1.249 pessoas foram mortas por agentes de segurança do estado – quase o dobro do registrado no mesmo período de 2009, quando foram 723 mortos.
Em São Paulo a situação não é melhor. O governador João Doria (PSDB) foi criticado por oposicionistas depois de defender, na campanha para governador de 2018, que o policial deve “atirar para matar” e de dizer, ao lado do deputado Coronel Paulo Telhada (PP), que os policiais que matarem devem ter, pagos pelo estado, “os melhores advogados” disponíveis.
Sob seu governo, a violência da polícia aumentou. Segundo levantamento do Instituto Sou da Paz, com base nas estatísticas divulgadas pelo governo do Estado, um terço dos assassinatos ocorridos na capital, no primeiro semestre deste ano, tiveram como autores policiais civis e militares.
Proporcionalmente, trata-se do maior número de mortos por policiais na capital desde 2010. Já o número de policiais mortos se mantém em queda desde 2013 na capital.
Para o ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Mariano, “os dados do estudo são uma demonstração latente de que a morte em decorrência de intervenção policial, não só na capital, mas em todo o estado, ainda é muito alta”. Mariano também é crítico ao pacote anticrime do ministro Sério Moro, sobretudo à ampliação do excludente de ilicitude, que abranda a investigação e punição sobre as ações dos policiais. “Sou crítico ao projeto, porque vai levar a um maior aumento da letalidade policial. O que defendo é que, de forma urgente, devemos centralizar no órgão corregedor as apurações de letalidade policial”, disse Mariano ao jornal Folha de São Paulo.
O ouvidor, que é sociólogo, já foi secretário de Segurança das Prefeituras de Osasco, São Bernardo do Campo e São Paulo, e também secretário do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, é autor do livro “Por um novo modelo de polícia no Brasil: a inclusão dos municípios no sistema de segurança pública”, no qual defende um rompimento com o modelo atual.
Segundo ele, o modelo brasileiro de polícia precisa ser reconstruído. “A polícia tem uma cultura de atuar na repressão daquilo que é visível. E sem orientação da inteligência policial, sobretudo para mapear a grande estrutura do crime e, a partir daí, estabelecer atuações repressivas e preventivas. Esse modelo falido não cultivou a prevenção”, disse em uma entrevista à Revista Princípios (2008).
Naquela entrevista Mariano expôs o fundamento histórico da violência policial. A ideia de que a eficiência da polícia se mede pelo número de pessoas que ela mata, por exemplo, vem de longe. “A polícia matou muito, continua matando, e a violência e a criminalidade aumentam. Esta é a prova inequívoca de que essa visão está falida e esgotada”, disse.
Segundo ele, a lógica do policiamento ostensivo-repressivo executado por instituições fechadas, aquarteladas, com essa visão militar, vem do Império. E a ditadura militar reforçou esse caráter repressivo do sistema. A figura da “polícia-política” foi construída durante os períodos da ditadura Vargas (1937 a 1945) e a ditadura militar (1964 a 1985). Esta polícia servia muito mais aos interesses do Estado autoritário do que à população. “O setor de polícia-política bisbilhotou muito o movimento social, popular, sindical, partidários. Dessa forma, a inteligência policial não servia à segurança pública, mas sim à perseguição dos adversários políticos” disse. Como resultado, esta polícia adquiriu o vício de dialogar muito pouco com a comunidade.
Mariano apontou a necessidade de se construir um sistema de inteligência policial para subsidiar a polícia no combate do crime, de cima para baixo. Porque o que sempre ocorreu no Brasil, foi uma atuação de baixo para cima, olhando para a periferia e, “atuando apenas na base visível do crime, a polícia sempre vai cometer muita violência”, sempre vai matar muito sem, contudo, pegar o comando do crime, que está nos bairros de classe média alta. Este sistema, de só olhar a periferia, reforça o estereótipo de que o bandido mora na periferia, tem o rosto do pobre. “Aí não tem outro jeito, o resultado é a violência letal, e letal contra os pobres”.
Por isso, o que se espera do Estado, em termos de segurança, é uma polícia bem paga, qualificada, bem informada, que atue na prevenção, que se antecipe ao crime e preparada para combater o crime de cima para baixo – do grande para o médio, do médio para o pequeno – e não só olhar para os efeitos visíveis do crime. Para ele, a eficiência da polícia não deve ser medida por sua letalidade, e sim por sua capacidade de enfrentar com inteligência o crime organizado e de prevenir os crimes comuns.
Mas as ações de Witzel, Dória e Bolsonaro, mostram que estamos ainda muito distantes de um modelo justo e humano de segurança pública.
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