19 jun 2019 . 09:44
Lucio Bellentani foi um metalúrgico, que trabalhou entre 1964 e 1972 na Volkswagen do Brasil como fabricante de ferramentas. Ele era membro do PCB e organizava reuniões sindicais dentro da fábrica. Em 29 de julho de 1972, foi preso na fábrica da VW em São Bernardo do Campo. Foi então levado a um centro de tortura da ditadura militar brasileira.
Reproduzimos aqui sua entrevista, com a participação de Benedito Valdir Taoni, para Carmen Evangelho, do Centro de Memória Sindical, realizada em 09 de novembro de 1984.
Betty – A primeira coisa, primeiro o Lúcio e depois o Alemão (Benedito). A ideia é saber um pouco sobre vocês, onde nasceram, a infância, um pouquinho de suas vidas, antes de começar a trabalhar. Que condições tinham, como a família vivia, coisas assim.
Lúcio – Sou natural de São Paulo, caipira daqui mesmo, de Birigui, nasci em 30.11.1944. Tenho quarenta anos, sou filho de camponeses. Descendente, por parte de pai, de italianos, e mãe espanhola. Meu pai, até a idade de rapazola, trabalhou no campo. Depois, foi pequeno industrial, na cidade. Nesse meio período, cheguei a trabalhar no campo também, colhendo algodão, café. Vim para São Paulo em 1955. Meu pai trabalhou esse período todo como biscateiro. Ele era marceneiro de profissão e pequena indústria, tinha uma marcenaria pequena, ajudei muito nisso. Meu primeiro emprego foi farmácia. Embora, quando vim para São Paulo, por uma questão de necessidade, engraxei sapatos, vendi óleo na rua, vassouras. Depois fui trabalhar numa marcenaria. Trabalhei na Lorenzetti, dois meses. Pedi a conta e fui para um banco, três anos. Uma das grandes contradições, trabalhando em banco, escriturário, estudando desenho técnico mecânico. Entrei como aprendiz, ajudante de uma oficina mecânica, em Santo André e comecei a aprender ferramentaria. Exatamente na época quando houve a conquista do 13º salário, em 1962. Foi quando ganhei a minha primeira dispensa para receber o 13º.
Carmem – Você trabalhava onde…
Lúcio – Em Santo André, em uma oficina mecânica, uma ferramentaria pequena. Depois, na CBC, Companhia Brasileira de Cartucho. Fui para a Volks, até 1972. Agora, a militância sindical…
Carmem – Espere aí, vamos voltar um pouquinho. Você disse que estudava desenho, como foi a ida para a escola, deu para ir…
Lúcio – Como trabalhava há tempos, mantinha o pagamento da escola.
Carmem – Você começou a trabalhar com que idade…
Lúcio – Comecei com 12 anos.
Carmem – Começou a se manter…
Lúcio – Passei a me manter em termos, sabe como é família pobre. Se ganhava cem cruzeiros, dava na mão do pai. O fim de semana que ele tinha esse dinheiro, ele dava. Se não tinha, não. Era um se manter entre aspas. Muito mais para ajudar a família do que para mim. A questão do pagamento da mensalidade da escola e dinheiro para a condução, isso raramente faltou. O velho se estourava em horas extras, para poder sustentar.
Carmem – Em quantos irmãos vocês são…
Lúcio – Somos em cinco irmãos, sou o mais velho da casa. Nessa época, durante o dia trabalhava e à noite estudava. Já estava na oficina mecânica. Comecei a atividade sindical desde o curso de desenho. Aqui em São Caetano, na Escola 28 de Junho. Era aquele período de 1963, tinha aquela turbulência grande, principalmente, no movimento estudantil e sindical. Eram aquelas manifestações que aconteciam de enterro de prefeito, vereador, e participávamos. Foi aí que levei as primeiras borrachas no lombo, participando dessas passeatas. Trabalhando no banco. Em Santo André, você não tinha ainda o Sindicato dos Bancários. Era sócio, me filei e participava de reuniões. Quando entrei para a oficina mecânica, não me sindicalizei, não fui para o Sindicato dos Metalúrgicos, mas participava. Ia às assembleias, participava do movimento. Comecei com a militância, não só sindical como política, mais efetiva, a partir de 1964, quando entrei na Volkswagen. A primeira coisa foi participar das assembleias do sindicato.
Carmem – Deixa eu fazer uma pergunta. Você lembra qual foi a primeira vez que ouviu, que te falaram do sindicato…
Lúcio – Para te dizer a verdade, escutei falar do sindicato até antes de nascer, porque meu pai sempre foi sindicalista. Tinha uns seis meses de gestação ainda, e fui preso junto com ele e minha mãe. Ele sempre atuou, teve militância política, também. Em 1947, foi candidato a vereador na cidade, pelo PCB. Tem uma tradição meio de sangue. Concretamente, começo a vida sindical a partir de 1964, com uma participação mais ativa e uma atuação política. Comecei a participar do sindicato, das assembleias e por uma questão de postura, de como me manifestava, imediatamente fui convidado a entrar no Partidão. O pessoal já veio e pá-pá-pá.
Carmem – Isso antes do Golpe…
Lúcio – Depois do Golpe.
Carmem – Você está falando em assembleia depois do Golpe. Os primeiros tempos não foram os piores…
Lúcio – A coisa engrossou depois de 1968.
Carmem – Você está vendo, ontem uma coisa que se levantou foi que a geração que estava em 1970 na fábrica não tinha história.
Lúcio – Aí é que está o problema. No decorrer dessa entrevista, vamos colocar algumas questões. Não sei porque razão, historiadores e alguns, não só sindicalistas, como políticos, omitem a resistência que houve de 1964 até 1978, dentro das fábricas. Tenho orgulho de ter participado um pouco disso, principalmente em São Bernardo.
Betty – É realmente, Lúcio, esse é um período que as pessoas não falam. Não é só porque os historiadores, os entrevistados não falam.
Carmem – 1964 é um corte. As pessoas que já estavam na militância, as quedas, prisões, a ida para a clandestinidade. A geração nova que surgiu, que é o seu caso, é fundamental, ela recompõe a questão.
Lúcio – Vieram as paparicações. Confesso que, quando fui convidado a ingressar no Partido Comunista, me senti bastante orgulhoso. Isso aconteceu em 1966. Até ali era mais uma militância sindical. Num primeiro momento, não tomo posição. Não tinha clareza do próprio movimento sindical naquela época, estava ingressando. Dali para frente, quando Paulo Vidal assume a direção do sindicato de São Bernardo, já me posicionava como oposição àquela política levada por ele. Principalmente, no que tange uma velha inspiração do campo empresarial. Ele era o grande defensor dessa tese, que era a formação do sindicato das indústrias automobilísticas, tentando dividir, numa hora em que a indústria estava explodindo no país. Forçando nesse sentido. Fazia oposição naquela época. Daí para frente, chegamos a desenvolver um trabalho grande, dentro da Volks em relação ao sindical. Naquela época não tínhamos a mínima visão do que seria uma comissão de fábrica. Hoje, com isso bem mais claro na cabeça, digo que tínhamos uma espécie de comissão clandestina na Volks, com mais de cem companheiros. Eles contribuíam inicialmente para a manutenção de uma propaganda interna, de uma mobilização que fazíamos em torno de uma série de problemas e reivindicações. Aconteceram várias greves nesse período, também na Mercedes, Willys e na Chrysler.
Carmem – Como de davam essas greves…
Lúcio – Não poderia dizer que eram espontâneas. Tinham um certo preparo, uma discussão de bastidores devido a própria situação de repressão. A principal preocupação era uma vigilância constante no sentido de não expor lideranças. É evidente não vir surgir num movimento daquele um líder, dirigente do movimento. Dificilmente identificava o cabeça. Era trabalhado muito por baixo, por fora. Quando surgia, tinha uma aparência de espontânea, mas tinha uma discussão e um preparo por trás.
Betty – Como era feito esse preparo…
Lúcio – Em discussões dentro de banheiros, vestiários.
Carmem – Mas isso era discussão do PCB… Tinha organizações, ou uma comissão partidária… Como era…
Lúcio – Não. Naquele período, e não podemos comparar com hoje, houve todo um desmantelamento dessas organizações. Na realidade, não tem nenhuma organização partidária organizada hoje. Essa é a grande verdade, não só do movimento político, como do sindical. Naquela época tinha o PC, o PCdoB, a POC, a AP…
Betty – POLOP.
Lúcio – POLOP, VAR Palmares e por aí afora. Tudo quanto era P não sei de que você tinha naquela oportunidade. E isso dentro das empresas. Era muito comum, um fato conhecido da própria reação, ter por intermédio dessas organizações um companheiro que era médico e a tarefa dele era trabalhar como faxineiro dentro de uma fábrica. Tinha muito dessas loucuras. Para mim, isso sempre foi uma idiotice, que não tem nada a ver com o movimento operário. Não existia confronto de entidades políticas na base. Esses existem entre aqueles que se dizem lideranças do movimento, partidos ou tendências. A base pouco está se lixando para essas diferenças políticas. O que ela se preocupa é a sua unidade. Essa sempre foi impedida pelos pseud. líderes do movimento, donos da verdade dos partidos políticos ou direções sindicais. Isso acontecia naquele período e vai continuar, infelizmente. Não consigo vislumbrar um rompimento disso a curto prazo. Naquela época, o entendimento dentro da fábrica era muito fácil. Não foi nem uma nem duas vezes que a AP distribuiu um boletim que a base do PC da Volks fazia dentro da fábrica. Todas as correntes ali. A partir do momento que concordava com o que era levantado, ajudava o trabalho. Sempre discutimos a forma que poderíamos influir no sentido de romper com esse divisionismo de cúpula, buscar uma unidade. Entendemos que a unidade vai ter que surgir de dentro da base. Não adianta querer fazer pela cúpula, isso é papo furado. Ou faz a unidade lá embaixo e rompe a cúpula, ou não se fala em unidade. Porque falar em discurso é fácil. Quero ver lá embaixo na prática, se desarmando de uma série de coisas. Era se tipo de trabalho que desenvolvíamos. Dava excelentes resultados.
Carmem – E para que eram essas greves… Eram por setor, operação tartaruga, paralisava a fábrica toda, como é que o pessoal se manifestava…
Lúcio – Normalmente, se manifestavam setoriais. Paravam alguns setores e normalmente por horas. Não lembro de nenhuma paralização que atingiu dois dias. Isso dentro da Volks. Lembro-me sim de algumas paralizações. A Mercedes, um período, teve uma seção que chegou a ficar paralisada um dia e meio, em 1968. O refeitório ficou paralisado dois dias. E o pessoal todo da fábrica sem comer. A repressão era violenta. Sempre foi difícil, com maior cuidado, com uma maior seriedade ou com maior responsabilidade. Você automaticamente joga para fora o movimento em si, aquele troço do medo, da sacanagem, do encarregado ou de um guarda chegar e te ameaçar e você vacilar naquele momento. Parece que as coisas vêm mais conscientes e era um período curto do movimento. Mais isso aconteceu dezenas.
Carmem – Uma questão, só por curiosidade. Você lembra se nessa época existia alguma liderança anterior a 1964… Ou era um pessoal novo que estava mais ou menos na mesma situação que você…
Lúcio – Não. Tinha um pessoal mais antigo.
Carmem – Mas com militância sindical ou trabalhador…
Lúcio – Com liderança sindical. É evidente, eram companheiros que às vezes você via muito rapidamente numa assembleia. Que estavam na clandestinidade.
Carmem – Não, estava pensando mesmo dentro da fábrica.
Lúcio – Dentro da fábrica… Na Volks conheci sim, muitos companheiros que tinham uma militância bastante antiga, mas que nunca chegaram a ser uma liderança, em termos sindicais, reconhecida pela massa. Isso sinceramente não tenho lembrança. Tinha muito aquele militante comum, um nível político razoável. A grande maioria era um pessoal novo que surgia, sem vícios do passado.
Carmem – Surgiram com o golpe de 1964, praticamente…
Lúcio – Exatamente. Lembro perfeitamente bem, no começo de 1969, vem o AI-5. Nesse momento e até um ano depois, não teve muito reflexo. Pelo menos não senti no conjunto. Não teve em relação a um amedrontamento do trabalhador. Porque era um pessoal novo que vinha se colocando, aparecendo. O que não acreditava era numa repressão no nível do que ocorreu. Mais tarde, começa a se interessar por leitura, estudar um pouco. Você vai ver que em 1945 e outras épocas, também teve um período semelhante e talvez até pior, eu acho que é meio difícil saber.
Carmem – Você se lembra em 1968, já que você falou, se a greve da Cobrasma em Osasco teve alguma repercussão dentro da Volks…
Lúcio – Não lembro sequer de algum comentário em relação a essa greve lá dentro. Sinceramente. Para mim foi uma certa surpresa, quando tomo conhecimento mais real de que aconteceu essa greve. Em 1968, já tinha uma militância bastante ativa em São Bernardo, não só sindical como política. Não me lembro desse fato, desse acontecimento.
Betty – Essas greves que vocês faziam, que tipo de reivindicação acontecia…
Lúcio – Normalmente era por questão salarial. Teve uma vez um movimento que aconteceu dentro da Volks e foi em cima da repressão policialesca dentro da empresa, do trabalhador, com guarda no banheiro, de questão de qualidade de refeição, esse tipo de coisa. Nunca concretamente surgiu uma luta mais política, uma reivindicação mais alta. Isso realmente não ocorria. Mas, questão salarial, era mais ou menos comum ocorrer. Quando na dispensa de alguém isso nunca ocorreu, embora se falasse muito na questão da estabilidade no emprego. Mas nunca chegou a ocorrer algum movimento em cima disso. Em 1971, fiz parte do pessoal que articulou uma chapa de oposição em São Bernardo, oposição a Paulo Vidal. Já era o segundo mandato do Lula naquela chapa, ele era suplente da Federação e ninguém o conhecia. Essa é que é a grande verdade. Ninguém tinha a mínima informação do que era Lula naquela época.
Carmem – Ele era da Mercedes…
Lúcio – Não, da Villares. Ele era contramestre de forno na Villares. Não tinha nenhuma atuação sindical. Perdemos as eleições em 1971 e no próximo ano teve a queda. Fui preso em 1972, dentro da Volks.
Carmem – Dentro da Volks, em horário de trabalho…
Lúcio – Em horário de trabalho, fui preso dia 28 de julho de 1972.
Carmem – Como é que se dá uma prisão dentro de fábrica…
Lúcio – A minha prisão foi a coisa mais idiota, estúpida, pelo lado repressivo. Um companheiro foi preso às duas horas da tarde, também.
Carmem – A polícia entrava numa boa…
Lúcio – O DOPS mesmo. Foi preso às duas horas da tarde, revistaram o armário dele. Eu entrava às quatro e meia e me avisaram. Tinha uma convicção que era um companheiro mais experiente, de luta, já não era a primeira vez que ele estava sendo levado para prestar esclarecimentos. Pensei que ele não ia abrir. Mas, infelizmente, quando são onze horas da noite, ele vai me buscar dentro da fábrica. Não foi torturado, não aconteceu nada, não encostaram um dedo nele. Às onze horas da noite ele vai me buscar. Eu levava marmita, não comia no refeitório da Volks. Estava lá na minha bancada de serviço comendo. O guarda chegou e me bateu no ombro, perguntou se era o Lúcio. Sou eu mesmo. Então, você me acompanha até lá embaixo na segurança. Eu sentado ali com o garfo na mão. Mas porquê… Lá embaixo você vai ter as explicações, não tente nenhuma reação. Quando viro e olho para trás, tem um cara com uma metralhadora nas minhas costas.
Carmem – Com toda a conivência da empresa…
Lúcio – Com tudo, com a metralhadora nas minhas costas. Levantei, saí. Na hora que passo pela primeira coluna, tem outro cara, com um parabelo que não tinha nem tamanho. Fui para a sala de segurança da Volks e comecei a ser torturado, levei uns bofetões, pontapés.
Carmem – Pela polícia ou pela segurança da fábrica…
Lúcio – Pela polícia, pelo pessoal do DOPS. Fui levado para lá, era uma sexta-feira. Ao chegar, foi a primeira seção de pancadaria. Pontapés, socos, tapas, palmatórias.
Betty – No DOPS aqui de São Paulo.
Lúcio – Sim, aquele fim de semana fiquei lá, não me incomodaram. Somente na segunda-feira, foram me buscar na cela. Como a solitária estava ocupada, me deixaram na dos estrangeiros. Fiquei lá com um chinês, um inglês e um coreano. Todos traficantes, presos comuns. Me jogaram e fiquei quarenta e cinco dias incomunicável, não falava com ninguém. E esse outro cara abrindo tudo o que sabia. Depois, veio toda aquela seção de pancadaria, tortura. Fuzilamento simulado, coisas desse tipo. Depois na queda da Volks, caíram outros companheiros. Sei que no meu processo teve vinte e sete pessoas enquadradas. Tinha meia dúzia que nem da Volks eram. Eram pessoas que os outros conheciam aqui de Santo Amaro e outras regiões de São Paulo. Ele abriu tudo o que sabia. Na Volks mesmo parece que teve oito companheiros punidos e presos. Acabei ficando na primeira etapa, um ano exato preso. No dia do julgamento fui absolvido.
Carmem – A tua família era incomodada…
Lúcio – Minha esposa ficou quarenta e oito horas detida. Foram na minha casa. Naquela época, minha filha caçula estava com três meses de idade. Pegaram minha esposa, meu sogro, largaram as crianças lá sozinhas. Os vizinhos que cuidaram deles. Ela ficou detida no DEGRAN de São Bernardo. Depois de um ano, só eu fiquei preso. Quando foi o julgamento, fui absolvido. Quando saí, no dia seguinte, uma empresa com porte médio com duzentos funcionários, mandou uma pessoa em casa, para eu ir trabalhar lá. Fui e comecei nessa empresa. Era genro de um ferramenteiro que trabalhava comigo na Volks. Aconteceu um fato que para mim foi muito significativo. O dia que saí da prisão, peguei um táxi, fui embora para casa. Pedi para a minha família não ir no DOPS me esperar. Aquela época, quando você saía da prisão, tinha que ficar um dia inteiro na frente do Fleury, olhando para a cara dele.
Carmem – Porque isso…
Lúcio – Pressão, ameaça na hora da saída. Tinha que passar pelo Fleury. Ele reunia todos os seus caceteiros e ficava te ameaçando. Na hora te encontrar na rua, vou te matar, vou te apagar. Na hora que ouve falar teu nome, esse tipo de ameaça. Para você sair da prisão e não querer saber mais de nada, para te aniquilar moralmente. Fui para casa e a minha mulher estava na casa dos meus pais. Fiquei um pouco com eles e vamos embora para casa. Morava em São Bernardo. Pegamos um outro táxi. Na hora que chego na rua de casa, a minha era abaixo do nível da rua, vejo uma fila de carros ali. Perguntei para minha mulher o que era, se era uma festa, ela diz que não. Para surpresa minha, na hora que eu abro o portão, tinha mais de cinquenta pessoas, colegas da Volks, me esperando. Levaram pizza, cerveja. Ficaram comigo até duas horas da manhã. Depois de um ano de prisão, numa fase repressiva daquelas, sair e saber que foi fiel com seus companheiros, e eles também não tiveram receio em prestar solidariedade para você. Foi muito marcante para mim. Fui trabalhar nessa firma, em Diadema. A Volks, evidentemente, me mandou embora sem direitos. Quando saí da prisão, fui buscar a indenização e eles pagaram. Não pagou para todos que saíram.
Betty – Porque você acha que eles fizeram isso…
Lúcio – Acho que tem muito a ver com a pressão das famílias, a repercussão. Minha esposa, tudo o que era manifestação que tinha, na assembleia, na câmara, liberdade de presos políticos desaparecidos, ela sempre esteve no meio. Também volta e meia ela ia lá. Nos primeiros dias de prisão, nos quarenta e cinco dias que ninguém me localizava, várias vezes ela ameaçou a empresa. Ela ia e acusava de responsável.
Carmem – Ela mantinha um relacionamento com a empresa…
Lúcio – Volta e meia ela estava lá, exigindo assistência médica para os filhos. Uma pressão.
Carmem – Mas eles não pagaram um tostão em termos de salário, ajuda…
Lúcio – Nos primeiros três meses, ela ia todo mês e recebia o meu salário.
Benedito – Depois é o salário do detento.
Carmem – Ah! Existe salário detento mesmo para preso político…
Lúcio – Existe. Depois, quando ela conseguiu me ver pela primeira vez, fez a procuração e passou a receber pelo INPS, o auxílio detenção.
Carmem – É muito diferente do salário…
Lúcio – É mais ou menos 60% do seu salário normal. É uma espécie de auxílio-doença.
Carmem – Ela teve algum tipo de solidariedade para complementação do salário…
Lúcio – Ela teve várias. Não foi uma, nem duas vezes que o pessoal da fábrica fez lista e levava dinheiro para ela. Ela aceitou nos primeiros meses. Resolveu, depois de uma conversa nossa, que seria melhor ir para a casa do meu pai. Alugou a casa onde morávamos, por um período de oito meses. Pegava aquele auxílio detenção, o aluguel e, morando com o meu velho, arcava com as despesas da casa. Uma série de outras, ela não tinha, também. Mas os primeiros meses foi um troço, até ela conseguir receber o meu salário. Coisa de dizer paras as crianças, se elas queriam mingau salgado ou doce, porque era fubá de manhã até de noite. E com água, não leite, porque não tinha dinheiro para comprar. Um dia me deu a louca, peguei o dinheiro da indenização da Volks, o que recebi na época foi quinze mil e pouco. Saí com o dinheiro de lá, passei na concessionária, comprei um fusca zero, não quis nem saber. Comprei e tudo bem. Um dia eu levantei, São Bernardo, aquela garoa constante, estava meio de saco cheio. Falei para ela pôr as crianças no carro e vamos sair por aí, procurar o sol. Na hora que me dei conta, estava passando em frente a GM, em São José dos Campos. Havia uma placa, “precisa-se ferramenteiro”. Parei o carro e entrei na fábrica. Uma semana depois, estava trabalhando na GM. Aí tive uma certa militância no Sindicato de São José dos Campos.
Carmem – E a empresa não colocou problema por você ter sido preso…
Lúcio – Não. Fui para a GM na época em que pegava ferramenteiro a laço. Pediram atestado de antecedentes, mas felizmente a burocracia no Brasil é tão ágil, que chegou cinco meses depois que já estava trabalhando. Me chamaram para conversar, mas levaram em conta o meu comportamento naquele período. Quando completou seis meses, pedi a conta e fui trabalhar na Ericson.
Carmem – Lá em São José…
Lúcio – Lá em São José dos Campos. Quando eu estava com quatro meses de Ericson, ia chegando em casa, morava em Jacareí. Está meu pai, minha mãe, um colega da Volks, estranhei. O que aconteceu… Estavam com uma Folha de São Paulo, que eu havia sido condenado em Brasília, há dois anos. Pedi para o pessoal ir embora, que ia resolver com a minha família o que fazer. Lotei o carro, naquela época uma DKV velha, lotei de tudo que cabia dentro e resolvi vir para São Paulo. Fiquei na casa de um parente e entrei em contato com o meu advogado. Ele me aconselhou a me apresentar, porque já havia puxado um ano de cana e tinha direito a condicional. Relutei. Pode vir se apresentar. Na segunda-feira, vim, me apresentei, fui direto para o presídio. Na hora que o advogado entra com o pedido da condicional, o juiz da segunda autoria pega e coloca a questão que ele era incapacitado de julgar minha condicional, devido ao meu comportamento de não colaboração na época da prisão. Ia para o Conselho Penitenciário de Brasília, para julgar lá. Cada vez que chegava era aquela velha história, faltava reconhecer firma disso, faltava assinatura não sei o que. Cada vez que ia e voltava, era um mês que se perdia. Acabei ficando mais oito meses até ser julgado.
Carmem – Custou, não é…
Lúcio – Depois saí de lá, arrumei emprego aqui em Santo André. Quando fui em São José, na Ericson, para pegar aquela folha de INPS das doze últimas contribuições. Estava no departamento pessoal para pegar aquilo, o gerente de ferramentaria me viu e falou que eu ia voltar para lá. E acabei voltando para a Ericson. Fiquei lá mais uns dois anos. Saí porque abro processo. Porque quando fui preso, estava com quatro meses e ela me demitiu por justa causa e depois abriu um processo por equiparação de salário. Ganhei os processos, todos. Mas ganhei a minha conta, também. Fui mandado embora não pela minha seção, mas pela própria administração da empresa. Vim trabalhar na Siemens, dois meses. Pedi a conta e fui para a Cofap, trabalhei lá três anos.
Carmem – E depois, neste período você tinha atividade sindical…
Lúcio – Tinha.
Carmem – Política, também…
Lúcio – Política, não. Quando fui detido, já tinha uma série de divergências com o partido. O problema era que meu ingresso foi como quando você constrói aquele puta castelo de areia e com o passar do tempo, com a militância e a convivência, o nego começa a perceber que a teoria é uma e a prática é outra, bastante diferente. Algo que nunca aceitei. É um carreirismo muito grande, de um oportunismo muito grande dentro do partido. Uma conciliação muito grande com uma série de setores. Comecei a perceber que não tinha nada de mais concreto em relação a levar realmente uma política de partido de trabalhador, na política operária. Já comecei com contradições muito grandes e depois a forma como a questão se deu foi a gota d’água para que, quando saísse da prisão em 1973, pela primeira vez fui procurado pelo partido. Mas de lá para cá, nunca mais tive militância partidária. Tenho sido procurado constantemente pelo pessoal, mas me recuso a uma militância. Não só no PCB, como em todos os outros partidos. Como disse anteriormente, não vejo nenhuma organização que realmente leve uma política do operário, do trabalhador. Principalmente hoje, vejo uma política muito de conciliação, de oportunismo, de carreirismo. Não é por aí que vamos conquistar a liberdade nesse país. Não vejo uma preocupação. Com a experiência dos tempos, compreendi e entendi que não adianta você querer transformar um operário, que sequer tem um conhecimento básico do que é sindicalismo, do que é luta de classes, você querer transformar esse companheiro num militante político e num dirigente. Acho que é a maior distorção que pode ocorrer. Na realidade, o militante de partido político, o que ele acaba sendo é pura e simplesmente um tarefeiro das direções. Aquilo que o trabalhador realmente pensa ou aquilo que ele realmente acha que seria correto, não é ouvido. Não é dada oportunidade para ele de se manifestar, se organizar, como a teoria coloca. Infelizmente a prática do partido de esquerda é bem outra. Em vista disso, não tenho mais militância político partidária, como também não sou filiado a nenhum partido legal. Nem PT, nem a MDB, a nenhum deles. Tenho uma aproximação com o PT, como algumas divergências. Mas a minha militância é pura e simplesmente sindical. Embora, em algumas dúvidas, recorro ao Lênin, ao Marx.
Carmem – A algumas assessorias. Vou te fazer uma pergunta e você responde se quiser. Durante o tempo que você ficou ligado ao PCB, houve por parte deles algum trabalho no sentido de auxílio a sua formação… Ou seja, você frequentou algum tipo de curso que o PCB deu… Eles se preocuparam de alguma forma com a sua formação enquanto dirigente sindical, dirigente político…
Lúcio – Muito se falava em curso, muitos planos se fazia em relação a isso, mas sequer recebi, inclusive, uma orientação mais efetiva em relação à própria literatura marxista. Porque… Vim entender muito mais tarde. As direções partidárias, o que na realidade querem são tarefeiros dentro das fábricas, da classe operária. Essa é a grande verdade.
Betty – Não só dentro da classe operária.
Lúcio – Só vim entender isso, não sei se muito tarde. Agora também é evidente, uma prisão nunca é boa para ninguém. Mas aprendi muito lá, foi uma escola para mim, em relação à questão humana. Ouvia-se muito falar em organizações naquela época, que tinham cursos no exterior e coisa desse tipo.
Carmem – Não, estava pensando mesmo aqui.
Lúcio – Aqui, nunca. O que vi muito eram planos mirabolantes, desde o primeiro momento. Como a organização tem que crescer tantos por cento durante tal período. Como se você estivesse plantando uma roça de milho, era tanto a mais de terreno, então você sabe que vai colher tantos sacos a mais de milho se chover e for muito bom. Mas, em política a coisa não é assim. Não nego que aprendi. Mas tive muitas decepções também.
Carmem – Imagino.
Lúcio – E aí em 1978 eu entrei na Cofap, em Santo André. Naquele momento, com uma atuação sindical ainda muito tímida. Foi quando surgiram as primeiras greves no ABC. Começou pela Scânia.
Carmem – Não era a Mercedes…
Lúcio – Não, foi a Scânia.
Carmem – Seu João era da Scânia… Que foi assaltado…
Lúcio – Seu João… Nem me recordo dele. Quem era da Scânia, era o Vicentinho. Não, ele era da Mercedes. Da Mercedes era o Djalma Bom. Acho que o Vicentinho era da Scânia. A greve começou a acontecer na Scânia. Teve uma visita de uma comissão de operários e sindicalistas suecos. Se reuniram com os trabalhadores e fizeram uma pauta de reivindicações para a empresa. Enquanto esses sindicalistas estavam aqui, concordaram em cumprir. Foi aí que surgiu o movimento, quando o Lula vai e assume. A coisa começa a se espalhar pelas outras indústrias. Trabalhava na Cofap e parou todo mundo. Foi quando se conseguiu 10% de antecipação.
Carmem – A aristocracia operária.
Lúcio – Era novinho na ferramentaria. O gerente da minha seção era o mesmo que foi na GM. Durante o período de greve, foram três dias, o cara ficou das sete horas da manhã até as cinco da tarde na bancada de braços cruzados. E vou fazer o que… Eu era novo ali, um ódio desgraçado, mas tudo bem. Na greve de 1980, já fiz piquete, em frente a porta da Cofap da região. Em 1981, comecei uma atividade mais efetiva no sindicato. Já desde as primeiras reuniões da campanha salarial deste ano, participei da comissão de salários, da comissão de mobilização. Só que no primeiro dia de greve, fui mandado embora da Cofap. Mas fiquei, durante o período todo da campanha, fazendo piquete, participando das assembleias no Vila Euclides. Quando aconteceu a intervenção no sindicato, o Lula foi preso e vários outros naquela noite, não dormi em casa. Me mandei, para não me descobrirem e fiquei amoitado. Só apareci na praça o dia em que o Lula foi solto. Soltou ele, soltou os outros, então agora está tranquilo e dá para voltar. Fiquei quatro meses sem trabalhar e arrumei emprego aqui na Ford, em São Paulo. Vim para cá em 1980, a greve foi nesse ano, em julho. Estou lá até hoje, na comissão de fábrica.
Carmem – Você não falou uma coisa para nós, porque você não quis ser metalúrgico…
Lúcio – A minha grande vontade desde criança sempre foi ser médico. Estudar medicina. Entrei na farmácia, mas, como estudar uma coisa que você não tem um retorno rápido. Depois ia ter outro problema. Trabalhando de dia, fazendo hora-extra, trabalhando de sábado e domingo. E estudando à noite, subnutrido.
Carmem – Não é o caso.
Lúcio – Mas esse corpo aqui veio depois. Sempre fui alto, mas um palito, dormia de pé. Não tinha a mínima condição de estudar à noite. Fiz o colegial depois de casado, depois de velho. Um supletivo e concluí. Mas a opção foi estudar desenho mecânico e aprender uma profissão nessa área. Gosto da profissão de ferramenteiro. Mas, principalmente, por ter um retorno rápido. Você fazia um curso de desenho mecânico de um ano e meio e, se fosse trabalhar como desenhista, rapidamente tinha o retorno financeiro. Mas nunca me interessei em trabalhar em prancheta, escritório, essa coisa toda. Comecei a fazer um curso de projeto e parei. Não fiz curso de ferramentaria, aprendi na prática, na oficina. Me dei bem e comecei a ter um salário razoável, e sou metalúrgico até hoje.
Betty – Me diz uma coisa. Você trabalhava no banco. De certa forma, existe uma ideologia, que trabalhou num escritório tem um status maior que o trabalho na fábrica.
Carmem – Recebe um salário bem maior, mas…
Betty – É muito comum um ideal de deixar a fábrica para passar para o escritório…
Lúcio – O meu foi justamente o contrário.
Betty – Você já estava trabalhando no banco, porque você preferiu um trabalho na produção…
Lúcio – Uma das razões era justamente essa. Na época, um curso de mecânico especializado em alguma coisa, ferramentaria, por exemplo, era a grande chamada do momento. E ali no banco, como contínuo, ficava o dia inteiro de bicicleta na rua entregando correspondência de casa em casa, extrato mensal. Passei a trabalhar dentro da expedição e depois como funcionário mesmo. Ficava atrás do balcão batendo duplicata. Mas isso nunca me atraiu, principalmente aquele negócio de ficar o dia inteiro engravatado. O meu negócio é mais solto, mais à vontade, mais povão mesmo.
Carmem – Estilo de vida.
Lúcio – Então, não. Inclusive, eu costumo dizer que, me desculpem vocês, intelectual é um mal necessário na classe operária.
Carmem – Você sabe que eu não discordo muito, não. Discordo do necessário.
Lúcio – No momento ainda é.
Carmem – Porque eu acho que a função de intelectual é se auto destruir, se ele passa o que ele sabe, ele se aniquila, se destrói.
Lúcio – É por isso que ele não passa.
Carmem – Mas eu acho que devia passar, não passa porque está errado. Agora nós vamos interrogar o Benedito.
Lúcio – A vida do brancão.
Carmem – Vai lá, Alemão, onde você nasceu…
Benedito – Em Blumenau, no Estado de Santa Catarina. Meu pai era de Mato Grosso. Depois nós discutimos isso. Nasci em 1959. Fui um menino criado sozinho, não tenho pais, nunca conheci. O que me lembro mais distante da infância são meus tios e dos maus tratos. Espancamentos e eu fugi de casa, lá em Blumenau, sem saber para onde. Sem saber que direção estava tomando. Logo alguns dias depois, percebi que estava indo mais para o Sul. Fui parar em Porto Alegre, sozinho. De Blumenau a Porto Alegre, aconteceram algumas peripécias que ficaram na minha cabeça até hoje. Chegava numa estação férrea em Santa Catarina e Rio Grande e até ser descoberto, passava três estações. Se o chefe da estação me pegava, contava uma história de que minha mãe tinha ficado com dó de mim. Foi assim que fui até Porto Alegre. Fiquei perambulando por lá, sem parentes, sem ninguém. Até que fui capturado pelos homens, começou assim. Me levaram para uma instituição que nem lembro o nome, uma daquelas que cuidavam do menor.
Carmem – Tipo FEBEM aqui…
Benedito – Sim. Aí comecei a escola da vida, realmente me fez. Tudo, desde o início, tudo o que me ofendia, eu revoltava. Queria fazer diferente. Passei uns tempos detido nessa região, mas houve um processo, foi considerado em conflito e eu saí dessa. Não saí muito bem, mas saí. Alguns companheiros que ficaram envolvidos também desapareceram embrenhados pelas matas. Vim para o Mato Grosso do Sul. Em Campo Grande, mantivemos contato com gente da política de novo, agrária. Não me dei muito bem, não. Queriam sempre nos subordinar. Nunca gostei de trabalhar muito subordinado. Eram pretensos dirigentes, muito mandões. Nunca gostei de me subordinar a nada, o meu negócio é ser livre. Fui para a Bolívia trabalhar na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, da cidade de Bauru a Santa Cruz de La Sierra. Trabalhei num trecho, numa cidade chamada Águas Calientes, depois fui para Santa Cruz de La Sierra. Lá eles erigiram a estrada de ferro Noroeste, e fui trabalhar nas minas. Foi lá que me filei a COB, Central Operária Boliviana. Tinha ido durante um ano de trabalho com esse povo, aprendi muita coisa. Mas houve em Santa Cruz de La Sierra o assassinato de um dirigente do governo boliviano por um brasileiro. Esse era um pernambucano chamado José Soares, finado José Soares, não existe mais. E lá fui envolvido, e todo mundo para o xadrez. Éramos em seis brasileiros. Foi dureza, até que a embaixada brasileira tomasse alguma providência. Que tomou, não posso negar isso. Passei cento e vinte dias uma dificuldade incrível. Tinha um infeliz de um carcereiro boliviano, que quando ia fornecer alimentação, era um ensopado de folha de verdura com fubá, despejava a comida no chão. Nós catávamos alguma coisa que estava por cima e se quisesse tinha que comer no chão. Ele esparramava tudo. O Zé Lopes levou uma tremenda de uma pancadaria, uma tortura. Tratei dele na boca, por sessenta dias. Outros companheiros estavam em outra cela, só estava eu com o Zé Lopes. Tirei, naquela ocasião, da boca dele e do ouvido, diversas vezes, bichos que se criaram nos ferimentos das pancadarias que levou. Estouraram os tímpanos dele com uma antena de rádio. Criou bicho, não havia recurso e eles não atendiam. Eu pedia desinfetante para jogar no sanitário e punha no ouvido dele para matar os bichos. No ouvido, na boca. E dei comida na boca dele muitos dias, quase dois meses. Nessa delegacia tinha um carcereiro, eles eram em três e cada um trabalhava um dia. Tinha um que dava marmita na mão da gente, era esse o dia da gente comer bonito. Era o melhor dia. Ele costumava dizer que ele também era gente. Eu dizia para ele que não era necessário, que as atitudes dele mostravam. Houve um diálogo com o sargento da polícia boliviana nesse dia. Nesse, acho que conheci verdadeiramente um homem, que é esse José Lopes, finado José Lopes. Auilo era um verdadeiro homem. O sargento chegou na frente dele e mandou-o se perfilar. Falou: “Você, usted, deve saber, porco brasileño, que são precisos dez brasileños para pagar a vida de um boliviano”. Dez porcos brasileiros para pagar a vida de um boliviano. E o Zé Lopes estava em estado de recuperação, já razoável. Foi de um lado assim, esse camarada e ele levantou a cabeça, a mão. Pensei que ele ia coçar, qualquer coisa. Deu um tapa na boca do sargento, na boca do cara. Me coloquei no lugar dele e jamais faria aquilo. Ele é muito mais homem que eu. Entrou no cacete de novo. Mas daí nós fomos expulsos e o ele foi condenado a doze anos. Vim para Mato Grosso, Cuiabá. Passaram-se uns quinze meses, estou numa lanchonete nas margens do Rio Coxipó, em Cuiabá. Estou tomando uma cerveja, quem pinta na porta… O Zé Lopes, todo bem trajado, de chapéu panamá. Nossa Senhora! Entrou fumando um cigarro com piteira, alto estilo. Chegou, cumprimentou, perguntou se eu o conhecia. Claro que sim, ele fazia assim…
Carmem – Ele estava surdo.
Benedito – Ele falou algumas coisas, me mostrou o alfabeto do surdo-mudo, aprendi escrever e ler com as duas mãos. Oh, Zé! Como é que você está por aqui… Ah, fugi, tudo bem. Nessa época, em 1961, voltei a mexer com gado. Nunca parava em lugar nenhum. Tinha um cavalo, um arreio, um revólver, uma faca, três mudas de roupa e ninguém podia tolher um passo meu, que mudava o rumo. Mandou dirigir um rumo, já mudava. Tenho ojeriza a ser subordinado, dominado, isso é triste.
Carmem – Posso fazer uma pergunta para provocar…
Benedito – Pode, até duas.
Carmem – Você nunca se apaixonou…
Benedito – Se eu me apaixonei…
Carmem – Como você fazia…
Benedito – Olha, quando me apaixonava, era no meio do destino da vida. Era violento. Nesse tempo todo, me apaixonei duas vezes.
Carmem – E mesmo assim você se mandava…
Benedito – Me apaixonei, esse é outro capítulo, estava ficando para trás, a paixão não deu certo. Por esses caminhos aí, era um ambicioso. Quis casar com a filha de um grande fazendeiro. Isso deu na cabeça. Foi umas das correrias que tive que fazer. Depois me apaixonei de novo, com uma comerciante. Não deu certo. Essa segunda paixão foi em Rondônia. Nem existia como Estado de Rondônia, ainda era território. Circulamos por aqui, por ali, tocando para lá, para cá, estou chegando e não me enrosquei com a paixão. Fui parar também na Ilha de Marajó. Lá me casei com minha esposa, mãe dos meus filhos seis filhos, um faleceu. E foi a melhor coisa que fiz na minha vida. O melhor que fiz até hoje, foi casar com a D. Ademira, ela tinha treze anos.
Carmem – Ela era uma criança.
Benedito – Ela tem hoje trinta e seis anos e o meu filho mais velho tem vinte e um, já está na faculdade. Quando sai a velha e seus filhos, ninguém sabe quem é filho, quem é pai. Você terá a oportunidade de conhece-la na minha casa. Eles todos ali são eu, ele é seu filho, aquele outro ali também. Vamos correndo para uma festa, já ouvi mais de uma vez falarem “olha o broto com o coroa”. Ela é a companheira pela qual jogo tudo na vida. Me casei em 1963, e a vida nômade continuou.
Fim
Lúcio – Em 1974 houve o retorno a prisão. Nesta época, estava trabalhando na Ericson, de São José dos Campos, há quatro meses. Um belo dia chegando em casa, encontro meu pai, minha mãe e um colega da Volks com a Folha de S. Paulo na mão, que trazia a minha condenação numa instância. Foi aquele sufoco geral. O que fazer… Pedi que a minha família, meu pai e minha mãe viessem embora, que tinha que resolver com a minha esposa. Conversei, entrei em contato com o meu advogado. Antes de falar com ele, tinha um carrinho, que chamava de meu “pirata”, um DKV velho. Tudo que pude juntar, coloquei dentro e vim para São Paulo. Fiquei na casa de um parente. Na segunda-feira, entrei em contato com o meu advogado, tentando ver se era vantagem me apresentar ou não. Já estava disposto a pegar uma fronteira qualquer e depois ver para onde ir.
Betty – Quanto tempo você tinha de pena…
Lúcio – Mais de um ano, fui condenado a dois. Já tinha cumprido um. Exatamente no dia que estava cumprindo um ano, foi o meu julgamento e a absolvição. Saí, tinha que cumprir mais um ano. O conselho do advogado foi que seria besteira fugir. Já tinha cumprido um ano, o máximo que poderia ficar detido era uns quinze dias, até a condicional. Tinha condições de pegar, porque já tinha cumprido a metade da pena. Relutei um pouco. Mas não tem problema nenhum, vem que não tem problema. A condição que me impus foi que me apresentaria, sim, desde que tivesse o compromisso de ir direto para o presídio. Não queria novamente passar pela tortura. Ele disse que isso não teria problema, que entraria em contato com o delegado do DOPS e que era possível garantir. Então me apresentei. Fui até o escritório, mas o advogado não quis me acompanhar até o DOPS. Era aquele medo, na época, todo mundo. Fui até lá com a minha esposa e o irmão dela. Me apresentei e realmente cumpriram essa questão. Cheguei e me levaram direto para o presídio. Aí entrou com o pedido da condicional. Na primeira hora que o pedido entrou na 2ª Auditoria, o juiz daqui se julgou incompetente de julgar, porque eu tinha sido uma das pessoas que não colaboraram no processo. Ele mandaria que essa decisão fosse dada por intermédio do Conselho Penitenciário, em Brasília. Tudo bem, mas o advogado dizia que passasse um mês, tudo bem. Estava toda a documentação para Brasília, mas chegava lá, tinha aquele negócio, hoje faltou o exame de fezes, volta todos os documentos. Vamos, pegava o exame e mandava. Só que faltou o atestado não sei do que. Foram mais seis meses, essa briga. Quando completei mais de oito meses de prisão, que veio a condicional. A cada mês, tinha que comparecer na auditoria, aqui em São Paulo, para me apresentar. Nessa coisa toda, acabei sendo demitido da Ericson por justa causa. Quando saí em condicional, arrumei um serviço na Cofap de Santo André e precisava daquelas doze últimas contribuições do INPS. Fui na Ericson buscar esses papéis. Estava lá no departamento social, por acaso o gerente da ferramentaria me viu e me chamou. Ele queria conversar comigo. Peguei meus papéis e fui conversar com ele. Ele disse que não tinha nada a ver com os meus problemas políticos, com as questões que aconteceram, ele não queria que eu saísse da Ericson, queria que eu continuasse. Disse, me mandaram embora sem direitos, já estou com emprego arrumado. Ele insistiu, e continuei trabalhando lá. Fiquei por mais um ano e pouco. Depois, acabei sendo mandado embora, porque movi um processo contra eles. Não de plenos direitos da primeira demissão, mas por equiparação de salários. Fui demitido. Vim trabalhar na Siemens de São Paulo. Nesse período todo que vivi no Vale do Paraíba, da saída da minha primeira prisão, sinceramente, depois que me vi em liberdade, trabalhei na GM, na Ericson, participei das assembleias sindicais de São José dos Campos, fiz campanhas salariais, mas como observador. Não tive a mínima atividade política e sindical. Realmente, estava acovardado, com medo de qualquer tipo de participação. Após a segunda prisão e todo esse período na guarda da condicional. Parece que foi o mesmo que tirar toda essa covardia, jogar no lado, e comecei a ter uma participação, ainda tímida, mas um pouco mais ativa no movimento sindical da região. Mesmo assim, não falava em assembleia. Até que abri processo contra a Ericson e acabei sendo demitido. Fiquei dois meses desempregado, ali no Vale não conseguia serviço. Vim na Siemens, fiz um teste e passei. Quando estava com dois meses, o pessoal da Cofap veio me chamar para ir para lá. Nesse período, entrei na Cofap em 1977, tinha quinze dias de firma, fui parar no RI, devido a reclamação da péssima alimentação fornecia e fornece até hoje para os horistas. É um verdadeiro chiqueiro aquele refeitório. Mau cheiro, tudo sujo. E mesmo com quinze dias, virei a bandeja em cima da mesa e fui parar no escritório do homem, Dr. Amazonas. Tudo bem, estou demitido. Já estou na rua. Mas isso não aconteceu. A partir daí, comecei a levar marmita e a organizar o pessoal para que levasse, na tentativa de fazermos um protesto mais coletivo em relação ao refeitório. No refeitório, tinha uma área em que você esquentava a marmita. Colocava para o pessoal que devíamos recusar isso, porque não tinha sequer condições de você comer ali.
Carmem – E essa refeição era paga pelo trabalhador…
Lúcio – Era e é até hoje. Começamos a entrar com a marmita para a seção, fizemos fogareiro. Até um dia a segurança da fábrica começou a dar em cima e revistar na entrada do pessoal. Quem estava levando marmita tinha que ir até o refeitório, deixar e depois entrar. Já criei o primeiro rebu na portaria, junto com os outros companheiros. Lá vai o Lúcio de novo para o RI. Resolvi mudar de tática. Ao invés de levar marmita de arroz, feijão, carne, comida quentinha, comecei a fazer um lanche, que era aquele que comíamos às oito horas da manhã, quando o café chegava. Levava, embrulhado em papel alumínio, o bife. Dentro do armário, guardávamos umas cebolas, tomates. Na hora do almoço, pegávamos o fogareiro, fritávamos um ovo e acabávamos fazendo a refeição. Fazia a comida ali. Até que um dia, o guarda na pista. Chega lá, eu comendo meu bife, meu bacon, minha salada. Estou aqui para ver quem é que está comendo. Vamos fazer o seguinte, deixa eu terminar de comer, depois do almoço você vem e conversamos. Lá vou eu para o RI de novo depois do almoço.
Carmem – Como as coisas se davam no RI… Eles eram muito repressivos…
Lúcio – Eram, não. O RI, pelo menos nunca fizeram aquela ameaça. O próprio chegou um dia e disse que adorava fígado à veneziana. E a comida, de vez em quando passo pelo refeitório, é boa. Na integração que a fábrica faz, com os funcionários novos, ele diz que muita gente reclama, mas temos um nutricionista, é muito nutritiva. Para você ter uma ideia. Mas é um refeitório de fábrica. Nunca vi, até em fábrica de fundo e quintal, que servisse refeição daquele tipo. É mistura de sardinha preta, picadinho de carne, que nem em cadeia serviam.
Benedito – Gororoba.
Lúcio – O arroz, saía daquelas panelas de pressão, tal e qual era feito. A Cofap hoje tem mil e quinhentos funcionários. Como é feito em grande quantidade, na hora do almoço você via essas bacias de alumínio grande, que se usa no interior para tomar banho, espalhadas pelo chão do refeitório. Aquilo cheio de arroz cozido, não dava. A reivindicação que fazíamos, era no sentido de que quem quisesse comprar o vale de mensalista, comprasse, para comer no refeitório de mensalista. Pelo menos ali você tinha um tipo de mistura, de melhor qualidade e era bem mais limpo. Era servido em pratos e tal, então dava para comer.
Carmem – E a diferença de preços era muito grande…
Lúcio – O dobro. Aquilo era só para mensalista. Só o pessoal de escritório, administração, chefia. A hora que me vi cercado de todos os lados por comida, identificamos alguns mensalistas que não comiam lá, por razões de também não gostarem. Comprávamos o vale desse pessoal. Chegava na hora do almoço, tirávamos o macacão, nos trocávamos e íamos. Isso foi oito meses. Até que descobriram que tinha horista comendo no refeitório de mensalista. Veio o pau, corte de novo. Mas já havia terminado aquela vigilância em cima da marmita. Lá vou eu de novo com a marmita, reiniciando todo o processo. Essa briga durou até que saí da Cofap. Um período, ia almoçar no refeitório dos mensalistas, outro, levava marmita, depois, fazia lanche. Fui levando durante três anos. Houve também um período em que tínhamos dois turnos de trabalho, trabalhava na modelação, na fundição nova. Foi mandado embora o supervisor, estava precisando de substituto à noite. Antes disso, quando chegou em 1978, aconteceu a primeira greve no ABC, que começou na Scânia e foi se alastrando. Parou aqui, parou ali e a Cofap ainda não tinha manifestação nenhuma. Foi a primeira vez que concretamente escuto falar no nome do Lula como uma nova liderança cristalina, embora já fosse presidente do sindicato.
Carmem – Esse período que você esteve na Cofap, você trabalhava pelo refeitório, era uma luta individual sua…
Lúcio – Totalmente individual. Ouço falar do Lula. Mas quem é… Quem é o tal do Lula… Até identificar quem era a figura de Lula, tive que quebrar bastante a cabeça. Conhecia-o como uma pessoa sem nenhuma expressão, da época de 1971, quando formamos a chapa de oposição, em que ele entrava na rabeira da chapa do Paulo Vidal. Sempre ficava esse ressentimento, um cara que estava junto com o Paulo Vidal não pode ser flor que se cheire e essa era a primeira dedução. Inclusive, nem fazia ligação na época com o irmão do Frei Chico, que era um conhecimento muito vago que tinha dele naquela época. Vem as greves, acaba atingindo a Cofap. O pessoal da produção para. Trabalhava na modelação, uma das beiradas da produção, uma seção totalmente isolada, toda de vidro. A produção parada e nós ali na modelação trabalhando. Nunca me senti tão verme, tão covarde. Não tinha um trabalho de organização desta seção, que desse para puxar o movimento.
Carmem – E a Cofap, só parou a produção…
Lúcio – Parou produção, todas as áreas. Mas no meu setor, não. Trabalhava na primeira bancada, bem na frente da escrivaninha do engenheiro. Uma beleza, era aqui e a escrivaninha quase encostando. A partir do início do movimento, se postou ali, ficava ali o dia inteiro, não dava nem para conversar com os companheiros. Mas de vez em quando, escapava e ia para o meio dos peões. Dizia que tinham que começar a catar porca e parafuso e jogar naqueles vidros para a turma se tocar. Mas a greve de 1978 passa. Ficou três dias parados e o pessoal concedeu 12% de antecipação de salário e não aconteceu nada.
Carmem – Porque não esteve o sindicato…
Lúcio – Não, nada. Vem 1979, outra paralização. Até aí, não tinha nenhuma atividade fora da fábrica. Durante um grande período de greve, nunca apareci na fábrica. Também, não fui no sindicato. O presidente na época era o Marcílio, tinha algumas informações como um democrata. Ainda não tive aproximação naquele período. Mas participei da greve, não indo para o meu trabalho. Quando a coisa se resolveu, fui trabalhar. Aí que entra a questão, quando mandaram o encarregado de seção embora, o cara que tomava conta da noite.
Carmem – Depois da greve…
Lúcio – Depois, bem próximo ao dissídio de 1980. Concretamente, começo a fazer um trabalho mais efetivo na tentativa de uma organização interna. Comecei a ir ao sindicato de Santo André. E tentando fazer algum trabalho, iniciando pela…
Betty – Você assumiu o lugar desse cara demitido…
Lúcio – Não, eu chego lá. Começamos a fazer algumas. Tinha boletim do sindicato, eu que levava para dentro, camuflado, e distribuía, botava na chapeira. Começamos a fazer e levantar algumas denúncias internas. Esse encarregado é mandado embora, pediram para que eu fosse trabalhar no período noturno, neguei. Não estou a fim do cargo. Mas, quebra o galho, vai para a noite, pelo menos distribui serviço para o pessoal. Tudo bem, até que vocês escolham uma outra pessoa, mas não vou assumir. Chegava tarde, tem esse serviço para dar continuidade. Tudo bem, chegava o pessoal, faz isso, deixaram isso, tal. Faz aí, o que fez, fez, o que não fez… Não sou o encarregado, não tenho responsabilidade nenhuma. O pessoal, por questão de amizade, fazia. Terminava o serviço, se vira, encosta por aí. Foram x, essa tarefa que me deram. Eu sabia que tinha mais coisa para fazer, mas como era por tarefa, está cumprido. Acontece o seguinte, à noite, o horário da nossa janta. Era horário corrido, embora tirássemos uma hora. Chego uma tarde, fazia uma semana que estava nesta situação. Chego lá e recebo a seguinte orientação: a partir de hoje vocês vão sair uma hora mais tarde. Tem que marcar o cartão na hora da janta, que essa hora não vai ser mais paga. Disse que não concordava com isso. Vou dar esta informação do departamento pessoal, mas vou orientar o pessoal para não fazer. Não concordo. Mas você não pode. O que faço, é problema meu. Vou dizer o que vocês deixaram. Passei o recado para o pessoal, disse que na hora da janta pica o cartão e vamos sair no horário normal. Enquanto havia dito a parte para o chefe, quando chegou a hora da janta, estava o engenheiro, o chefe de seção, todos ali, como resolver: vamos jantar, não batemos o cartão. No dia seguinte, saí com todo o pessoal da Cofap e fui para o sindicato. Sete horas da manhã estávamos esperando o advogado intervir. Deu uma confusão, acabamos perdendo um dia ali parados. Aquele rebu e me pediram para ir para o dia. Tudo bem, fui e vi que enquanto estive lá, continuaram pagando essa hora do pessoal. Hoje, não sei se pagam ainda, ou se já teve reversão da coisa. Já na campanha salarial de 1980, fui nas primeiras assembleias na Cofap de Santo André. Tinha um diretor de base do sindicato. Só que ninguém o conhecia. Era um cara que conchavava por trás, pelas portas dos fundos, com a fábrica. Na primeira assembleia que fui, o Marcílio lá falando. E o companheiro que é diretor na Cofap… Espera aí, trabalho há três anos naquela desgraça e não sei que tem diretor lá dentro, e nenhum companheiro da minha área, da fundição, sabe. Aí denunciei o cara. Comecei no sindicato criando atrito com a diretoria. Veio outras assembleias e comecei a falar. Já fui catalogado pela Cofap. Identifiquei os espiões, e tinha algumas atitudes até infantis, inconsequentes. Um dia, estava trabalhando e o cara, que era um apontador de cartão, me aparece. Eram dois. Aparecem na modelação, dando uma daquelas visitas, para identificar quem era o Lúcio, quem era o cara que ia lá no sindicato. O cara ia passando, cheguei para várias pessoas na frente dele apontei e disse que era um filho da puta, dedo-duro. Estava aqui para ver quem é da Cofap que está falando na assembleia. Já estava identificado. Na campanha de 1980, participei da comissão de mobilização e da comissão de salário. Assim foi que foi deflagrada a greve. No primeiro dia, fui mandado embora. Continuei a briga, falava em todas as assembleias. Um dia em Jaçatuba deu um certo malabarismo para poder sair.
Carmem – O que é Jaçatuba…
Lúcio – É o Estádio de Santo André. Foi uma assembleia que o Lula foi. Uma questão que defendia naquela época e continuo defendendo. Normalmente as greves do ABC, acontecem em conjunto. Pelo menos o sindicato de Santo André e São Bernardo. Eu era contra se fazer as assembleias de São Bernardo, para depois tomar uma decisão em Santo André. Se é para fazer isso, faz assembleia conjunta. Uma em São Bernardo, outra em Santo André, depois em São Caetano e se tira uma decisão conjunta com a categoria do ABC. Isso não era aceito. O Marcílio não aceitava, embora discutisse muito com ele essa questão. Não, isso não está correto. Não é por aí, cada sindicato tem a sua base. Em nenhuma assembleia que o Lula foi no Jaçatuba, foram as maiores. Naquele estádio, o que você via de Veraneio zero quilômetro por volta, era para doido nenhum botar defeito. Aproveitei e mandei ver em cima do DOPS. Aquele discurso radical, agressivo mesmo, que o lugar daqueles caras era estar prendendo bandidos e não vigiando trabalhadores em assembleia. Para sair do estádio foi uma briga, tive que deitar no chão do carro para despistar. Até que veio a cassação. A hora que deu a notícia, estava no hall de entrada do sindicato de Santo André. Disse para alguns companheiros que foram presos naquele dia não irem para casa, porque quem fosse, a polícia ia ganhar. Fui para a minha, porque era em São Mateus, muito longe, um endereço que não tinha nem no sindicato, nem na fábrica. Você achar minha casa era a coisa mais difícil do mundo. Fui embora e a primeira medida que tomei…
Carmem – Tirar o número da placa da casa.
Lúcio – Foi conversar com os dois vizinhos do lado e dos fundos, que também eram metalúrgicos. Qualquer barulho que vocês escutarem durante à noite, não se apavorem, que sou eu pulando o muro para me mandar. Combinei com a minha mulher. Bateu palmas, tocou a campainha, dá uma enrolada e dá tempo de me mandar por aí afora. Combinei com a vizinha, acabei ficando quarenta dias sem sair de dentro de casa. Enquanto não soltaram o Lula, não saí. Fiquei realmente preso em casa.
Carmem – Prisão domiciliar.
Lúcio – O Dom Cláudio, o pessoal que estava escondido na igreja do bairro ou na casa do bispo de Santo André, ele um dia disse que queria ver onde eu estava e trabalhar para trazer-me de volta. Esse recado, recebi por intermédio do meu irmão, para que fizesse essa transferência. Falei que era mais seguro onde estava. Para ir para lá, ia ter que fazer uma puta ginástica, sair durante a noite, deitar dentro de algum carro. Chegar lá, tanto a igreja, como a casa do bispo, estava sendo vigiadas, para entrar ia ser fogo. Disseram que ia estar com advogado lá, mas qualquer bobeada você acaba dançando. Não estava disposto a correr esse risco. Também estava numa má situação, o dinheiro já tinha acabado.
Betty – Teve fundo de greve…
Lúcio – Teve, mas nestas horas, é utilizado para a greve. E para aquelas pessoas que realmente estão passando fome. Essa é a grande questão. Nós mesmo temos uns meios de nos virar, a família ajuda e vai levando. Mas estava ali sem dinheiro e com a minha indenização retida na Cofap. A homologação estava marcada, mas não podia sair de casa para receber. O que eu fiz… Por intermédio de um outro irmão, que conhecia uma pessoa dono de cartório, tramamos tudo e em um dia, oito da noite, deitei dentro do carro e fui para o cartório. Lá fiz uma boa procuração civil de tudo.
Carmem – Plenos poderes.
Lúcio – Plenos poderes. Assinei e voltei para casa. Com essa procuração, você mesmo se vira. Tive que resolver na calada da noite, transgredindo horário de cartório. Deixaram em aberto a folha do expediente para poder fazer o registro. Fiz a procuração, mas a mulher nem precisou usar, três dias depois o Lula foi solto. Agora dava para andar pela cidade. No dia seguinte, fui para Santo André. Passei na sede do sindicato, não tem mais problema, o cacique foi solto. Recebi a indenização. Foi quando, de maio até junho, fiquei desempregado ali no ABC. Fiz teste em várias fábricas. Passei e teve firma que chegou no dia de começar o trabalho, o cara vinha olhar, infelizmente foi cancelada a vaga, e por aí afora. Não arrumava serviço em lugar nenhum. A ficha já tinha corrido para tudo quanto é canto. Foi quando o meu irmão, que trabalhava na Ford, disse que estava precisando de ferramenteiro. Mas eu oferecia resistência em trabalhar como horista, principalmente de ferramentaria de porte pesado. Sempre trabalhei de porte leve, mesmo na época que trabalhei na Volks, em São Bernardo. Mas o dinheiro já estava acabando de novo, bom, tudo bem. E a Ford tem uma coisa de bom, ela não dá, nem pede informação de ninguém. Fiz o teste e passei.
Carmem – Devido a que…
Lúcio – É uma política interna deles. A Ford sempre foi assim, pelo menos o que ouvimos falar. Ela sempre teve uma característica meio paternalista, de que o funcionário dela é diferente.
Carmem – A família Ford.
Lúcio – É, talvez se deva a isso. Embora, na época que entrei, a rigidez era fora do comum. O chicote funcionava.
Benedito – Isso há pouco tempo…
Lúcio – Isso em 1980, quando entrei. Foi em junho de 1980 que entrei na Ford.
Carmem – Porque eles eram tão rígidos…
Lúcio – O problema era o seguinte. A entrevista que fiz com o meu supervisor na época, no primeiro dia de trabalho ele disse que não estavam tanto preocupados com a capacidade profissional do elemento, o que eles queriam era colaboração. O que significava isso para eles… Se você tivesse algum problema para resolver, era preferível que faltasse num dia de semana, não num sábado ou domingo de hora extra. Qualquer um que se recusasse a fazer hora extra, num primeiro corte ia para a rua. Podia ser o melhor profissional, não fez hora extra, se contrapôs a qualquer determinação da chefia, era rua. Inclusive, nas sextas-feiras dentro da Ford era uma loucura. Toda sexta-feira tinha facão. Chegava de manhã ficava aquele bando de idiotas, um olhando para a cara do outro, será que é você, será que sou eu…
Benedito – Pressão constante…
Lúcio – Toda sexta-feira era isso.
Benedito – Principalmente na última do mês, era pior.
Lúcio – Sempre na última sexta-feira do mês. Então era aquele negócio, será que vai vinte, será que não vai nenhum… Era aquele clima de terror constante.
Benedito – Como pode fazer um profissional trabalhar assim…
Lúcio – A Ford nunca teve departamento social. Hoje tem, mas naquela época não tinha. Não tinha transporte coletivo. Enfim, uma série de coisas. E o peão nunca teve o direito de se manifestar, dar palpite no próprio serviço que ele estava executando. Era esse o regime interno. Mas sempre teve um padrão de salário, comparado com o geral dos mais altos. O excesso de horas extras que se fazia, sempre dava aquela falsa aparência que você ganhava o dobro do que um operário qualquer. Mas também trabalhava o dobro.
Betty – Quantas horas você fazia a mais…
Lúcio – Nos primeiros três meses era experiência. Fazia cinco horas extras por semana, uma hora por dia, mais dez no sábado e domingo.
Carmem – Normalmente…
Lúcio – Normalmente por semana dava vinte e cinco horas de extra. Joga isso numa média de quatro semanas, você trabalhava trezentas e quarenta horas por mês. Esse era o ritmo direto.
Benedito – E de bico calado.
Lúcio – Sim. Se você faltava no sábado, na segunda-feira tinha que inventar as maiores justificativas para o seu encarregado. Podia trabalhar quatro sábados e domingos direto, se faltasse um, pronto. Já era motivo para ser dispensado.
Carmem – Podia ir aos sábados e só trabalhar três horas…
Lúcio – De forma nenhuma. Entrava no sábado às sete horas da manhã e saía às seis da tarde. Ou no sábado às seis horas da tarde e saía as quatro da manhã. E fim de papo. A mesma coisa no domingo. Nos primeiros três meses, fiz hora extra. Nunca ganhei tanto dinheiro na vida. Chegar e pegar o salário. Mas também, do outro lado, vivia mijando no calcanhar. Chegava em casa, queria cama. Qualquer um que chegasse do seu lado, era briga. Com as crianças… E num regime de trabalho, na ferramentaria e na estamparia, turnos de revezamento de dois em dois meses. Trabalhava dois meses direto à noite e dois de dia. Isso causava um puto de um desequilíbrio de salário. Quando você trabalhava à noite, além do adicional noturno, a hora extra na Ford é paga bem acima dos percentuais das outras empresas. Uma normalmente você ganha um adicional de 62% e meio. As duas primeiras horas das dez à meia noite era 25% a mais. Uma outra percentagem que dá 33%, depois da meia noite até às quatro e quinze, dá 62.5%, aí a hora tem mais o adicional de 25% da extra, sei que dá.
Benedito – E é reduzida também em alguns minutos, uma hora de cinquenta e dois minutos.
Lúcio – No sábado, a partir da meia noite, você ganha 135%, que aí já é domingo.
Benedito – Com adicional.
Lúcio – Com o adicional noturno. Chegava dia dez, o dinheiro que você pegava. Era muito, mas levava a vida lá dentro. Esse era o clima na Ford.
Carmem – Porque as pessoas passavam isso… Viviam para trabalhar…
Lúcio – Um grande número de pessoas passa isso. Se não perde o emprego.
Benedito – E onde arrumar outro…
Lúcio – Em meados de 1980 para frente, começava a se projetar a grande crise de desemprego. Os caras, estou arrebentado, não aguento mais. Tem um fato muito interessante, que ocorre no fim desse ano. É um reflexo da fuga do pessoal para resistir a esse tipo de pressão. A segurança da empresa resolve dar uma batida no vestiário, por causa de bebidas alcoólicas dentro da fábrica. Na ferramentaria, você tinha em torno de duzentas pessoas por turno. E o problema do pessoal alterado alcoolicamente depois da refeição, era um número incrível. A segurança resolve dar uma batida nos armários. Pura e simplesmente recolhe duzentos e cinquenta e sete litros de cachaça “Cinquenta e um”.
Carmem – Nossa! O que é isso…
Lúcio – Era aquela questão, queira ou não, o álcool acaba sendo um calmante e estimulante da pressão que você recebe. É a fuga.
Carmem – Quantos trabalhadores tinham…
Lúcio – Nos dois turnos, uns quatrocentos e cinquenta. Fora que o pessoal saía na hora do jantar e do almoço para beber no bar em frente a Ford. É um reflexo muito claro da pressão que o pessoal sofria naquele momento.
Carmem – Isso refletia nos acidentes de trabalho…
Lúcio – Não saberia precisar isso para você. Tinha um número razoável de acidentes de trabalho ali dentro, mas leves. Por outro lado, independe de uma série de falhas, a Ford, enquanto fornecimento de equipamento de segurança e uma certa vigilância nessa questão, sempre foi criteriosa. Embora tenha problemas sérios de insalubridade até hoje, em algumas seções. Mas a segurança sempre teve uma certa vigilância e controle. O número de acidentes nunca chegou a ser fora do normal. Mas era um fato que ocorria. Num primeiro momento, trabalhei seis meses à noite. Nos de experiência. Depois vim para o dia. No início, tive um apelido na ferramentaria, o pessoal me chamava de “mudinho”. Realmente não conversava com ninguém. Participava de tudo que é rodinha, mas só ouvia, pouco falava. Quando entrei, tinha o objetivo de tentar fazer algum trabalho ali. Quando percebo aquele ambiente, parece que se reforça mais ainda, no sentido de que realmente precisava fazer alguma coisa. Mas conversava com um companheiro, como é que você aceita essa situação, quanto tempo você tem de casa… Porque sempre foram os eternos colaboracionistas com a empresa. Se manteve uma certa espinha dorsal e a única coisa que acontecia era o rodízio das beiradas do prato. Era não aguento mais, não dá, alguma coisa precisa ser feita. Era comum escutar que não dava para fazer nada, porque só tinha puxa-saco, dedo-duro e sem vergonha. Não me conformava, um falava mal do outro. Era um ambiente assim, de fofoca programada. Se chego para ti e meto o pau nela, você sai, vai meter o pau em mim. Depois ela vem para cá dizer que você foi para ela falar mal de mim. Era esse o ambiente da Ford.
Carmem – Em 1980…
Lúcio – Até 1981, tinha muito isso lá dentro.
Carmem – Como era a presença do sindicato…
Lúcio – Você tinha um velho chamado Garcia, aquele velho espanhol que se aposentou há pouco tempo. Ele sempre foi a ponta de lança do sindicato lá dentro. Mas era alvo de gozação do coletivo. Era o homem que era gozado em todos os cantos. E a penetração do sindicato sempre foi nenhuma dentro da Ford. Principalmente pela própria questão do Joaquim. Também, por esse paternalismo disfarçado: bom salário, não atrasava pagamento, uma assistência médica boa, comida boa. Sinceramente, não tenho condições de ter o mesmo padrão de comida na minha casa.
Benedito – Não dá.
Lúcio – Isso no refeitório dos horistas e dos mensalistas, onde você pode comer, também. Basta comprar o vale ou dar dois dos horistas. É muito boa a comida. Tem diariamente quatro tipos de mistura, três tipos de pratos, leite à vontade, pão à vontade, suco, doce. Tudo isso formava um conjunto. Se por um lado os caras tiravam sangue, por outro tinha aquilo que se pode considerar como uma certa recompensa. O que você escutava era que tem muito puxa-saco, dedo-duro, só tem filho da puta. Depois quatro meses e pouco escutando isso, já estava de saco cheio. Um dia, lembro-me perfeitamente. Foi o marco do início do trabalho. Fui no almoxarifado pegar uma ferramenta. Tinha mais dois companheiros na porta, discutindo um problema de perseguição ali dentro. Encostei, estou ali ouvindo a conversa. Disse, porque não fazemos alguma coisa contra isso… Mas não tem solução. Tem solução. Qual é… Nós nos organizarmos. Mas vem aquele velho jargão, aqui não dá, só tem dedo-duro, puxa saco, sem vergonha. Disse que estavam enganados com essa questão. Falei que provava para eles que não era assim. Em quantos estamos aqui… Em três. Acho que estamos conversando entre nós, pelo menos nós três temos confiança mútua e nenhum é puxa-saco, dedo-duro e filho da puta. Por aqui podemos iniciar. É verdade! Tudo bem, sou novo aqui, não conheço absolutamente nada. É um outro bobão que está aqui se somando também. Mas porque não marcamos um encontro fora, onde possamos sentar e bater um papo em relação aos problemas da fábrica… Mas só nós três… Acho que deve ter mais uma outra pessoa que você confia aqui dentro, então convida. Então fizemos essa primeira reunião com sete companheiros. Acontece aquelas casualidades. Foi feita aqui no centro de São Paulo. Conseguimos uma sala e fomos no domingo de manhã, sete horas, um frio desgraçado e uma garoa. Falei, com um tempo desses, não vem ninguém. Mas vieram sete companheiros, que foram convidados. Por incrível que pareça, marcamos um encontro em frente ao Teatro Municipal. O primeiro que chegou foi um crioulão, o apelido dele era tigrão. Medroso feito uma desgraça, mas estava interessado em fazer alguma coisa. Está ele encostado em uma das pilastras do teatro, o gerente da ferramentaria estaciona o carro bem na frente. O negão não sabia o que fazer, o homem não podia vê-lo. Se escondeu. Na hora que chegamos, quando ele contou, puta que pariu, será que vazou… Tudo bem. Fizemos a reunião, debatemos superficialmente, cada um dando depoimento das questões de seu setor. Nesta primeira, participou um cara que eu conhecia daqui de São Paulo. Marcamos uma segunda, no mesmo local, no domingo de manhã. Já reunimos quinze companheiros, duas semanas depois. Quinze companheiros. Começamos a traçar alguns planos. Basicamente, não podíamos desenvolver um trabalho naquele momento aberto, que todos tomassem conhecimento. Tinha que ter alguma segurança, de emprego. É aí que lançamos mão de uma coisa. A partir de 1983, o acordo coletivo é onde se conquista que as eleições da CIPA teriam que ser abertas e com a participação de todos os funcionários. Não eram mais chefias que indicavam os cipeiros. Estava aí uma brecha.
Carmem – Já era 1983…
Lúcio – Era 1981. Essa conquista foi no dissídio de 1980, na campanha salarial. A partir de 1981 as eleições da CIPA, quem quisesse se candidatar, se candidatava. O mais votado, seria cipeiro. Já não era mais por indicações de chefia. Na primeira vez que eu votei, veio o supervisor com a urna embaixo do braço, com umas cédulas com três nomes. Vota aqui. Não conheço esses nomes. Pode votar em qualquer um, desde que seja um dos três. E era a própria supervisão que indicava. Obviamente, aquele cara que não desse problema para eles. Qual era a jogada… Era você se candidatar a CIPA. Começamos a desenvolver um trabalho no sentido de um número maior de nós sermos candidatos. Nesse primeiro momento, esse pessoal se concentrava mais na ferramentaria. Mas, você tinha na época na Ford, um total de 61 cipeiros, porque cada seção tinha um. Por ali, dava para encaixarmos vários companheiros. Me candidatei. Chegou no dia da votação, a segurança resolveu mudar o processo. Ao invés de eleger um cipeiro por seção, passaram a um por departamento. Falei, pronto, me ferrei. Porque além de ser um dos mais novos, na ferramentaria tinha uma lista de cinquenta e sete candidatos, caras com dezessete anos de casa. Nem todo mundo me conhecia, tinha oito meses. Foi logo no começo de 1981. Então, rodei. Foi a hora em que tive a primeira decepção com o Sindicato de São Paulo. Na época, seu Clemíldes era secretário-geral. Telefonamos e dissemos que estava acontecendo trapaça na eleição. Pedimos o comparecimento de um diretor, na hora da apuração íamos fazer uma ata pedindo a impugnação das eleições. Porque você prepara uma campanha na questão dos números e ele se reduziu para vinte. Ele disse que ia. Mas não foi para conversar com os trabalhadores. Vi direto para o RI. Fez os conchavos dele. Na hora que estava saindo da fábrica, o pegamos num canto. Mas já fui lá, elege cinco, não tem problema, pode continuar. Bom, agora dancei. Mas chega na hora da apuração, fui o candidato mais votado da ferramentaria. Ganhei a eleição e outros companheiros também. Então tivemos dentro da CIPA nesse primeiro momento três companheiros. Vamos desenvolver um trabalho onde. Com esse ano de estabilidade, começamos a arrancar maior liberdade para nos locomover na fábrica e não cair com as quatro. A oposição na época tinha gente lá, do PCdoB, do sindicato. Cada um se reunia num cantinho e tchau e benção, puxava sardinha para o seu lado. O pessoal da oposição sindical, na tentativa de formar uma comissão de fábrica. Isolada, totalmente isolada do próprio coletivo. Aquele feudo com algumas pessoas. Teve um candidato pela oposição sindical que era o Burípedes. Conversando com o grupo que tínhamos formado, o pessoal começou a propor procurar o pessoal da oposição e conversar, nos unir para fazer o trabalho. Não adianta querer negociar com o outro grupo, se você não tiver força, porque vai a reboque. Vai atender o trabalho que eles querem imprimir e na época eu já não concordava. É a posição que defendia, só negocia quando tem força. Quando não tem, apoia ou não. A decisão foi justamente pela acumulação de forças para entrar em acordo e depois entrar numa discussão com o pessoal da oposição para ver o que poderia ser feito de trabalho conjunto interno. Quando tínhamos força suficiente para isso, foi exatamente após a eleição. Fomos conversar com eles, num nível muito claro, que existia opiniões contrárias de grupo para grupo. O problema era como unificar essa base. Interesses políticos dos grupos A e B não nos interessam. Interessa discutir o que é importante para o trabalhador na Ford. A partir daí se fechou esse acordo. Sempre fui partidário, independentemente do tipo de diretoria que você tem no sindicato, você tem que levar a massa para dentro e ali brigar pelas suas posições. E o sindicato deveria participar de uma futura negociação de comissão de fábrica. O conjunto dos trabalhadores tinha que decidir o que era melhor naquele momento. Defendendo desde o início a autonomia dessa organização. A partir daí, começamos a fazer reuniões mais amplas, fora do sindicato, ainda de uma forma que não era conhecida pelo próprio. Porque o poder ali, ir para o sindicato significava dispensa. Qualquer reunião que fizéssemos significava.
Carmem – Porque…
Lúcio – Era dedurado. Esse era o sentimento dentro da Ford. Tínhamos que criar condições para que essa massa fosse para o sindicato, dar segurança para eles nesse campo. Começamos a fazer reuniões em São Caetano, na Associação dos Trabalhadores, quando o sindicato começou a participar, inclusive o próprio Luís Antônio e outros. Iam lá, ninguém sabia quem era diretor do sindicato, porque senão não ia. Colocávamos que esse pessoal iria ter a palavra ou a participação nas reuniões num processo gradativo e quando solicitado por nós. Esse processo foi seguido até quando reivindicamos o aluguel de uma sede no Ipiranga. Fomos negociar essa questão com o Joaquim, eu e outro companheiro da oposição. Exigia-se um local para que pudéssemos nos reunir perto da Ford. No início houve uma certa resistência e deixamos claro que a igreja, o PT e a oposição tinham, e ofereciam para nós. Só que não queríamos que fosse feito paralelo ao sindicato, porque não concordávamos com isso. Queríamos fazer lá. Alugou-se uma sede e começamos a fazer essas reuniões mais próximas da Ford. E hoje ela não existe mais, estamos sem sede no Ipiranga.
Carmem – Quando fecharam…
Lúcio – Faz uns dois meses.
Betty – Ele falou que ia fechar, porque estava muito deteriorada.
Lúcio – As outras casas da região estão mais deterioradas.
Carmem – Em dois meses fecharam…
Lúcio – Dois meses e pouco. Concretamente começamos o trabalho de organização na Ford, em relação a comissão de fábrica. Acho que pararia por aqui, deixa o Matogrosso falar um pouco, depois eu retomo.
Benedito – Bem naquela época, vamos dar aqui uma retomada na história no fim de 1965. Comecei a pensar um pouco mais sobre o que estava aprontando, porque estava começando a formar família. Tinha um menino adotivo, filho de um casal compadre. Fiz uma mudança nessa época em virtude de uns desentendimentos que tive. Fui para Goiás, para São João do Itajá. Na outra cidade tinha um apelido, “biscoito duro”. Quem falasse nisso apanhava. Fui trabalhar nesse local, uma fazenda de um dos maiores criadores de gado nesse país, doutor Cenir Rodrigues. Um fazendeiro tipo feudo, onde prevalecia a ignorância, a maldade e o desprezo pela vida humana. Tinha algumas habilidades para trabalhar como vaqueiro. Nessa oportunidade, esse cidadão mandou buscar no nordeste do país, mais precisamente no Maranhão e Rio Grande do Norte, centenas de trabalhadores para desbravar a fazenda. Dez mil alqueires goianos, que são exatamente o dobro do paulista. Chamava alqueirão. Ele mandava o cidadão, que é chamado lá no meio de gato, o agenciador, ir lá contar no nordeste aquela história bonita de luta, fartura, de terra boa sem seca. Um termo que eles usavam com toda a força, que em Goiás chove direto, não falta água, o que é verdade. Se o pessoal vinha, com um compromisso assumido com o famigerado gato de trabalhar a terra, permanecer pelo espaço de três anos. Toda a produção seria dele, no último ano formaria o pasto, plantaria o capim. O fazendeiro se comprometia a dar casa e comida, no primeiro ano, pagar alguma coisa, e no segundo buscar a família dele no Nordeste. Naquela oportunidade me convidaram a participar de uma dessas viagens, porque faltava quem anotasse. Quando descobriram que eu escrevia me convidaram. Fiz uma dessas viagens de Goiás para o Rio Grande do Norte, de caminhão, buscar gente para trabalhar. Nessa região, o pessoal local já não trabalhava mais na fazenda, nem amarrado. Já conhecia, sabia que ia de graça. Eles iam buscar no nordeste. Lá, em Mossoró, foi arregimentado naquela ocasião quatrocentos trabalhadores para vir. Como tinha ido apenas três caminhões, lá eles contrataram outros. Aquela promessa de fartura, de terra boa. E eu só anotando gastos e despesas e o nome do pessoal que vinha. Não tinha preferência nenhuma, o gato era um tipo pitoresco, bom de conversa. Quando chegamos em Goiás, na época da derrubada, maio, quando estão terminando as chuvas, era tanta gente trabalhando e os primeiros tempos, o pessoal era tão envolvido, com tanta habilidade, que aceitava aquilo. Nos galpões, todo mundo dormia relativamente bem, em rede, e uma alimentação de primeira. Nunca vi gente tão entusiasmada, muito sofrida, lá da região do agreste. Sofrida mesmo e aquela fartura. Tinha um galpão que trabalhava mais de trinta mulheres fazendo comida, cada três dias era uma vaca que morria para a turma comer. Mas era carne, arroz, feijão e farinha à vontade. Ficava observando aqueles companheiros, era um sorriso de um lado a outro. E o homem sempre dizendo, vamos terminar a roçada, a derrubada, vai se botar fogo, vocês vão plantar a roça e tudo que se produzir aí é de vocês. Não quero nada e são três anos, depois vocês plantem capim para eu criar boi e tudo bem. Eram derrubadas anuais, seiscentos mil alqueires por ano. Quando estava encerrada e o tempo ia firmar, no mês de setembro, quando o tempo era bem quente mesmo e se queimava aquilo, começava o drama do pessoal. O cidadão, depois de três meses, maio, junho e julho, começava a solicitar para o fazendeiro um dinheiro para mandar para o nordeste, para a família. E começava a reivindicar o que o gato tinha prometido. Aí começava a intriga. Tinha nessa ocasião, no mínimo uns cem jagunços, alguns da pior estirpe, uma droga. Eu ficava lá com o gato.
Carmem – E nesses três meses eles não recebiam nada, só comida…
Benedito – Não. Só comer, beber e trabalhar. Era a proposta que já vinha de lá. Eles tinham que demonstrar trabalho, mas era o tempo suficiente para o fazendeiro derrubar a mata e deixar a terra preparada para o capim. Era um golpe. O tempo medido para fazer a derrubada, depois da queimada, preparar o pasto, era facílimo. Depois, começava os desentendimentos. Cada um daqueles nordestinos, a maioria, quando percebe que está sendo enganado reage. Vi muitos deles reagir. Cada um, era uma morte. Presenciei no ano de 1976, mesmo sem querer, foram dezesseis mortes. E nada acontecia com esse fazendeiro. Até hoje, ele é mais ou menos da minha idade. O verdadeiro comandante é o pai dele, ainda é vivo também, Vidal Rodrigues. As primeiras mortes intimidaram o pessoal. Foram percebendo aquilo era crítico não esperavam mandar embora, fugiam. Mas isso fazia parte de um plano, aqueles assassinatos eram para amedrontar.
Carmem – Deixavam fugir… Iam atrás, ou não…
Benedito – Não. Porque o que eles queriam era que o pessoal fugisse. Se arranjavam em outras fazendas próximas e aí sim mandavam provocação. Alguns se submetiam, achavam que dava para tocar. Nesta altura, chegava no primeiro ano. Depois que uma boa parte fugiu, chegou a ficar 30%. Estes, começavam a sofrer pressões e sugestões de toda a espécie para trabalhar cada vez mais. A saída do galpão era antes do sol nascer, escuro mesmo. Ia para a roçada queimar, um processo que se chamava escorvada. A mata era forte, violenta e foi derrubada e ficava um monte de pau. Cortasse um pouco das pontas das varas, para sentar mais o elevado, para o terreno ficar mais forte. Esse grupo que ficava, propunham que logo que começasse a chover ia repartir a roça, um pedaço para cada um. E dinheiro nada. Foi feito um novo entendimento, logo que terminassem a roça, iam buscar as famílias. Mas era o fim do mês e eu trabalhando com o gato. Me pagavam, todo mês eu recebia.
Carmem – Porque te pagavam…
Benedito – Alguns recebiam. Tinha eu, um tal de Joãozinho paulista, um tal de Caíque. Pessoas que lidavam com o gato e valiam para a fazenda, que andavam na cidade e em outros locais. Esses eles pagavam. Quando vieram as primeiras chuvas, o fazendeiro comprou um bocado de sementes. Agora vamos plantar a roça, depois vão buscar a família. Já não eram muitos. Ninguém tinha direito de plantar o que queria e não havia divisão. Vamos todo mundo coletivamente. Depois, damos um pedaço para cada um. Vocês são cento e cinquenta, depois repartimos em pedaços. Depende da família que tiverem para cuidar. Era tudo coletivo, o pessoal plantou na boa fé.
Carmem – Era tudo, o que eles plantavam…
Benedito – Só milho. O pessoal queria arroz, mas aqui não se planta nessa época, que chove muito. Plantamos mais tarde, em outra gleba. Tem varjão, vou mandar passar um trator, vocês plantam. Mas o pessoal perguntava, quando vamos fazer o rancho, a casa para morarmos… Vamos fazer coletivo, depois que estiver tudo cultivado na roça.
Carmem – O pessoal morava onde…
Benedito – No galpão.
Carmem – Todo mundo…
Benedito – Todo mundo. O pessoal dormia de rede, num galpão bem comprido. Um travessão aqui e outro ali e a rede amarrada, tudo com corda. Duzentos homens. Era um espaço, uma rede.
Carmem – Deixava as coisas onde…
Benedito – Mas que coisas… Ninguém tem nada. Só pegar as ferramentas da fazenda. Era levantar de manhã, prender a rede com a corda, lavar a cara, tomar um café e ir para a roça. Que coisas… Ele tinha um armazém na fazenda e fornecia. Quando gastava um sapatão, dava outro. Era trabalhar e comer. Quando terminou a lavoura toda…
Carmem – Quantas horas de trabalho era por dia…
Benedito – Eram quatorze horas, direto.
Carmem – Só trabalhava, não fazia mais nada…
Benedito – Só trabalhava. Nem pescar e caçar, não deixavam. Caçar com o que, pescar com o que… Tem gente que tem uma ideia, fazer uma armadilha, um pau de taquara. Na região a natureza é muito pródiga.
Carmem – E não podia nem…
Benedito – Não, trabalhava todo dia. Domingo, sábado, feriado. Depois de terminada, em um determinado dia, não viram quantas pessoas tinha, arrumaram dois caminhões. Planejaram com o pessoal. Agora vocês vão ao Nordeste, ver a família, contar como é aqui. Vocês já observaram tudo, e vai trazer todo mundo. Lembro que nesse dia o pessoal até fez uma festa, ficaram todos contentes. Pensei comigo, isso vai dar sujeira. Não tem nem dúvida. Não deu outra, botaram esse pessoal todo nesses caminhões, andaram 400 km até Aporé.
Carmem – Em direção ao Rio Grande do Norte…
Benedito – Sim. Na saída de Goiás com o estado do Mato Grosso, passando pela floresta Rio Negro, Jaci, saindo no Alto Tacai no Mato Grosso do Norte. Nunca vi um lance mais incrível. Depois de uma boa viajada, doze horas, começaram a deixar o pessoal pela estrada, quatro ali, quatro aqui. Distribuiu esse pessoal nuns 200 km.
Carmem – E não deu para o pessoal sacar que ia acontecer isso…
Benedito – Sim. Mas, cada caminhão ia com dez jagunços armados e nós éramos um monte de gente sem um canivete. Muitos deles desciam a coice de carabina. Todos eles tinham comido não se sabe o que, que provocava uma disenteria. A última refeição botou. Acho que era sal de grau.
Carmem – A refeição…
Benedito – Esse pessoal dispersou. Alguns ficavam na fazenda, outros em outras. Aí arrumou outro pessoal e começou a carpir. Em todo aquele lugar que tinha sido plantado. Esse foi o lugar que trabalhei no ano de 1966. E observava aquilo tudo e não sentia jeito para fazer nada. Passando por outros caminhos, analisando melhor não vai dar certo. Tinha pensado em fazer alguma coisa, mas não via ninguém para conversar, me convidar. Tentar fazer algo. Pensei em fazer sozinho e não dava certo, depois que o pessoal foi embora.
Carmem – Esse pessoal era muito passivo, sem perspectiva de vida, como era isso…
Benedito – Não, era um pessoal absolutamente sem conhecimento de nada. Alguns chegavam a procurar pelo menos uma delegacia. Qual é o delegado de uma vila daquelas vai confrontar com o senhor dele. Alguns ali em São João, e hoje se chama São João de Itajá, foram denunciar e ficaram presos e apanharam, porque o delegado era parente do fazendeiro. Nessa delegacia, depois dos dois foram, fazer audiência e depois soltaram. O alcoolismo era o problema maior do mundo. Eram muitos que bebiam. É preciso ser uma pessoa boa de cabeça e que viva de muito tutano, para enfrentar uma parada dessas. É duzentas vezes mais difícil que dentro da pior fábrica aqui. E a impunidade. Todo mundo sofria as consequências, percebia que por mais que tentasse não conseguia punir o homem e ia acabar entrando também. Então se dispersou, não sobrou nada. Todo esse pessoal trabalhou de abril até setembro, depois que terminou as chuvas, só em troca de comida e água. E depois que foram embora…
Carmem – Aqui pelo menos ganham alguma coisa, uma porcaria, mas ganham.
Benedito – Depois que esse pessoal dispersou, começaram a montar gado, na fazenda. Chegou a minha vez, começavam a não pagar. Já estava com seis meses sem pegar uma grana. A alimentação deles não faltava e pegava o resto na fazenda, no armazém. Comprava uma camisa, se na cidade custava três cruzeiros, lá eles cobravam dez, e marcavam na caderneta. Um dia, fui falar com o Cenir Rodrigues, que era o chefinho, uns quatro anos mais velho que eu. Hoje ele é o maior criador de boi no país. Tem fazenda em Araçatuba, Vitória, Goiás, Mato Grosso. Esses caras andam meio dia de jeep e não acaba a terra. Entrei no escritório dele e falei que eu estava pensando em vir para São Paulo. Ele perguntou porquê. Falei, não é da sua conta. Primeiro tornei e peguei a minha mulher, Dona Eunice, a menina adotiva e tirei a minha família. Vou perder, arrumar confusão. Ninguém nunca falou como você fala. Respondi, não tinha falado, agora falo eu. Sempre fui rebelde. Se você não disser para que quer o dinheiro, não lhe dou. Quantos meses você tem para receber… Seis meses. Ganhava exatamente nessa época seis cruzeiros por dia, cento e oitenta por mês. Ele fez as contas e disse, quinhentos cruzeiros dá para você quebrar o galho… Vou aceitar, porque se tiver que perder, perco menos. Falei tudo bem, o senhor me dá os quinhentos cruzeiros. Vou pegar. Puxou a gaveta e tirou o revólver. Falou, só quinhentos, você quer… Tremi. Estava armado, também, nas ele estava com a arma na mão. Você sabe que nós temos aqui duas cachoeiras. O revólver engatilhado e eu não podia fazer nada. Realmente, nem a fala não saía. Olha, o meu dinheiro acabou. Tudo bem, não dá para pagar, também não precisa. Vu trabalhar, compromissos que tenho, deixa para lá. Ele dizia assim: porque vocês querem dinheiro… Comem, bebem, tem roupa, sapato, usam remédios que compramos. Falei, tudo bem, não vamos brigar por causa disso, até gosto de trabalhar aqui. Tem um momento que você pode chegar, pode ser valente, mas outro que não dá, mas deixa estar. E aquele gado do pasto, como é que está… Tudo bem, deixa comigo, está tudo bem cuidado. O gado era todo separado por cor, branco, vermelho, malhado, tudo muito bonito. Fui embora, fiquei pensativo, tinha vinte e três alqueires. Um mundo.
Carmem – Ninguém está recebendo…
Benedito – Não. Depois que mandou o pessoal embora, parou de pagar. Não sei, acho que pensavam que se não fossemos pagos enquanto estavam lá, podia haver alguma movimentação. Fui para casa pensando. Era um rancho, mais ou menos dois cômodos. Uma cozinha, um quarto, não tinha nada dentro. Os meninos também dormiam numa tarimba, que é uma cama de varas. Púnhamos em cima esses sacos de milho, e colchão de palha, não tinha nada. Pensei, caralho, porque tive que ser isso. Mas, vinha pensando há muito tempo o que estava fazendo. Tentava acertar os lugares por onde passava, onde tinha alguma luta, estava sempre sozinho. Fui assim durante muitos anos, aliás, até entrar aqui na Ford. Salvo raras ocasiões, fui um lutador solitário. Não concordava com as coisas, já brigava, quebrava tudo. Fazia o que dava para fazer e ia embora. Não me juntava muito com os outros. Ideologia, partido, nunca confiei em ninguém. PC, PCdoB, PDS, UDN, PCBs. Falava, em partido político, sei daí…Tudo corrupto, ladrão. Não vem, não, que não gosto desse povo. Assim sempre foi a minha concepção de partido. Até hoje, nunca pertenci a nenhum, nada disso. A Volks tem um cara de partido que andou um ano tentando fazer minha cabeça. Iam em casa almoçar, no sábado, passavam o dia inteiro. Quando terminou o ano, agora, companheiro, você está suficientemente crescido, aí, a ficha do partido. Falei, não. Como é que pode, depois de um ano de falatório na minha cabeça. Planejei não perder o meu tempo de trabalho nessa fazenda, comecei a matutar como faria isso. Não posso ficar aqui, com um monte de jagunços. Percebi que tinham recomendado aos jagunços me observar. Começaram a aparecer no meu rancho, com garrafa de cachaça no dominó, caras que nunca tinham me dado as ordens. Cada tipo, nossa senhora! Vamos tomar uma cachaça, aqui não tem, tenho aqui. Se você trazer, nós bebemos. Não me falavam nada do assunto, mas deu para perceber que passaram a me observar. Fiz de conta que estava tudo bem. Não comentei, não disse uma palavra e me desdobrei no trampo. Passei a mostrar um interesse que nunca tive. Qualquer novidade em termos de gado, quando nascia um bezerro novo, macho, de alta qualidade, separava, ia lá chamar para ver. Nasceu um bezerro, esse vai ser campeão. O orgulho do criador de boi é criar um reprodutor bacana. Levava lá, mostrava, ele conversava comigo. Percebi no ato, esse vai ficar eternamente aí, e não ia acontecer nada. Estava chegando a hora, deixa estar, que safado é assim mesmo. Capturava por todas as cidades do Mato Grosso garotos sem pai, sem mãe e levava para a fazenda e descaminhava, sem nenhuma remuneração. A maioria desses jagunços e alguns vaqueiros, eram pessoas que ele capturou assim. Não ia ter que gastar nada com mão de obra. Só formar a fazenda e ir criando boi, sem custo nenhum. Trouxe um garoto, lembro bem, o Zé Pretinho. Esse era um capeta, aquilo não era gente. Um dia o pessoal estava descascando milho no paiol para tratar dos porcos. Eram vinte sacas por dia, seiscentos quilos. Para nós, consumo da fazenda e venda. E esse subir na escada assim e os meninos estavam descascando o milho e fazendo guerra de espiga. Um tacando no outro e veio uma espiga bem nos olhos do fazendeiro. Ah! Ele virou um monstro. Pegaram esses meninos, meteram uma surra. Amarraram o menino com um pé e o dependuraram. Aquilo me dava uma coisa, ficava pensando no que fazer. Nesta altura, já estava há quatro meses sem a família, sem os meus. Então, fui lá, segurei o menino, todo encaroçado, e o desci. Um pessoal que tinha acabado de chegar estava sentado nuns troncos do mangueirão, e aquele grupo levantou dois caras para vir em cima de mim e dele. Ah! Meu Deus! Quem foi que mandou você tirar esse menino daí… Falei ninguém, tirei porque isso é um tratamento desumano. Perguntei, você gostaria que um filho seu fosse tratado assim… Ah! Não estamos aqui para conversar fiado. O menino não parava nem em pé. Bateram nele com vara de mamona, ficou uns calombos, e com relhos, com umas talas bem largas. Dois homens vieram se aproximando, um olhou para o outro, o que nós fazemos com o homem… Nossa Senhora! Até hoje eu arrepio quando lembro. O outro falou assim, deixa, o menino já sofreu, deixa para lá. Peguei o Zé Pretinho, levei para o meu barracão, fiz uma salmoura, botei uma gamela, uma vasilha de barro, que substituía a bacia naqueles locais. Fiz uma salmoura, botei ele dentro. No outro dia, fui dar banho. Ele chorava, é o jeito, salmoura é o melhor negócio para sangramento, hematoma. Demos um banho e botamos para dormir na rede. Aquilo me deu uma angústia, um nó na garganta. Fiquei com medo que iam me matar. Ficamos todos ali. Tocaram um pouco de viola, o pessoal foi se recolhendo. Chegava umas nove horas, estava todo mundo recolhido. Era obrigado. Fui para casa, olhei bem, aquelas coisinhas de nada. E saí do rancho. Mais para baixo tinha uma cobertura assim, ô, Benedito, está em casa… Percebi quando acendeu um isqueiro e entrou, porque o rancho era todo de madeira. Vi que ele entrou por um lado e saiu pelo outro, e só dali a pouco foi só fumaça. Botaram fogo no rancho. Dessa eu escapei. Fui embora, andar. Foi cortando e saí perto do rio, sabia que tinha uma canoa dele. Do outro lado, tinha uma fazenda. Estava marcado para eu pegar daí a três dias, dez vacas, que o outro fazendeiro tinha comprado. Pensei, fiquei matutando. Se der certo ou não, tudo bem. Fui lá, falei com o fazendeiro, ele já me conhecia, tinha feito muito isso, comprei uns cavalos. Falei que o homem tinha me dado os cavalos. Tudo bem, era conhecido. Essas vacas eram de primeira cria e nem marcas tinham.
Carmem – Ficou com as vacas para você…
Benedito – Exato. Eram de raça, muito rara, boa de gado da Itália. Uma vaca pequena, mas dá leite para caramba. Ele queria para tirar cria. Toquei elas sozinho até um lugar chamado Jaci, uma vila. Ainda faltavam três dias para a mulher vender. Ele vai mandar buscar. No dia em que cheguei em Jaci, vendi, ganhei seis vezes mais do que tinha para receber. Juntei a nota. E sumi uns dias, e eles não sabiam para onde eu ia. O que vou fazer… Sempre fui astucioso. A política, acrescento mais um adendo, ser sindicalista. Está no rol, também. Isso foi em 1966. Em 1967, fui encontrar a família. Com eles, resolvi mudar para o Estado do Pará. Mudava sempre. Aprontava, não por ser maldoso, por ser vagabundo. Acontece que os outros queriam me enrolar, usando via que não dava para partir para o confronto. Por incrível que pareça, quantas vezes passei em Serra Pelada, e ninguém sabia de nada. Passei nessa região, onde está hoje aquele mundo de escavação. Fui morar em Marabá, morei um bocado de tempo lá. Construíram uma Nova Marabá, já tinha passado por ali. Resolvi dar um tempo, ficar quieto e largar mão de confusão. Os sofrimentos da mulher e dos filhos não tinham tamanho. Já tinha a Maria Helena, e a filha adotiva, a Cidinha. Sofrimento que não tinha mais jeito. Fomos morar numa fazenda e aquilo era a coisa mais triste do mundo. O que tinha de berne, o Luís tem marcas na cabeça até hoje. Berne é um bicho depositado pela varejeira e ele penetra. O Luís ficou com a cabeça, você punha a mão, tudo afundado. A Heleninha pegou um sarampo e ficou numa situação lastimável. Nessa ocasião, já comecei a ouvir alguma coisa sobre a movimentação da guerrilha, no Araguaia. Essa região é um pouquinho distante de onde tinha movimento. Mas ouvíamos falar. Passei uns dois anos na fazenda, trabalhei com uma pessoa que até correspondeu, me pagou, não precisei fazer arte. Fiz outra mudança, para São Geraldo do Araguaia. Passei a ter um contato com esse pessoal que fez movimento. Isso já era 1968. Conheci em São Geraldo do Araguaia, em São Félix, três elementos que foram os principais desse movimento de guerrilha. O Osvaldão, um ex-oficial formado aqui em São Paulo, no CPOR. Conheci um gaúcho chamado Paulo Gonçalves, também um grande participante e umas outras pessoas. Já íamos para 1969. Fui administrar uma fazenda nas margens do Rio chamado Caiane, onde se desenvolveu muitas ações de guerrilha. Comecei a visitar, era abandonada. Tinha que fazer uma reestruturação na casa, que era boa. Comecei a tratar de organizar as pastagens. O dono era daqui do Estado de São Paulo, de Campinas, seu Augusto. Uma pessoa até aceitável. Logo no início de 1969, começaram a aparecer algumas pessoas que estava na cara que não eram do meio. Não tinha muito conhecimento dos movimentos, mas conhecia o povo do local e sabia que não eram de lá. Essa fazenda era velha, tinha sido abandonada há muito tempo. Em muitos locais tinham uns restos de rancho, umas taperas e esse pessoal começou a aparecer e reorganizar. Via um tancho abandonado, passava um tempo, via movimentação de mato cortado cobertura, que será isso… Nunca via as pessoas. Um dia, flagrei um grupo de cinco. Para quem vive na cidade, não consegue imaginar como é possível um lugar sem ninguém. Tem lugar que não vemos ninguém. Às vezes eu ficava cento e tantos dias sem ver uma pessoa. E flagrei o pessoal. Nessa ocasião, estava com uma barba e um cabelo desse tamanho, quase quatro anos sem cortar. A barba virava para cima e eu parecia o Marquês de Tamandaré. Roupa de couro, de vaqueiro, chapéu grande, revólver. O pessoal ficou estarrecido. Boa tarde, boa tarde. Ele me olhou e falou para eu descer. Não vou fazer nenhuma pergunta, não sei das suas intenções. Não sei o que você quer.
FIM
Benedito – Essa passagem que vou contar foi citada no livro do Clóvis Moura. Ele contou a história no livro e não sabe quem é. Sou o personagem. Ele não sabe. Chama-se “A Alegria do Araguaia”, um livreto pequeno. Clóvis Moura, era um jornalista da época que trabalhava aqui em São Paulo. Não o conheço, nunca vi pessoalmente. Essas pessoas, deu para perceber, estavam com dificuldades de alimentação. Perguntaram se tinha um lugar onde pudessem comprar alguma coisa. Mandioca, banana. Disse que não morava muito longe e que também tinha chegado há pouco tempo e ainda não havia plantado nada. Mas no fundo do rancho, na tapera onde estávamos encostados, percebi que haviam tentado fazer uma limpeza, dado um trato, e existia uma plantação de inhame. Perguntei se não tinham encontrado nada no quintal para comer. Foi a comprovação que não eram gente do sertão coisa nenhuma. Tinha uma moça, dois rapazes. A moça de cabelo carapinha. Futuramente vim saber que era a Enira, finada. Segundo consta, ela realmente faleceu numa pega. Perguntei para eles, porque no local tinha muito inhame, se não conheciam nada ali que pudessem comer. Ainda ela perguntou se alguma flor que pudessem fazer salada. É isso aí, viemos de outra região. Não quiseram dizer que não eram do mato. Viemos de outra região e não conhecemos. Eu tinha um facão muito grande, comecei a cavar para que vissem. Tinha muita mangarita e inhame desse tamanho. Eles ficaram olhando um para o outro. Também, não tem necessidade de comer inhame. Vocês estão caçando, vieram pescar… Estão querendo conhecer a natureza, são naturalistas… Seja lá o que for, não interessa. Eles não se abriram nessa oportunidade. Passou-se alguns tempos e esse pessoal começou a aumentar.
Carmem – No mesmo rancho…
Benedito – Sim, inclusive aumentaram o rancho. Um dia eles estavam cobrindo com sapé e não sabiam. Parei e os ensinei. Era um lugar de tanta miséria que ninguém se preocupava se alguém ia morar lá ou não. Essa fazenda tinha uma extensão de vinte e seis mil alqueires goianos, ou seja, cinquenta e quatro mil paulistas, cinquenta e duas vezes vinte e quatro mil metros quadrados. E não tinha 10% de plantação. Tinha pastagem e criava-se um pouco de gado. Percebi logo no fim de 1969 do que se tratava. Tinha conhecido antes em São Geraldo do Araguaia um dos principais elementos desse movimento, o Osvaldão, que era formado pelo CPOR aqui de São Paulo, um ex-oficial. Uma pessoa de uma bondade fabulosa, um coração. Uma pessoa fantástica. Passaram algumas vezes no meu rancho. Conversávamos algumas coisas. Acho que por percepção, nunca me disseram exatamente do que se tratava e nunca me convidaram a participar de nada. Mas passaram a fazer uso de mim, como companheiro. Gostavam muito de saber das coisas nessa época, porque eu ia muito para São Geraldo do Araguaia, para fazer algumas compras, que era um pouco mais longe. Ia algumas vezes e sempre ficavam captando, perguntando sobre a movimentação policial. No Natal de 1969, tive ciência que era realmente um movimento armado. Faltavam dois dias e apareceram algumas pessoas em casa, quatro. Percebi que eram militares, à paisana. Um deles realmente fez o segundo exército. Eu era caseiro, também, e estiveram investigando se tinha visto alguém diferente. Se conhecia alguma pessoa. Disse que não. Absolutamente, não tenho encontrado ninguém. Perguntaram se morava mais alguém na fazenda. Se mora, não conheço. Pode até morar por aí, que a fazenda é muito extensa. Sempre procurando não comprometer. A fazenda é muito extensa, não ando nela toda. Tem cinquenta e dois mil alqueires. A maior parte é mata, não tem caminho, abertura, nada. Pode até ter um castanheiro por aí, um ex-seringueiro, um índio semicivilizado, não sei. Passaram uma noite. Pediram para dormir e disseram que não queriam dormir no galpão para o boiadeiro. Aqui em casa vocês não vão dormir. Tem eu, minha esposa, um menino e uma menina. Falei, em casa vocês não dormem, se quiserem, é lá no galpão. Percebi que eles estavam bem armados.
Carmem – Você ficou com medo de deixar eles dormirem porque estavam bem armados…
Benedito – Fiquei com receio que eles pudessem aprontar alguma coisa. Tinha a impressão que s eram militares, mas também podiam não ser. Podiam ser militares ou coisa pior. Me preocupei com as crianças e a esposa. Dentro de casa, não vai dormir. Se quiserem, vão lá no galpão. Se entreolharam, pensaram. Tinham aqui um jantar, um cateto do mato, dei com mandioca para eles comerem. Tenho aversão a militar, também. Falei, só tem isso aí para comer, se quiser à vontade. Eles pegaram o cateto com mandioca.
Betty – O que é cateto…
Benedito – É um animal da família dos suínos, mas bastante diferente do porco. Mas o aspecto e a carne são bons. Comi isso anos e anos. Falei para a patroa, para tirar e dar a mandioca mais ou menos dura para eles. Não deixar cozinhar bem e não por sal, só com água. Sempre tive aversão a esse povo. No início de 1970, em fevereiro, esse pessoal que andava por lá começou a aumentar. Ia às vezes na Vila Xameo, São Geraldo ou alguma vilinha pequena, Santa Terezinha. O comentário era que tinha vinte mil comunistas na selva. Ia chegar tropas do Rio, não sei de onde e ia haver uma briga violenta. Um dia no armazém de Xameo, escutei uns policiais militares no local, criticando o Osvaldão. Uma mulher reagiu e disse que ele não era o que estavam falando, guerrilheiro e comunista. Era uma pessoa que tinha uma vida muito simples naquele lugar e só fazia o bem. Uma pessoa formidável. Um dos policiais a agrediu dentro do armazém. Tinha umas latas assim soltas e eu me lembro que quando ela levou uns tabefes e foi sair correndo, derrubou um rolo de corda e o que vinha atrás, tropeçou no rolo e quebrou a cara na porta. Pegaram ela e deram o maior cacete. Nós estávamos em quatro dentro da venda, saímos em sua defesa, mas quando nos aproximamos para separar, um deles apontou a metralhadora e ficamos ali imobilizados. Sei que a levaram, não sei para onde.
Carmem – Ela apareceu depois, ou não…
Benedito – Apareceu, em Santa Terezinha, que é uma vila pequena. Fizeram um cercado de pau a pique, sem cobertura, desta altura. As pessoas que percebiam que estavam envolvidas, tinham conhecimento dessa guerrilha, trancavam lá. Era um troço de quatro metros aberto e vigiavam por fora. Comiam, bebiam, faziam as necessidades, tudo ali. Eu observava, vi aquilo muitas vezes. Quando esse pessoal começou a aumentar, começaram a me procurar. Percebi que não tinham estrutura de quase nada. Davam importância se vissem um pedacinho de plástico, uma lata. Tudo que podiam pegar, pegavam. Era um pessoal desprovido de tudo o que era preciso para fazer uma revolução. Faziam um armamento mísero tremendo. Apareciam de vez em quando com algumas espingardas, uns revólveres. Me pediram, uma ocasião, se podia vender uma vaca para eles. Percebi qual era o comandante, um tal de Paulo Gonçalves, um gaúcho que foi o comandante de um dos destacamentos, A, B, C. Chamei-o de lado e falei, tem mais de duas mil vacas no pasto. Não te dou, porque não são minhas. Se vira aí, não vou me comprometer dizendo que te dei, nem que te vendi. Quero comprar, ele falou. E abriu o jogo, não estamos aqui para tomar nada, principalmente de você. Falei, isso aí não é meu, não, é do dono da fazenda. Se você quiser come-la, pode pegar. Ele falou, depois, e você, para falar com o patrão… Ele vem aqui de vez em quando, nem sabe quantas vacas tem. Com essa leve autorização, mataram dezesseis vacas. De vez em quando, achava só a cabeça, os pés e o couro. Lá pelos campos, eles mesmo matavam e desapareciam. No fim de setembro de 1971, sei que houve uns pegas lá entre policiais, do exército e eles. Nessa ocasião, ficaram no galpão que eu tinha feito, quarenta militantes. Tinha uns que não eram brasileiros, com o nosso uniforme. Pelo sotaque, e depois vim a saber, que era gente de Angola, treinadíssimos em guerrilha de mato. Você vê como é, no momento percebi que não eram brasileiros, mas não sabia exatamente o que eram. Depois lendo, fui complementar e saber. Em diversas oportunidades esse pessoal parava em casa, tanto do exército quanto da guerrilha. Numa oportunidade, já estava certo que ia dançar. Vou acabar perdendo. Todos que chegavam, me fazia de inocente. Tudo que me perguntavam, dava um jeito de não me meter nessa história. Uma ocasião, tinha um grupo de pessoas da aeronáutica no galpão, discutindo e se preparando para dar umas investidas. Era um major que os comandava, falava para evitarem o confronto. O propósito militar não queria o confronto. Ficava no meio deles enquanto contavam histórias, de caçada, de pescaria, de cavalo, de boi. E nunca caíram. Sei que houve uns pegas lá, soube de mortes inclusive. Algumas vezes, vi vestígio de gente que foi assassinada. E presenciei, infelizmente, um enforcamento terrível. Um mineiro chamado Pedro Américo, e esse no livro do Clóvis está citado com outro nome. Esse livro é interessante, ele esteve na região, pegou pedaços de histórias. Já viu esse livro, um pequenininho…
Carmem – Não.
Benedito – Eu tenho um. Ele captou pedaço de história e contou, bem, até. Mas fez o que foi possível. O exército pagava mil cruzeiros para cada informante, por cada guerrilheiro que eles apontassem, por cabeça. Esse Pedro Américo, um castanheiro, conhecia a região a fundo. Sabia onde era possível se alojar, onde tinha algum meio de alimentação. Passou a ser um inimigo número um desses guerrilheiros. Porque conhecia muito bem as trilhas e apontava, o exército executava e pagavam para ele. Lá um belo dia, essa turma do Paulo Gonçalves, que era o agrupamento C, que era A, B, C, capturaram esse informante, fizeram um julgamento sumário e o enforcaram. Lembro perfeitamente, não vi esse acontecimento, mas achei lá pendurado. Estava um temporal, e o vento balançava aquele desgraçado na ponta da corda. Tinha ido numa outra seção de pasto e percebi isso, foi umas das coisas mais tristes que vi. Estava com uma língua deste tamanho de fora, mais de um palmo, e embaixo, o rastro de muitas pessoas. No mato, passamos a observar todos esses detalhes. É a nossa comunicação, a mesma coisa do jornal. Do outro lado tinha marca de coronha de arma no chão, algumas butucas de cigarro e tudo. Percebi que tinha acontecido alguma coisa. Posteriormente, soube que houve um julgamento e, segundo os critérios dos revolucionários, foi executado. Em 1971, sei que houve diversos combates naquela região, que era extensa. Estavam seguros que eu corresse a região num raio de cinquenta km. Segundo deu para perceber, nunca passaram de trezentos e cinquenta pessoas. Não há um número preciso, não se sabe. Quando se iniciaram as chuvas, tempo ruim para quem vive no mato, soube que levaram diversas desvantagens. Sempre soube dos acontecimentos, porque em casa era um ponto do pessoal do exército que voltava. Armavam umas barracas de lona e pernoitavam. Ficavam por lá, próximo à casa da fazenda. Era uma casa feita de madeira e ao lado tinha um galpão. Tomava conhecimento de tudo ali. Numa dessas ocasiões, evitei dizer para esse pessoal do exército que alguém tinha passado por tal lugar, que fui mexer com gado lá e vi. Mas contava sempre a direção onde percebia que o pessoal estava andando. Quantas viagens perderam. Uma noite, estavam conversando dentro da barraca, levantei muito cautelosamente e fui escutar. Estava uma escuridão, já tinham apagado a luz do lampião. Esses lampiões modernos de exército. Estavam me pondo em dúvida. É o homem do rancho, não tem aspecto de ser da região, que tinha vindo do sul. Estavam discutindo sobre uma última história que eu tinha contado para eles, que tinha visto um pessoal em tal lugar, porque perderam a viagem. Um deles falou que ainda bem que tinha chovido e não podíamos observar os rastros. Porque se não tivesse chovido e nós não tivéssemos encontrado, teríamos certeza que ele estava mentindo. E eu do lado de fora, escutando. Falei, já escutei o suficiente. Fui para casa, intranquilo. Pensei bem e falei, vou tirar a família daqui e puxar o carro. Tinha recebido do fazendeiro seis meses de salário adiantado. Combinei com a minha patroa. Percebi nesta oportunidade que a minha situação estava perigando e resolvi me mandar. Minha patroa tinha sofrido de malária e percebi que poderia sair sem despertar suspeita nenhuma. Ela não estava boa ainda, porque a febre tem intervalos. Geralmente no início é um dia com febre, um sem. Depois, vai se amainando, mas até uns três meses, de vez em quando, ela se manifesta. No fim de semana, era semana santa, um pouco antes, a febre voltou. De lá para São Geraldo, era longe e a condução rara. Eu viajava uma certa distância, trinta km em cavalo. Depois tinha um jeep, que ia a cada quinze dias para a cidade. Tinha também uma camionete velha. Às vezes eu ficava três dias para depois seguir caminho. Até que soube que esse pessoal do exército ia para São Geraldo. Dei o alarme, disse que minha mulher estava muito doente. Veio um dar uma olhada e perguntou se sabia o que era. Falei que era febre malária. Ele disse que aqui só tomava comprimido. Falei que ela estava muito fraquinha, vamos ver se dá um jeito de leva-la para a cidade. Ele falou que em cima, na encruzilhada, tinham um jeep, se eu quisesse leva-la até lá, eles levariam até São Geraldo do Araguaia. Mais uma vez, larguei tudo o que estava fazendo para ir embora. Ainda voltei para lá para não levantar suspeitas, fiquei alguns dias e depois fui embora. As poucas coisas que tinha, ficou tudo para trás. Depois cheguei em São Geraldo e fui conversar com um dono de armazém, que era ligado ao pessoal do movimento. Ele disse que o mesmo major que tinha estado em casa, estava contando no estabelecimento dele que não acreditava em mim, e numa hora dessas eles iam me descer o sarrafo, para eu contar onde estava alojado um bocado de gente. Falei tudo bem, não sei de nada, não participei de nada. Mas sabia que tinha dado algum apoio, proteção, ajuda ao pessoal e que essa suspeita do militar já existia. Perguntei para ele que tipo de gente que estava aparecendo por lá, e ele falou que era pessoal que o exército contratou de Angola. Tinha um bocado de gente de lá. O Brasil não tinha quase experiência em guerrilha de mato, então tinham trazido para o exército brasileiro. Era um tipo meio escuro, com sotaque português. Naquela época não sabia, vim a saber depois que eles vinham da África. Já tinha tirado a minha patroa da região, a mandado para a casa da irmã, num lugar chamado Taquari, em Mato Grosso do Norte, bem perto de Alto das Graças. Vou, também, para essa região. Fiquei com medo de perseguição, que viessem atrás de mim. Contei para todo mundo que ia para Manaus. Lá me chamavam de catarino, é um apelido por eu ser catarinense. De Taquari, fiz outra mudança para não deixar rastro. Vim para a divisa de São Paulo, um lugar chamado Nossa Senhora do Guadalupe do Paraná. Uma cidade bem pequenininha, que hoje não existe mais, a barragem de Ilha Solteira engoliu. Para me desvencilhar de tudo, vim trabalhar ali. Em fins de 1971, estava trabalhando na barragem. Já logo no início, percebi que tinha um movimento operário. Nesse intervalo, participava de alguns movimentos na construção civil, não muito. Trabalhei lá um ano, depois fui transferido para a construção de pontes, a hidrelétrica. Depois, essa companhia de construção pegou um serviço no norte de Goiás, Araguaiana, e fui escolhido para ir para lá. Quase na mesma região do Araguaia. Não quis pedir as contas. A situação, nessa altura, devia ter Leny, já tinha a Maria Helena, a Nelly, e o Sílvio, que é o caçula, nasceu em Ilha Solteira. Comecei a pensar nos meninos, e escolaridade deles.
Carmem – Você teve filho esse tempo todo que trabalhou no mato…
Benedito – Sim.
Carmem – Como sua mulher fazia…
Benedito – Nos primeiros, eu mesmo fui o parteiro. O Luís, a Nelly, a Helena, fui eu que cuidei. Depois nasceu um que faleceu. Tinha um que a vizinha cuidou, outro foi a mãe dela. Só o Sílvio, nasceu sob cuidados médicos, no Hospital, em Ilha Solteira, com o INPS e não tem nada diferente dos outros. Comecei a pensar, estou sem direção, não tenho profissão, estou cansado. Comecei a perceber que minha mulher nunca reclamou, mas percebi que a cada mudança que fazíamos, ela ia desanimando. Acho até que estou correndo o risco de ver a família se deteriorando. Vim morar, nesta ocasião, em Aparecida Teodora, que é a primeira cidade. A última foi Santa Fé do Sul, bem na confluência entre Paraná e Rio Grande. A primeira cidade depois que voltei do Mato Grosso, foi Aparecida Teodora. Botei os meninos na escola particular. Quando entrei na fábrica, fui avisado pelo supervisor que ia ser dispensado, porque tinha participado da greve. Disse, tudo bem, se quisesse me dispensar que dispensasse, que não estava nem aí, participava conscientemente, por livre e espontânea vontade. Achava que devia participar e em todos os movimentos que houvesse, participaria. Não tive ânimo para trabalhar, mas não aconteceu nada. Os dias se passaram, alguns meses, quatro. Continuei trabalhando. Em 1979, sem maiores novidades. Nos primeiros anos de fábrica na Ford, não disse de onde vim, o que queria, nem nada. No sindicato vinha uma vez ou outra. Já naquela oportunidade percebi facilmente ele não atuava coisa nenhuma. Tudo desorganizado, bagunçado. Toda vez que eles vinham, percebíamos claramente a força que faziam para o pessoal aceitar.
Betty – Você não sentia uma divisão dentro da diretoria…
Benedito – Não, tinha pouca participação e não tinha realmente uma visão política da atuação do sindicato. Conhecia poucas pessoas, via uma vez ou outra, mas não mais a fundo. Mas, dava para perceber que nas assembleias eles faziam de tudo para o pessoal aceitar as propostas.
Carmem – Quem era o diretor do sindicato, responsável pelo setor da Ford…
Benedito – Nem cheguei a tomar conhecimento. Não, francamente, não lembro mesmo. Dessa época, o contato era tão pouco que não lembro. Em 1981, quando o pessoal começou a se movimentar para formar a comissão de fábrica, um dia no bar me apresentaram uma folha assinada e disseram que era para reivindicar uma organização interna. A folha estava em branco, ninguém tinha assinado ainda. Perguntei porquê. Disseram que tinha diversas folhas e que alguém tinha que começar. Nem me lembro se era alguém desse grupo, que hoje pertence a comissão. Sei que escrevi nome, apelido e número da chapa também. Passaram-se alguns dias e recebi a visita de dois companheiros que pertenceram a primeira comissão de fábrica. Marcão e Peninha, na modelação. Me convidaram para bater um papo e participar do movimento. Não estava por dentro de nada, absolutamente. Perguntei para eles porquê… Disseram que indicaram para falarem comigo. Mas não tinha dito nada, se gostava ou não, se participava. Pensei se devia me envolver com aquele pessoal, tinha algum receio. Me disseram que tinha que decidir imediatamente, porque no outro dia ia haver assembleia no sindicato, em São Paulo, para escolher a comissão provisória. Pegaram-me de surpresa. Não sabia de nada. Fui com eles, clandestinamente, numa reunião dentro da fábrica, numa plataforma, chamada C, dentro dos banheiros que são em cima da linha de produção. Lá, tomei conhecimento do que vinha a ser comissão de fábrica. Nessa ocasião, já tinha sido entregue um abaixo-assinado a empresa e eu nem sabia disso. Faltava um elemento, eram quinze que estavam selecionando e faltava um. Aceitei participar dessa luta. Vim com eles à noite para o sindicato, quando foi realizada uma assembleia com o pessoal do diurno, tinha umas quatrocentas pessoas. Comecei a sentir entusiasmo, porque percebi que não era nenhum político que estava dirigindo aquilo, eram os peões de dentro da fábrica, uns eu conhecia. Comecei a sentir entusiasmo por aquilo. Repentinamente, fui escolhido como um dos integrantes da comissão provisória. No outro dia de manhã, sábado, houve outra assembleia com o pessoal do noturno. Tinha mais gente ainda que no dia anterior. Na sexta-feira o pessoal sai e é mais fácil ir para casa. De madrugada, saiu todo mundo para o sindicato, escolher essa famosa comissão de fábrica. Me lembro que muitas pessoas conheciam o Mauri, e não me conheciam. Quem é aquele branco, lá… É o Mato Grosso. Tinha esse apelido porque vim de lá, sempre contei que morei em Mato Grosso, gostava de lá, e aí pegou. Começou essa luta dentro da fábrica, e reuniões clandestinas para todo lado, para desenvolver a ideia.
Carmem – Como era essa organização, quantas pessoas participavam…
Benedito – Geralmente, era esse grupo. Os quinze. Foi feito um documento pelo sindicato e apresentado a empresa, para tomarem conhecimento que tinha havido uma assembleia os homens escolhidos, a comissão provisória para discutir a futura comissão, o estatuto, tudo, eram esses. O sindicato apresentou a empresa, solicitou nossa presença em determinado dia para nos apresentarmos. Na véspera, para a empresa dizíamos que a comissão ia ganhar, lutar por mais salário, evitar dispensa, para melhorar o relacionamento, para o pessoal não ser judiado pela supervisão, que era terrível, me lembro muito bem. Assuntos de promoção, que ninguém ia ser demitido. Tudo isso se falava para incentivar o operariado a participar. Essas conversas começaram a acontecer no restaurante, na hora do almoço, no bar, no jogo de futebol de salão, nas seções, se alastrou. Seríamos presentados para a empresa, na véspera, demitiram sete elementos. Fui chamado à tarde, no momento que foi notada essa dispensa. Fui chamado pelo Lúcio, pelo Eurides, que é um dos pioneiros na formação da comissão de fábrica, para bater um papo. Precisávamos tomar uma providência como comissão, porque tinham dispensado uma turma. Mas não tínhamos nenhum tempo livre, não dava para sair da seção. Inventei que precisava ir ao banco, que é interno e eu trabalho do outro lado da rua na fábrica. Me deram essa autorização e fui na plataforma. As reuniões eram cada vez numa plataforma diferente. Passei a ser um alvo fácil da vigilância e da supervisão. Modelador usa roupa branca, é a única seção que usa roupa diferente na fábrica. No mundo inteiro, nem sei porquê. Quando queriam descobrir onde era a reunião, era só me seguir. Cheguei lá, estava aquele alvoroço, como fazemos para parar a fábrica… Vai discutir com os homens, vai ser o diabo. E você, Mato Grosso… O que houve… Mandaram embora sete companheiros nossos. Isso é provocação, para ver se realmente temos alguma representatividade. Não tinha ideia do que podíamos fazer. Falei para o Lúcio: “Vamos solicitar uma audiência com a diretoria. Conforme o posicionamento deles, fazemos o nosso”. Vamos tentar um diálogo, quem sabe está mais fácil do que pensamos. O companheiro Eurides falou: “Será que temos capacidade de paralisar a atividade da fábrica…” Uns duvidaram, outros achavam que os demitidos não mereciam isso. A ideia era boba ainda, uns criticavam aqueles que tinham saído, que eram uns maus trabalhadores. Teve gente que achou que a empresa estava certa. Falei, caramba, onde estou envolvido. Fomos falar, pedimos para conversar com a empresa e ela aceitou. Chegamos lá, aquela turma no corredor, para ser recebida pelo Relações Industriais. Naquela ocasião era o Senhor Ademir Garcês, tremendo de um vaselina. Não deixou a turma entrar, só três chegavam. Travamos a discussão, ele disse que os demitidos, estavam demitidos, não tinham retorno. Pedimos um tempo, sem capacidade nenhuma para diálogo, a não ser o Lúcio e o Eurides. A discussão, nessa oportunidade, girou em torno da readmissão desses companheiros. Ameaçamos, está entendendo, paralisar a fábrica. Sentiram que estávamos na realidade blefando, não acreditavam. Não sei se sentiu que podíamos fazer isso, para nossa surpresa, readmitiu os camaradas. Para nós foi uma das melhores coisas que poderia acontecer naquele momento. Tiramos proveito desse fato até onde foi possível. Aí iniciou-se a discussão do estatuto da comissão de fábrica. Reuniões e mais reuniões. Se não me engano, foram seis meses. Teve reunião que ficava intolerável, não caminhava. Impasse quanto ao número de representantes, a divisão da fábrica, os direitos da comissão, estabilidade. Foi uma discussão prolongada. Me lembro que em toda a reunião só falava o Lúcio, e um pouco o irmão dele. Ficava só olhando aquilo tudo. Do lado da empresa também havia um embananamento, embora já tivéssemos participado da discussão do estatuto lá no ABC. Timidamente, uma vez ou outra, dizia alguma coisa. Estava ali aéreo, o que será isso… Veio o estatuto, tudo foi acertado. A bem da verdade, nessa ocasião ajudou bastante na discussão, o Doutor Antônio Rouzela.
Entrevistador – Você lembra quem era o sindicato desta região da Ford…
Lúcio – O representante do sindicato nessa região era o Rui. No momento que surgiu o trabalho na Ford, a diretoria determinou quem deveria acompanhar, era o Luís Antônio. A diretoria o escolheu, o Dr. Rouzela, e o Cacique para o acompanhamento de toda a negociação.
Benedito – Exato. O pessoal do sindicato nesta ocasião contribuiu, não pode negar, depois da abertura da negociação para a eleição. Os elementos da primeira comissão foram escolhidos entre os quinze elementos da comissão provisória.
Entrevistador – Quantos representantes eram…
Benedito – Eram dez. De acordo com o regulamento, só seriam dez representantes. Não havia a possibilidade de todos. Fizemos uma escolha entre nós mesmos. Todo mundo votava em todo mundo.
Lúcio – Fizemos uma espécie de convenção na fábrica.
Benedito – Fizemos, exato.
Lúcio – Fizemos, primeiramente, uma série de reuniões para a escolha de nomes definitivos. Nessas, recaiu basicamente em cima do pessoal que fez parte da comissão provisória antes dela ser eleita. Dentro da fábrica, em todos os setores, preparamos um pedacinho de papel, distribuímos de mão em mão para o pessoal, na hora do serviço, no banheiro. Pedimos para que esses companheiros colocassem ali até quinze nomes. Os mais indicados seriam os representantes da comissão provisória, para serem referendados pela assembleia. Depois, na hora mesmo da escolha da provisória não foi feito essa espécie de plebiscito. A própria eleição deu oportunidade para quem quisesse se candidatar. Julgamos que o próprio grupo de apoio tinha não só os direitos, mas o dever, de compor a candidatura da comissão efetiva. Foram várias reuniões até que se chegou ao consenso. Vários companheiros não queriam realmente pegar esse pepino. Na forma provisória, muitos tiveram um certo receio. Já na oportunidade, como o nome não estava entre os dez, quis formar uma…
Carmem – Chapa dissidente…
Lúcio – Uma chapa de oposição, mas não conseguiram. Tentaram fazer um esquema. Arrebentamos, apresentando exatamente um programa de trabalho. Isso desarmou os caras. Inclusive, muitas propostas deles estavam contempladas no nosso. Acabou saindo uma chapa praticamente única, na coordenação não teve concorrentes. Concorri eu e o Marcão. Eu como coordenador e ele como suplente. Distritais. No Distrito Um não teve concorrente. No Distrito Dois apareceram dois companheiros que nunca tinham participado mais diretamente de reuniões. Apareceram candidatos assim, esses que apareceram eram mais até no sentido de pertencer a comissão, três anos de estabilidade no emprego.
Benedito – Prevíamos isso.
Lúcio – No Distrito Três, onde o Mato Grosso concorreu, apareceram duas duplas. Um que nunca foi em nenhuma reunião ou assembleia, mesmo em porta de fábrica. Uma dupla que nunca esteve presente. Uma outra surgiu muito incentivada pelos seguranças da própria fábrica. Nesses dois distritos, que apareceram concorrentes, não teve a mínima possibilidade de concorrer. As duas que concorreram, juntando, não dava vinte votos. E a outra acho que teve doze votos.
Benedito – Quatorze.
Lúcio – Não teve maiores problemas na primeira eleição, como na reeleição. Tivemos em voto de coordenação, um total de mil quatrocentos e vinte e sete votos, contra duzentos e dois. O distrito do Adão, dessa vez o pessoal formou uma chapa completinha, apoiada pelo sindicato. Quando colocávamos isso, não significa que você tivesse Luís Antônio apoiando, mas tinha outras pessoas. A direita do sindicato, embora não aparecesse. No distrito do Mato Grosso, não teve uma votação como a das outras, tinha um total de oitenta e oito votos na urna. É feita a apuração e é a seguinte: oitenta e sete a um. Nós conversando, o cozinheiro chegou pedindo desculpas, porque havia votado errado. Era para ser oitenta e oito a zero. No distrito do Adão, ele pegou quinhentos e poucos votos contra vinte e três.
Benedito – Mas, vamos terminar isso. No início à luta para a comissão de fábrica, sentimos muita dificuldade. Conhecimento e discussão pouco tínhamos. Dificuldades de toda a espécie. Primeiro desequilíbrio que notei, nas primeiras reuniões, foi no sentido do conhecimento. Até hoje. Do nosso lado, mecânicos, carpinteiros, inspetores. Do outro, economistas, advogados, especialistas em marketing. Percebi que teríamos dificuldades. Andamos apanhando um pouco nas primeiras reuniões. Quando havia para tratar de algum assunto e me chamavam na modelação, eu dizia, e agora… Como tratar desse assunto, como tratar daquele… Mas, aprendemos logo. Logo tivemos, não me esqueci, foi de muita valia para o sindicato. O Walter Barelli promoveu aqui um treino, em que formou dois grupos, patrões e empregados. Nessa ocasião, fui designado patrão. Demos uma canseira nos peões, que não foi mole. Quase acabei ficando com o apelido de Garcês, mas não é nada disso. Essa aula foi de muita valia. Foram três treinamentos. Achei esse Valter Barelli, nesse ponto, um cidadão bacana. As convicções dele não sei, mas foi válido. Bem aí, desenvolveram-se lutas de toda espécie. No início, tínhamos outras dificuldades. Tinha gente dentro da fábrica que tinha receio de conversar com quem era da comissão. Tinha alguns preconceitos contra, infundados, porque ela não tinha cometido erros. Ninguém conhecia e já havia coisas contra. Esses “diz que, diz que”, era muito dito pela supervisão. Percebi em diversas ocasiões, o supervisor dizer “Estar conversando com a gente da comissão, já”. Outra coisa que achei de muita valia, principalmente para mim que sabia pouquinho desse movimento, foi a intimidade do grupo. Esse primeiro grupo vai ficar na história. Vai ficar na cabeça. Eu, por exemplo, fui escolhido ao léu, na véspera da assembleia. Nunca vi um grupo se dar tão bem, como essa primeira comissão de fábrica. Espero que as outras sejam pelo menos 80% desse grupo e já está muito bom. Que carinho, que compreensão um com o outro. Que vontade, percebi, todos de ajudar os companheiros que estavam dentro da fábrica. Com sacrifício de toda espécie, cansaço. Já tínhamos companheiros que estavam em situação até, com a família ruim, que não apareciam em casa. A mulher telefonando. Nunca tive esse problema. Chego em casa, se avisar, tudo bem. Se chegar às duas, tudo bem. Ela ainda levanta e arruma janta. Tenho uma excelente companheira. Esse estilo e comportamento do pessoal da comissão, foi o que fez com que eu apanhasse gosto pela briga. Passei a estudar, a aprender alguma coisa, para desenvolver melhor as discussões. Percebi que o Lúcio era o cidadão que realmente ia comandar aquilo. Mas, na maioria das vezes, ficava só ele. Toda discussão. Até o pessoal da empresa dizia, quando tinha uma reunião da comissão: fala, Lúcio. Achei que não podia ser assim, que alguém mais tinha que falar. E comecei a participar. Errando, falando mal. Adotei naquela ocasião, sem ter discutido muito bem, uma linha dura, de pressão. De dar a impressão ali que fazia e acontecia. Adotei isso porque sabia que eles abrandavam, quando as coisas engrossavam. Ia até um ponto de irritar os homens, no momento de se perder e arrumava a situação. Passaram-se os tempos, houve diversos tipos de luta. Começamos a perceber mudanças no comportamento da supervisão. O pessoal começou a aumentar. A sala da comissão no início era vazia, depois o pessoal começou a visitar. Começamos a distribuir panfletos, fizemos um local de leitura, jornais em cima da mesa, para todo mundo. Temos um ou dois mais, quando lemos durante o dia. Bem, quando foi formada a Comissão de Fábrica provisória, ainda estava meio bobo com aquele movimento. Realmente, tinha pouco entendimento do que se tratava. Logo no início, que foi apresentado para a empresa os elementos que compunham a comissão, que era provisória e composta por quinze elementos, escolhidos em assembleias, a empresa demitiu sete companheiros. Naquela oportunidade, me lembro, os companheiros reunidos para tomarmos uma atitude e conversar sobre as demissões. A decisão tomada naquela oportunidade, foi que se entrasse em contato com a empresa e se exigisse a readmissão, sob pena de tomarmos medidas.
Lúcio – Só que foi à véspera da primeira reunião. A apresentação já tinha sido feita.
Carmem – Eles despediram quantos…
Benedito – Eram sete companheiros. Foram demitidos na véspera da primeira reunião da Comissão de Fábrica provisória com a gerência da empresa, quando seria iniciada a discussão do estatuto. Foi definido pela comissão provisória que teríamos que tomar uma providência. Solicitamos um diálogo com a empresa. No dia dez, não é, Lúcio…
Lúcio – É.
Benedito – Não participei dessa reunião. O Lúcio que foi.
Carmem – Vocês solicitavam reunião com a empresa, via o que…
Benedito – O Lúcio e alguns companheiros da Comissão de Fábrica provisória foram tratar desse assunto. Os outros ficaram na fábrica, conseguimos movimentá-los.
Lúcio – Foi na parte da manhã.
Benedito – Sim, movimentamos todo o pessoal.
Carmem – A diretoria não ficava na fábrica…
Benedito – Sim. Percebemos, pela disposição do pessoal, que havia possibilidade de fazer alguma coisa. A empresa, depois de sentir as nossas possibilidades, perceber nossa posição, readmitiu os companheiros que tinham sido demitidos. Mandou um guarda na casa deles, reconduzi-los para o trabalho. Foi aquele alvoroço todo. Sentimos uma grande possibilidade, vimos uma chance muito boa de conquistar o coletivo, com esse acontecimento. Deu um respaldo muito bom para nós. Porque espalhou-se pela fábrica. Conversamos com aqueles que haviam sido readmitidos e eles estão nas fábricas até hoje. Foram os nossos primeiros protegidos. Disseram sobre nossa atuação, nós também, em palestra com o pessoal. Fizemos algumas na sede, após o acontecimento, para esclarecer o coletivo. Daí por diante, iniciou-se o processo de negociação dos estatutos da comissão de fábrica, efetivamente. Foram algumas reuniões, não chegaram a seis meses.
Lúcio – Quatro ou cinco meses.
Benedito – Eram duas reuniões por semana, enfim…
Lúcio – Três.
Benedito – Às vezes três reuniões. Quando participávamos com cinco elementos e mais dois ouvintes. A empresa também participava com o mesmo número. Tínhamos do outro lado um representante do sindicato, o doutor Mazela, em algumas oportunidades. E o Tarcísio. Foi um processo longo, chato, em que a atividade do pessoal se resumia apenas a um elemento, para ser mais claro, que era o Lúcio, que falava e tomava a frente de todas as discussões. Os outros nunca tinham participado, principalmente eu. Passei a perceber, logo nessas primeiras discussões, que teríamos grandes dificuldades nesse ponto. O desequilíbrio de conhecimento entre os que representavam a empresa e o coletivo. Do lado de cá, nosso, carpinteiros, mecânicos, inspetores, ferramenteiros, prensistas. E do lado de lá… Economistas, advogados, especialistas em marketing e outras coisas. Gente preparada, que dá para se perceber em algumas ocasiões, até nos esnobavam. Surgiram, propostas de números de representantes para a futura comissão. Foi o primeiro impasse. O companheiro Eurípedes, o Lúcio, que eram as pessoas mais esclarecidas, deram as primeiras ideias para envolver e contornar. Começamos a movimentar o coletivo, que passou a ser a nossa arma principal para pressionar a empresa. Dizer que já tínhamos representatividade, força e capacidade para envolver o pessoal. Achei isso de fundamental importância, porque realmente lá na mesa, as conversas não avançaram, eram água com açúcar. A empresa com mil e uns argumentos.
Carmem – Eles eram contra…
Valdir – Não, não eram. Queriam impor um estatuto, que em muitos pontos não coincidiu com o pensamento daqueles companheiros, que estavam ali tentando organizar e formalizar. Já havia o de São Bernardo. Tínhamos observado, lido. Algumas coisas específicas do Ipiranga, coincidiram. Queríamos, nessa oportunidade, fazer alguma melhora em relação a São Bernardo. Depois de muita luta, conseguimos. Por exemplo, um número de representantes que não era muito significativo, não exatamente o que queríamos. Mas que tinha para cada comandante, menos comandados que a Comissão de Fábrica de São Bernardo.
Lúcio – Proporcionalmente, a Comissão do Ipiranga é maior que a de São Bernardo.
Benedito – Proporcionalmente, é.
Lúcio – Proporcionalmente. Aqui, temos um companheiro para cada quinhentos. Lá em São Bernardo, tem o dobro. Na primeira comissão, tinha um companheiro para cada mil e cem, mais ou menos.
Benedito – Certamente.
Lúcio – Isso na primeira. Hoje o quadro em São Bernardo se inverteu um pouco.
Benedito – Melhorou.
Lúcio – Avançaram bastante em nível de representantes.
Benedito – Depois de meses de exaustiva discussão de uma organização.
Carmem – Deixa só eu interromper. A diferença era só em termos de números de participantes da comissão, ou tinha mais alguma coisa…
Benedito – Essa foi a que deu mais trabalho. Mas tinham outras, também. Mas a principal divergência foi essa. Também deu muito o que falar, a concessão de tempo livre para os representantes da Comissão de Fábrica. Essa questão gerou uma discussão longa. Depois de muitas reuniões.
Lúcio – Tem questões como quem pode se candidatar, idade, tempo de casa. Foram todas questões polêmicas.
Carmem – Detalha mais. Quem se propunha, sabe. Para termos uma base melhor, que não conhecemos a realidade.
Lúcio – Bem, veja bem uma coisa. Na realidade, não tínhamos uma proposta concreta em relação a questão de tempo livre. Não tinha porquê… Porque era um período que começávamos a atravessar, vida legal de uma comissão de fábrica. Ninguém na realidade tinha experiência disso.
Benedito – Não conhecíamos o assunto.
Lúcio – Estávamos nos baseando em cima do estatuto de outras comissões de fábrica.
Carmem – Por exemplo…
Lúcio – O estatuto base para nós foi o de São Bernardo do Campo. Tínhamos o da Masser. Tínhamos da Ford Inglesa, da Caterpillar. Como no caso da Masser e da Caterpillar, foram comissões que existiram no período de 1968 e 1970. O que pedíamos em relação a tempo livre remunerado, por exemplo. A proposta da empresa era de dois meios períodos para os representantes distritais e três meios períodos para a coordenação. Com tempo cumulativo, com cargo cumulativo de secretário da comissão e representante distrital. Íamos muito naquela de, com entendimento, avançar algumas coisas em relação ao estatuto de São Bernardo. Como era a mesma empresa, tudo aquilo que você avança em uma, facilita a negociação para outra, na mesma época. O intuito era muito esse. Eles ofereciam isso, pedíamos isso. Meio período para a coordenação, meio período para representante distrital, coisas desse tipo. No final das contas, em relação a tempo livre, acaba-se firmando o acordo em cima da própria proposta da empresa e igual a São Bernardo. No caso, quando estava em negociação uma comissão de fábrica no Ipiranga, baseado no estatuto de uma mesma empresa, já tinha e não havia como negar para nós. Concretamente, era uma questão de avançar mesmo. Durante a negociação, a coisa mais polêmica, que deu mesmo pano para a manga, foi a questão de números de membros. Pedíamos onze representantes distritais, onze efetivos. A empresa oferecia um coordenador, dois representantes distritais com seus respectivos suplentes. Até que se chegou a um ponto em que a negociação realmente emperrou. Ficou aquele troço que não avançava. Um dia resolvemos, vamos para a reunião, discutir mais ou menos uma hora. Bruscamente interrompemos e abandonamos a mesa de negociação, malcriadamente, para criar um impasse concreto, para poder trabalhar o coletivo. E assim foi feito. Chegou num dado momento, vamos interromper a negociação porque temos que consultar o coletivo. E aí sentimos o primeiro golpe na empresa, a mesa da empresa ficou desconcertada. Foi um tal de nego abaixar debaixo da mesa para cochichar. Colocaram inclusive que isso significava o fim das negociações, o abandono da mesa é o fim das negociações. Dissemos que não, não significa isso. Significa que queremos tempo para consultar o coletivo da fábrica, senão eles que vão decidir o quanto aceitaram e o quanto não. E aí nós dissemos que para preparar uma assembleia, não temos pique para preparar com menos de quinze dias. Sabíamos, como eles sabiam perfeitamente bem, que se quiséssemos prepararíamos para o dia seguinte, e faríamos. Mas o que nos interessava era fazer uma discussão, concretamente, no coletivo. Não pura e simplesmente fazer uma de cinco minutos em uma assembleia. Por um outro lado teríamos que fazer uma assembleia que representasse força de confronto com a empresa. Era o que eles temiam. Não queríamos fazer uma assembleia na sede do sindicato, nós iríamos fazer no portão da fábrica, para eles presenciarem, às cinco horas da tarde. Arriscar. Por outro lado, era uma primeira experiência que íamos fazer. E aquele coletivo sem o menor costume. Saímos da sala nesse meio até a assembleia. Aconteceram uma série de chamados da gerência para conversarmos, para sair do impasse. Mas tem uma coisa, nunca fomos individualmente conversar com a direção. Eles chamavam, um pegava, outro, íamos sempre em dois. Nunca entramos na sala do gerente sozinhos. Não por uma questão de desconfiança. Mas era um trabalho que se iniciava e portanto toda cautela era pouca. Além disso, a necessidade de que o grupo se conhecesse e se confiasse e que o coletivo também. Por isso, até hoje, se vamos na sala da negociação sozinhos. Quando vamos, recebemos o convite para bater um papo só comigo. Só que reunimos a comissão. Se autorizar, o companheiro vai. Senão, não. Essa é a norma nossa de trabalho. Aconteceram uma série de contratos, bate-papos nesse sentido. Alguns até fora da fábrica, nos chamarem meio dia, nos trocar e sair. Íamos fora da fábrica para restaurante, hotel. Isso todo mundo sempre era informado do que estava ocorrendo.
Benedito – Às vezes alguém ficava até no restaurante onde havia reunião, pelas esquinas.
Lúcio – É. Muitas vezes, o companheiro sai e saem outros para ir ao encontro desse. Para que não fique sozinho. Ficam três companheiros da comissão nas redondezas do local. Sabe lá, em patrão não dá para confiar, é uma raça que não dá para confiar. É o mínimo de segurança. Nesse meio tempo todo, a cada dia que se passava, eles vendo a nossa organização crescendo e a forma como estávamos convocando as assembleias, discussões. Eram reuniões diárias, saída do serviço, sede e tal. Eles acompanharam.
Benedito – Todas as oportunidades, nós aproveitávamos. No restaurante, no banheiro, na entrada do trabalho.
Lúcio – Na entrada, na saída, na hora do almoço. Aproveitávamos para discutir concretamente com o pessoal. Inclusive, nos ofereceram, porque quiseram saber onde íamos fazer a assembleia. Dissemos que íamos fazer na frente do portão, às cinco horas da tarde, na entrada principal da empresa. Levantaram, pô, vocês vão fazer ali, tem perigo de ter provocadores e distorcer vossa assembleia. O problema é que começaram a sentir a barra. O problema das empresas é querer por todas as formas que os problemas de confronto fiquem dentro dos muros da fábrica. Que não extrapolem os muros das fábricas. Eles detestam repercussão dos acontecimentos. O que eles têm mais medo é que num movimento qualquer chamem a imprensa. É um pavor terrível.
Carmem – Porque…
Lúcio – Porque a opinião pública vai ser informada do que está ocorrendo. Aí, queira ou não, ela pode forçar um determinado tipo de negociação. Vieram inicialmente com esse papo, aquela conversa paternalista. Vocês precisam se cuidar. Não, mas nós vamos fazer mesmo lá, vamos correr esse risco. Confiamos no coletivo. Se aparecer algum provocador, já temos os esquemas preparados. Aí eles chamaram todos outra vez e disseram que receberam um telefonema anônimo, falando do exército, que a polícia pode até aparecer. Dissemos que íamos correr esse risco e fazer a assembleia ali. Uma vez eles ofereceram o refeitório da empresa, “Pô, vocês não querem fazer a assembleia aqui dentro, pelo menos aqui não correm o risco de provocação”. E nós, não, queremos fazer lá fora, e vamos fazer lá fora. Eles, vocês não querem fazer lá atrás do pátio, onde guarda as unidades fabricadas. Mandamos tirar de lá e vocês fazem, a perua do sindicato entra com o som. Não, vamos fazer no portão lá fora. E ficou assim, eles oferecendo dentro da fábrica. E aí até que…
Carmem – Porque vocês não quiseram fazer dentro da fábrica…
Lúcio – Bom, não queríamos dentro da fábrica, primeiro pelo seguinte. Tínhamos que ter uma experiência do nosso poder de mobilização. Saber se o pessoal ia ou não atender a esse nosso chamado. Essa era a primeira questão. A segunda: não temos nem o acordo da comissão de fábrica pronto e começamos a utilizar ofertas que a empresa faz, dependência de som, como é que esse coletivo vai encarar isso… Será que os caras não estão fazendo o jogo da empresa… Até aquele momento, o cara só de chegar e dizer que não queria fazer hora extra, era mandado embora como mal elemento. De uma hora para outra a empresa oferece um local com todas as acomodações para nos reunirmos e discutir nossos problemas. Opa, espera um pouco. Todas essas questões eram analisadas. Ofereceram o refeitório, pátio, fábrica. Até que eu disse, tudo bem, podemos até aceitar em fazer a assembleia aqui dentro, aqui no saguão central da direção da empresa, que é justamente onde o Viaduto Pacheco Chaves começa e você fica…
Carmem – É onde tem as entradas dos guardas…
Lúcio – Exatamente. Onde todo o pessoal que passa na rua vê. A própria imprensa pode fotografar, filmar. “Mas aí não dá, pode… “O que eles queriam era nos jogar num canto e esconder dentro da fábrica. Vai lá fora mesmo, tudo bem.
Carmem – Que dia foi a assembleia…
Lúcio – Agora, é só vendo no arquivo. Temos fotografia, tudo. E aí fizemos a assembleia lá fora. Pedimos para o sindicato que fizesse alguns cartazes, colocando a questão da oferta da empresa. Quando saiu o primeiro buchicho a respeito de aposentadoria aos sessenta anos. Os cartazes a respeito dos membros da comissão, a oferta que a empresa havia feito. Fizemos alguns pirulitos colocando que “um é pouco, dois é ruim e três é péssimo”. Vários cartazes desses. Tem ali o portão da empresa, em que tem todos os guardas, estacionamento de veículos. Fizemos nesta rua a assembleia. Colocamos a perua de som. O pessoal ficava todo de frente para lá e de costas para a empresa. Todos os cartazes virados para a empresa, porque toda a direção estava lá observando. Basicamente, discutimos dois pontos fundamentais, se ela aceitava ou não apenas três representantes na comissão de fábrica. E se autorizava a comissão negociadora a firmar acordo dentro daquilo que ela achasse. Não que fosse o ideal, mas que pelo menos se conseguisse no momento e nós achássemos viável. Não só em relação aos componentes, mas ao resto do estatuto. A assembleia não aprovou, não aceitou os três, a proposta da empresa. Deu o aval para a comissão negociadora a fazer acordo sem necessidade de mais consultas ao coletivo da fábrica.
Carmem – Quantas pessoas tinha nessa assembleia, Lúcio…
Lúcio – Umas mil e quinhentas pessoas.
Carmem – Quantos trabalhadores trabalhavam na fábrica…
Lúcio – A Ford, na época, estava com dois mil e quinhentos trabalhadores. O noturno em média dava umas seiscentas pessoas. Tinha um pouco mais de mil e quinhentas. Tinha um pouco mais porque o pessoal da noite também veio. Uma outra prova que para nós era muito importante e deixou os caras muito grilados. Se trabalhava até seis horas da tarde, e às seis horas entrava o turno da noite, que trabalhava até as quatro horas e dezesseis da manhã. O horário oficial da empresa era das sete às cinco e das dezenove às quatro e dezesseis. Naquela época a hora extra era diária e obrigatória. Nossa proposta era fazer a assembleia às dezessete horas com todos juntos, o turno noturno e o diurno. A empresa disse: “Não vamos liberar o pessoal para a assembleia para a saída às cinco horas”. Nós contra-atacávamos dizendo que hora extra não era obrigatório e convocaríamos o pessoal. Se eles achassem que deveriam sair, tudo bem. Vem exatamente a nossa primeira surpresa. Depois de toda preparação, chegou cinco horas, não tocou sirene. O pessoal deixa suas máquinas e vão para o vestiário se trocar e vão para a assembleia. Não fizemos piquete, arrastão. A comissão de fábrica se trocou, foi lá para fora e aguardou o pessoal sair.
Carmem – Bateu ponto e saiu…
Lúcio – Bateu ponto, tudo direitinho. E foram para a assembleia. A fábrica se esvaziou completamente. Chefias e gerentes nos corredores, mas o pessoal não se intimidou e saiu.
Benedito – Foi importantíssimo para nós.
Lúcio – Foi um ponto principal. Tivemos oportunidade de medir e mostrar para eles que estávamos com capacidade para a mobilização, de parar aquela fábrica na hora em que houvesse necessidade disso. Fizemos a assembleia. No dia seguinte, fizemos um comunicado oficial, que estávamos prontos para retomar a negociação. Isso foi feito de manhã, a empresa no mesmo dia chamou para uma reunião à tarde. Sentimos claramente na mesa, já de peito estufado. Saiu a negociação dos componentes da comissão de fábrica. Fomos para cinco efetivos e cinco suplentes. De uma oferta de cinco no total, que dava a proposta inicial, fomos para a comissão com dez elementos.
Carmem – Os suplentes também tinham estabilidade…
Lúcio – Tem estabilidade, a mesma que o efetivo. Três anos de estabilidade e dois anos de mandato.
Carmem – Três anos depois do mandato…
Lúcio – Dois anos de mandato e um ano após o mandato. Firmamos o acordo, e partimos para a eleição da comissão. Ela é elaborada por uma comissão, indicada por nós. Escolhemos cinco companheiros, e indicamos para fazer parte da comissão eleitoral. A empresa indica quatro e a nossa presidência. Isso foi no primeiro. Hoje, temos uma comissão paritária. Nessa segunda eleição foi paritária. A forma da candidatura, como era na primeira, e continuou sendo agora na segunda, era por intermédio de duplas. Ou seja, a fábrica foi dividida em quatro partes. Cada uma dessas se denomina distrito, Distrito Um, Dois, Três e Quatro, do período noturno, que abrange a fábrica toda. Cada distrito indica o efetivo e o suplente. Quando o efetivo se inscreve como candidato, ele obrigatoriamente tem que pôr o nome do suplente. É uma espécie de voto vinculado por distrito.
Carmem – Ele traz sempre consigo um suplente…
Lúcio – Sim. Pode-se candidatar quantas duplas quiserem, mas sempre o cara que se inscreve como efetivo, traz com ele o suplente. E a coordenação era composta pelo coordenador, seu suplente, que também funcionava do mesmo jeito. Hoje a coordenação está maior, sofreu algumas modificações, que é o coordenador, vice coordenador e secretário. A coordenação hoje é composta por três membros efetivos. Na primeira comissão, era composta por um membro suplente da coordenação e um secretário, eleito representante distrital, também secretário da comissão de fábrica. E hoje suplente da coordenação é um companheiro do efetivo da comissão, escolhido como suplente da coordenação. Ele ocupa o cargo em qualquer afastamento de um companheiro da coordenação. Pois bem, um outro detalhe: coordenação de fábrica, ela recebe o voto direto de todo o coletivo da fábrica. A fábrica toda vota na coordenação, e também no seu candidato no seu respectivo distrito. Ela vota duas vezes, no seu distrito e na coordenação da comissão. A eleição tem todo um cronograma. Tem uma semana para inscrição dos candidatos. Após encerrado este prazo, tem um dia para o recurso e impugnação. Depois entra num período de campanha eleitoral, em que se negociou com a empresa. Ela distribui painéis dentro da fábrica, em locais previamente escolhidos por nós e de comum acordo. Em vários locais de acesso do pessoal, em que os candidatos faziam sua propaganda. Colocava faixa, cartazes. Ficou durante dez dias em regime de propaganda eleitoral e depois a votação propriamente dita. Em cada distrito tinha três urnas.
Carmem – E eram ambulantes…
Lúcio – Não, fixas em locais. Cada mesa era composta pelos trabalhadores da fábrica. Tinha um presidente, o secretário e o segundo secretário. Primeiro mesário e segundo mesário e a coleta dos votos na cabinezinha. Como se fosse uma eleição convencional mesmo.
Carmem – O dia inteiro…
Lúcio – O dia todo. E o trabalho para votar. As urnas ficavam dentro dos próprios setores. Arrumava-se um lugar e o pessoal ia votar. Era obrigatório, todos votavam. A empresa preparou a listagem dos votantes, dividindo e separando. Tal grupo vota em tal urna, e assim por diante. O eleitor, se trabalha no distrito um, não pode votar no distrito dois. Ele tem que votar no distrito um. A eleição começou primeiro no período noturno, a partir das dez horas da noite, de um determinado dia, e foi até às quinze e trinta do dia seguinte, para que o pessoal do dia pudesse votar. Às dezessete horas começou a apuração dos votos, no refeitório da empresa. Se fez um círculo com as mesas e o próprio pessoal que trabalhou na coleta de votos, trabalhou na apuração. Quem quisesse podia assistir a apuração toda.
Carmem – Teve bastante gente que assistiu…
Lúcio – Sim. Inclusive nessa segunda eleição tiramos fotos e temos registros. Feita a apuração, se dava os resultados urna por urna, o total. A proclamação oficial dos vencedores viria dois dias depois. Porque a comissão eleitoral se reunia. Após a eleição, tinha também um dia de recurso. Depois, no terceiro dia de manhã, sairia a proclamação dos candidatos eleitos, nos quadros de aviso. Foi feito todo o processo, não teve problema nenhum. Alguns distritos na primeira eleição, tiveram uma espécie de oposição, mas não era consciente. Era muito no sentido de pertencer à comissão de fábrica com três anos de estabilidade no emprego. Somente no distrito do Matogrosso, que teve dois concorrentes, e no distrito do Adão, que teve um concorrente. A coordenação, o Distrito Um e o Distrito Quatro, tiveram chapa única. Os candidatos que a comissão provisória indicou, todos foram vencedores. Marcamos a data da posse, que foi no dia 30 de outubro de 1982. Foi realizada no refeitório dos horistas da empresa.
Carmem – Foi quantos dias após a eleição…
Lúcio – Foi uma semana depois. Mais ou menos isso. A posse foi no refeitório da empresa. Inicialmente, a direção propôs que se fizesse no refeitório da gerência da fábrica. Convidaria supervisão, alguns gerentes. Evidentemente, não aceitamos. Queriam fazer duas horas da tarde, chamando a imprensa. Dissemos que não aceitávamos. Querem fazer a cerimônia de posse muito bem, topamos fazer. Desde que seja no refeitório dos horistas, e com a participação de quem quiser. Foi feito às dezessete horas. Botaram lá o pedestal, o microfone, e a entrega dos diplomas para os eleitos. Mas o importante é que a massa foi. A massa esteve presente e foi feita a entrega de diploma. O diretor da empresa fez um discurso. E aí foi empossada a primeira Comissão de Fábrica. Isso até a posse da eleição. Gostaria de retomar um pouco alguns outros detalhes e algumas questões que o Mato Grosso levantou, no início da formação da comissão. A Comissão de Fábrica do Ipiranga, surge de forma diferente da de São Bernardo do Campo. Lá, ocorreu por intermédio de processo grevista. Haviam mandado quatrocentos companheiros embora, a fábrica parou. Dentre as reivindicações, a readmissão do pessoal e a comissão de fábrica. A nossa aqui, começamos o trabalho mais ou menos no mesmo período que começou a negociação. Aqui, nasceu pelo processo de mobilização do coletivo. Não tivemos a necessidade de ir para um movimento grevista e não tiveram fatos que impunham essa condição. Saiu muito pelo processo de mobilização e foi muito difícil. Fizemos um trabalho de um ano e pouco clandestino. O primeiro passo que demos, foi a questão de alguns companheiros serem eleitos na CIPA. E aí começamos a manter um contato mais direto com os companheiros de São Bernardo. Indo lá, conversando com o Jair, com o próprio pessoal da Ford de São Bernardo, da comissão. Nessa oportunidade, já estava eleita, tinha tomado posse, não estava provisório, estava negociando. Buscamos uma forma de como enviar a reivindicação para a empresa, de como pedimos aqui no Ipiranga, também. Foi um quebra-cabeça de todo lado. Vamos fazer um abaixo assinado, uma manifestação, isso, aquilo. A única viabilidade seria realmente um abaixo assinado. Mas como passar dentro de uma fábrica, na qual tem um conjunto de companheiros muito receosos. Não existia nenhuma tradição de luta, concretamente, dentro da Ford do Ipiranga.
Benedito – Na época das demissões…
Lúcio – Sim. E não existia aquela tradição de luta. O sindicato não se preocupava com isso e não se preocupa até hoje. Como fazer e também todo o processo que já foi dito, ás escondidas do sindicato. Resolvemos entregar esse abaixo assinado num momento em que o Jair Meneguelli fosse assinar o acordo lá em São Bernardo. Porque isso… Porque o acordo seria assinado pelo presidente da Ford no Brasil. Na assinatura, estaria presente imprensa falada, televisão, jornais. Era uma forma de tornarmos o nosso pedido público. São Bernardo sendo assinado o acordo de constituição de comissão de fábrica, assinado o estatuto, e o pessoal do Ipiranga fazendo o mesmo pedido, diretamente para o presidente da Ford. Mas a dificuldade era como passar esse abaixo assinado. Resolvemos fazer um cabeçalho numa folha de papel sulfite, com meia dúzia de linhas e tiramos umas duzentas e poucas xerox. Você pegava uma ou várias folhas daquelas e chegava até um companheiro seu, que você tivesse confiança e pedia para ele assinar e passar também uma lista daquela. Porque não poderia deixar a supervisão ver.
Carmem – E você podia carregar…
Lúcio – Não. Alguns carregavam, mas tinha que ser muito sigiloso. O abaixo assinado, quando você faz, passa uma lista, invariavelmente, vai sair com uma pastinha debaixo do braço, papel na mão. Normalmente acontece aglomeração e facilmente seria detectado pela supervisão. Fizemos essa distribuição junto ao pessoal, pedindo a maior rapidez e sigilo, porque a supervisão não poderia tomar conhecimento. Num prazo de três horas, colhemos cerca de duzentas assinaturas e eles não ficaram sabendo de nada. Quando é entregue, tiramos umas duas xerox. Entregamos a original para o Jair Meneguelli, entregar o abaixo assinado para o presidente da Ford. No mesmo momento, está sendo celebrado o ato de assinatura em São Bernardo. Tiramos uma comissão aqui e entregamos uma cópia para o Joaquizão, no sindicato. Ele quase caiu da cadeira, quando viu aquele troço. Porra. No dia seguinte, a gerência do Ipiranga chamou a supervisão e perguntou como é que acontece isso e ninguém sabe nada. Então, a própria supervisão perguntou o que acontecia. E aí foi todo aquele processo que foi narrado aqui da formação e da discussão do estatuto.
Carmem – Deixa eu fazer uma pergunta de cunho ideológico. Você falou que escondeu o abaixo assinado da empresa e do sindicato. E desde o começo vocês mantiveram uma relação com o Sindicato de São Bernardo. Qual as dificuldades que vocês tinham para trabalhar com o sindicato de São Paulo…
Lúcio – Primeiro, não houve nenhuma intenção, como não é hoje, nem intenção, nem pretensão de se abrigar debaixo de asas de quem quer que seja, e principalmente do PT. E sim de termos o respaldo da parte do movimento sindical que realmente tem uma confiabilidade dos trabalhadores. Naquele momento era exatamente o movimento de São Bernardo e porque não pedir esse apoio ao Sindicato de São Paulo. Como naquela época, dentro da Ford até hoje, não se tem a mínima confiança e credibilidade no sindicato de São Paulo. Quando digo sindicato, é a direção, e não enquanto instituição. Principalmente naquela época, o que o trabalhador tinha na cabeça, e que hoje ainda tem em muitas fábricas desorganizadas em São Paulo, é que em aparecendo qualquer grupo um pouco mais combativo dentro de uma fábrica e se apresentando ao sindicato, corre o risco de ser entregue, delatado e demitido da empresa.
Lúcio – Existem muitos exemplos.
Carmem – Aconteceu alguma coisa desse tipo na Ford…
Lúcio – Não, porque nós sempre tivemos cautela.
Lúcio – Aconteceu. Essa era a primeira preocupação. Não existia a mínima credibilidade dos companheiros da Ford em relação ao Joaquinzão.
Carmem – Isso era só em relação ao Joaquinzão… Ou toda a diretoria…
Lúcio – O problema aí, se você não gosta de uma determinada pessoa ou entidade, devido a postura do seu presidente, evidentemente há uma conclusão muito lógica de que todos os que estão ao redor rezam da mesma cartilha. É a conclusão lógica e esse é um sentimento que o trabalhador tem. O sindicato hoje, a direção, queira ou não, é a questão presidencialista. Se o presidente, se o sindicato, é bom, toda a diretoria também é. Se o presidente do sindicato não presta, ninguém da diretoria presta. Embora o nosso caso, com o passar do momento da legalização da comissão de fábrica, do próprio processo de negociação, esse conceito mudou em relação a algumas pessoas. Se chegou a entender que, dentro da direção do sindicato, tinha algumas pessoas que mereciam confiança. Infelizmente essa foi até o limite muito recente, que foi a eleição sindical. A partir daí a coisa degringolou novamente, em relação as mesmas pessoas. Existem sim, algumas pessoas, ainda hoje, dentro da direção do sindicato, que se tem uma certa confiança, certo respeito pelo comportamento que assumiram, durante o processo eleitoral. Depois principalmente durante alguns processos de lutas internas dentro da fábrica, em que participaram enquanto representantes do sindicato. Um ponto que queria voltar é que sempre fizemos questão desde o início da formação da comissão de fábrica e defendemos isso até hoje, e não abrimos mão, é a autonomia em relação ao sindicato. Durante o processo de negociação, essa questão sempre foi preservada por nós. Reservamos isso pelo seguinte sentido, não aceitávamos, não admitimos que o sindicato vá a Ford do Ipiranga e cague regras para nós. Durante a própria negociação do nosso estatuto, ele participou da negociação. No próprio tem parágrafos que garantem a participação do sindicato nas reuniões da comissão com a empresa, que garantem que ele possa apontar problemas que são discutíveis entre as partes, comissão-empresa. Mas, acima de tudo, que ele preserve nossa autonomia. Todo e qualquer documento ou acordo a ser assinado com a empresa, primeiro tem que passar pelo aval do coletivo da fábrica. Numa assembleia, numa reunião. As assembleias da Ford sempre são comandadas pela comissão de fábrica. O sindicato nos fornece a infraestrutura: carro de som, boletins. O diretor do sindicato usa a palavra. A direção da assembleia é exercida pela própria comissão de fábrica. Como boletins, o próprio jornalzinho da comissão, é impresso pelo sindicato, mas a redação é feita pela comissão. O sindicato apenas transfere, monta e imprime. Nós que distribuímos também. O jornalzinho, a mesma coisa. Tem o emblema do sindicato nos boletins, tem no jornalzinho, mas as matérias todas são elaboradas pela comissão e pelo coletivo da fábrica.
Lúcio – Material do sindicato, é o próprio que vai na porta da fábrica e distribui. Quando quer fazer uma assembleia dele, específica, de campanha salarial e coisas desse tipo, nós ajudamos, no sentido de mobilizar o pessoal. Bota-lo lá e ele que dirigem a assembleia. É uma atividade dele. Tudo aquilo que diz respeito a atividade nossa internamente, é comandado pela comissão.
Lúcio – Atualmente o diretor da área é o Flores, mas que nem mais aparece lá na porta. Normalmente, quem tem estado mais frequentemente num contato conosco tem sido o Luís Antônio.
Lúcio – Em todo o processo, todas as greves e movimentos que aconteceram, o Luís Antônio sempre esteve presente. Desde da formação da comissão de fábrica, até hoje. Passaram uns outros diretores, como no caso, na época o Julinho, após a formação foi o Nicolau. Depois foi o Geraldino, e agora, com a nova diretoria, foi o Flores para lá. Sendo que dentro de todo esse pessoal, quem deu uma assistência mais efetiva mesmo, que nunca nos deixou na mão em nada, enquanto diretor do setor, foi o Geraldino. Marcava-se com ele às quatro horas da manhã, ele estava lá, com som, boletim. Nunca nos deixou na mão.
Benedito – Bastante dedicado.
Lúcio – Muito dedicado. Não tem aquela experiência política sindical, mas é um rapaz bastante honesto, muito querido pelo pessoal da Ford. Nunca tentou impor alguma coisa, ou também fazer fofoca. Ao passo que hoje o Flores é desse tipo. Às vezes tenta querer impor ou encosta muita coisa nossa. Fofoqueiro, caluniador, mentiroso.
Benedito – Resumindo, é uma droga de homem.
Lúcio – Infelizmente a realidade hoje é essa. Que mais vocês queriam…
Lúcio – Na eleição de 1981, não tivemos participação nenhuma. Foi uma decisão do grupo que estava fazendo um trabalho pela formação de fábrica. Embora tinha um companheiro, o Ourives, que concorria pela chapa de oposição. Trabalha lá até hoje. Mas achamos por bem não assumir nenhum posicionamento por essa ou aquela chapa. Porque entendemos que eleições é um momento divisor de águas. Naquele momento queríamos unir o coletivo, e não dividir por essa ou aquela tendência. Então a coisa ficou muito solta, completamente, em relação a propaganda, em defesa disso ou aquilo. Quem fazia para a Chapa Dois, fazia espontaneamente, sem orientação do grupo que estava formando. Quem fazia da Chapa Um, também. Não tínhamos compromisso com nenhum dos grupos. Mesmo assim, dentro da Ford, naquela eleição, a Chapa de oposição ganhou.
Benedito – Fácil.
Lúcio – Bastante fácil, inclusive. Concorriam em três chapas naquela oportunidade, o número de associados não era muito grande, trezentos mais ou menos. A Chapa Dois teve cento e sessenta e poucos votos. A Chapa Três teve mais votos que o Joaquim, a do Aurélio Peres, teve mais votos que a Chapa Um. Essa foi a que menos votos teve. Bom aí, a comissão se constitui legal a partir do final de 1982. De lá para cá, tivemos algumas lutas importantes. A primeira conquista, porque hoje nós podemos dizer isso, de peito aberto, foi a reconquista da dignidade do trabalhador dentro da Ford. O respeito da supervisão, ouvir o trabalhador. O fim daquela pressão que existia. Se o cara não fizer hora extra vai ser demitido, aquelas dispensas indiscriminadas, uma série de outras coisas. Isso acabou. Se hoje existe é um número baixo, muito pequeno.
Benedito – Muito sutil.
Lúcio – Muito sutil. Em novembro de 1983, após a assinatura do acordo coletivo, entramos em greve por três dias. Embora tenhamos nos posicionado na assembleia da categoria, em 1983, favoráveis a assinatura do acordo, mas ele não satisfazia a Ford. Porque temos um problema sério. Na pauta de reivindicações da categoria, você chega exclusivamente a um item: aumento salarial. A questão da estabilidade, por exemplo, nós temos, na Ford, conquistada na prática. Vão para quatro anos que não se demite ninguém na Ford.
Benedito – Essa tranquilidade da segurança no emprego é fundamental para o operário.
Lúcio – É uma conquista na prática. Tentaram algumas demissões e a fábrica parou. Esses companheiros foram readmitidos. Recentemente, tem um fato que para nós foi uma puta vitória. Cinco companheiros que estavam em período de experiência, dois dias antes de vencer, foram demitidos. Fizemos um movimento, eles foram readmitidos e estão trabalhando até hoje. Temos uma questão de lei de experiência que a própria CLT tem erro. Em novembro de 1983, fizemos greve, de 27 de novembro ao dia 30, em que reivindicávamos 6% de aumento real, transporte coletivo, assistente social e desconto proporcional do remunerado do DFCR. Dessa pauta, conquistamos uma equiparação salarial que atingiu 95% dos trabalhadores da fábrica, com uma média de aumento de 5,2%.
Benedito – E nós tínhamos pedido 6%.
Lúcio – Tínhamos pedido 6%. Conseguimos a implantação de cinquenta linhas de ônibus, assistente social e muitos outros benefícios, que durante a negociação acabaram entrando na discussão como uma espécie de barganha, por outros itens não concedidos pela empresa. Conquistamos o seguinte: o desconto das horas paradas foi efetuado em duas parcelas, a partir do meio de dezembro. O abono de emergência, cento e vinte horas, que era para ser pago a partir de fevereiro de 1984. Quando pelo período de férias dos companheiros, conseguimos esse abono salarial de emergência fosse pago em dezembro, dia 21, em 1983. Conseguimos que além da segunda parcela do abono do 13º de 1983 mesmo, fosse pago em dezembro a primeira parcela do 13º de 1984. Até hoje o pessoal se lembra disso.
Lúcio – Sim. No mês de dezembro que nós tivemos o pagamento no dia 10, no dia 15, no dia 17. Pagamento no dia 21, adiantamento no dia 23. No mês de dezembro o pessoal pegou em média de cinco salários.
Benedito – Foi o maior financeiro que já vi.
Lúcio – As conquistas básicas de novembro de 1983.
Benedito – Quando planejamos essa greve, tinha também outra motivação. Estavam se afundando algumas reivindicações nossas e não estávamos vendo a possibilidade de conquista-las. O assunto transporte era uma solicitação de vinte anos do pessoal da fábrica. A descrença em relação a sua conquista era total. A empresa tinha argumentos, que a fábrica era localizada numa região de muito transporte, como trens, ônibus e outras coisas. Essa reivindicação o pessoal já tinha feito por diversas vezes. Vínhamos acumulando e nada estava convertendo para o coletivo. Então resolvemos jogar essa cartada grande. Mesmo após termos aceitado o acordo do sindicato. Queríamos também fazer uma avaliação sobre as nossas forças para deflagrar a greve. Nunca tinha isso. Cheguei lá em 1979, naquela época tinha acontecido uma mini greve e 80% trabalhou e não aconteceu nada, horrível. O pessoal tinha arrepio de falar em greve. Trabalhamos pacientemente, com o sindicato houve aquele acerto, mas já tínhamos em mente deflagrar. Queria ressaltar um ponto importante: alguns dias antes, um grupo chamado de apoio, fizemos algumas reuniões para avaliar melhor a situação e convidamos o representante do setor também, mais um diretor do sindicato, o Luís Antônio. Disse a ele naquela oportunidade, numa discussão na sede, sobre a absoluta contrariedade no sindicato. Ninguém me disse, ninguém me escreveu. Ouvi-o ser frontalmente contra a greve. Disse isso numa reunião com esse grupo de apoio, levou uma tremenda de uma vaia. Ficou comprovado que se nós fossemos naquela ocasião pelo sindicato, estaríamos andando de trem e ônibus até hoje.
Benedito – Ele considerava que o acordo assinado e respaldado por nós tinha que ser respeitado. Mas tínhamos algumas circunstâncias que nos obrigavam a tomar uma posição. Não aceitamos a conversa dele, o pessoal não aceitou. Quando ele viu que realmente não havia possibilidade de não haver greve, se posicionou conosco. Disse que íamos fazer a maior burrada do mundo, que não ia dar certo. Mas que já decidimos, agora estava conosco. Achei até uma posição extremamente correta. No ponto de vista dele, a greve era impraticável e via muitos riscos nessa ação. Mas quando o coletivo decidiu, se posicionou favorável. Achei correta a sua posição. Essa greve foi planejada pelo grupo de apoio e depois transmitida para o resto da fábrica. Nos dias que antecederam, fizemos algumas pressões sobre a empresa. Como não deixar o coletivo adentrar a fábrica antes de cinco minutos para as sete horas. Essa hora tem que estar posicionado para trabalhar, mas existe uma tolerância de quatorze minutos. Então nós prendemos o pessoal no portão de entrada, falávamos que não entrar era uma forma de pressão. O pessoal entrava as sete, até se trocar e tudo eram sete e meia, eles perdiam meia hora de produção. Fazíamos assembleias, passamos uma semana esclarecendo o pessoal. Pedindo para eles virem, solicitando para que todos se manifestassem. O clima foi ficando bom, no dia 27 fizemos a última proposta para a empresa tentar decidir tudo amigavelmente e ela se recusou. Aconteceu um fato interessante. Chamaram toda a supervisão e solicitaram uma opinião sobre a possibilidade de fazer greve ou não. E eles disseram que definitivamente não aconteceria uma greve, porque conheciam bem o coletivo. Trabalhavam na Ford há tantos anos e absolutamente não ia acontecer nada. No dia 28, fizemos uma assembleia definitiva. Dissemos ao pessoal que a última resposta da empresa era não a todas as nossas reivindicações. Tínhamos discutido, sentado, e o recurso do diálogo estava esgotado. A partir daquela hora propúnhamos a deflagração da greve. O pessoal votou e não houve nenhuma voz discordante. Aí estabelecemos o processo e os critérios para fazer greve. Seria a entrada na fábrica, com orientação para ninguém trocar de roupa. Isso é importante porque é mais fácil observarmos o pessoal à paisana. Solicitamos a todo o coletivo que tivesse um comportamento de respeito, a tudo que fosse propriedade da empresa. Não queríamos em hipótese alguma deixar brechas para nos acusarem de desmandos. O pessoal entrou tranquilamente, bateu o cartão. Chamamos para o pátio na frente da fábrica, no gramado. O pessoal ficou jogando dominó, tocando, cantando. Foi mobilizada a imprensa, que deu boa cobertura. Tivemos algumas dificuldades com o pessoal do departamento administrativo. O primeiro dia de greve, da forma mais gentil possível, comuniquei a eles e convidei-os a participar do movimento, porque também eram explorados. Contei a situação, um trabalho que foi horas. A pretensão era que eles atendessem, não viessem trabalhar e participassem conosco na luta. O primeiro dia à tarde o pessoal bateu o cartão e foi para casa tranquilo e tivemos um bate-papo com a empresa.
Lúcio – No primeiro dia.
Benedito – No primeiro dia, tivemos um bate-papo com a empresa, não houve um grande avanço. E a supervisão que tinha garantido a empresa que dificilmente haveria greve, passou por um ridículo incrível. Ficaram mal para caramba. Todos boquiabertos, porque nunca havia acontecido isso. No segundo dia, foi necessário tirar o pessoal do setor administrativo, sala por sala. Juntei um grupo, convidei umas trinta pessoas para participar comigo e fazer uma pressão. Quando vi, convidei no corredor, já tinha umas quatrocentas pessoas me seguindo. Todos com ânimo bem alto. Tive até algum receio. Quando chegamos no prédio administrativo, tem uma escada antes de subir, falei para o pessoal que ia subir e depois os convidaria. Ia ver a possibilidade deles saírem sem nos aglomerarmos. Um corredor muito comprido, percebi que não gostaram da ideia. Então, vamos subir todo mundo, mas sigam a minha recomendação. Posicionei-os de um lado e de outro no corredor. Abri a porta da sala, onde estava o pessoal, duramente, e mostrava para eles o tanto de gente que tinha. A maioria ficava um pouco indeciso, mas no fim, cediam. Logo que saíam, levavam a sua salva de palmas, que na realidade se você interpretar, era uma ovação. Foi circulando de sala em sala. Gravaram a minha cara e depois, muito futuramente me mostraram isso aqui. Por sorte me dirigi com o máximo de educação nessa sala. Quando já estava na seção no final da linha de projeto, entrei por uma porta. Tinha umas trinta pessoas nessa área, desenhistas projetistas, e já era hora de convida-los a participar do movimento. O diretor das relações industriais entrou e falou que, como eu estava convidando o pessoal diplomaticamente para participar da greve, ia fazer o mesmo convite. Usou quase os mesmos termos que eu, e pediu para que o pessoal permanecesse na sala. Com todo aquele povo no corredor, já estava havendo aquele burburinho. Voltei e pedi para eles darem um tempo. O pessoal que estava sendo convidado para ficar, todos com papéis na mão. Projetistas, engenheiros, desenhistas. Agora atendo esse camarada que está aí convocando-nos para ficar. Resolvi bancar essa frente. Entrei, ajudei-os a juntar papéis e convidei-os para sair. Companheiros, companheiras, vamos indo. Com o diretor na porta tentando segurar. Ele disse que o pessoal podia ficar tranquilo, que ele representava a empresa, era responsável. Disse para eles se estavam ouvindo o que o Salvador estava dizendo, disseram que sim. Então, toda e qualquer responsabilidade, qualquer acontecimento grave que puser em jogo o nosso movimento e perdermos o controle do pessoal, ele é o responsável. Na porta tinha um pessoal observando e começamos a falar, sai. E o primeiro a sair foi ele, o diretor. O pessoal todo abandonou a fábrica. Fizemos uma verificação posterior e não encontramos ninguém. E aconteceu até, um fato interessante, entrei numa sala e tinha um cara com os dois pés em cima da mesa. Convidei-o para sair e ele não disse nada. Peguei o pé dele e pus no chão. Ele não entendia o que eu queria, era americano. Falando, falando, e nada de solução.
Benedito – Esse fato foi pitoresco. Nesse dia, tivemos também algumas negociações e no terceiro dia, não. No segundo dia, tivemos uma negociação que não tirou nada, cinco minutos.
Benedito – Porque a empresa estava irredutível. Tinha um cidadão que saiu com uma piadinha. Tínhamos conquistado uns dias antes, ônibus só nos dias de chuva, para levar o pessoal na estação São Caetano e estação Mooca.
Carmem – Ônibus da própria empresa…
Benedito – Eles arrumaram um caminhão. Na discussão do segundo dia, estávamos tratando do assunto de transporte, um dos caras do Relações Industriais, com o nome de Tomélio, chefe de departamento, disse em tom de ironia, para que nós queríamos transporte, dia que chove já tinha. Estava bem próximo dele. Esse cidadão é o maior tumor, encerrou a reunião. Ele inclusive saiu do departamento. Fiquei sabendo posteriormente que aquilo para ele foi a gota d’água. Perguntou do que estava rindo, disse que da cara de pau dele, sua falta de entendimento. Não deu nada nessa reunião um dia inteiro. No terceiro dia já houve solução.
Lúcio – No terceiro dia teve reunião o dia inteiro.
Benedito – Não participei da reunião no terceiro dia porque eu estava meio excitado.
Carmem – Foi dispensado (risos).
Lúcio – Durante o movimento, fizemos um rodízio entre nós. Conforme o movimento vai acontecendo, a questão da prioridade de cada elemento da comissão participar.
Benedito – E gosto muito de movimentação, adoro.
Lúcio – O Benedito é o cara da agitação do pessoal. Levar o pessoal para casa…
Benedito – Quero ver tudo movimentando, pegando fogo.
Lúcio – Nesse terceiro dia, a reunião foi o dia inteiro, praticamente. Começando o primeiro contato às nove horas da manhã. Ficamos conversando até às onze. Não se chegava a um entendimento. A empresa já havia cedido a questão da equiparação salarial, do departamento social, algumas outras coisas. A questão de todos aqueles pagamentos, em dezembro. E ela se mantinha irredutível na questão do transporte.
Benedito – Que era o nosso alvo principal.
Lúcio – Era a reivindicação principal, transporte. Ela podia dar tudo, mas sem transporte nós não voltávamos ao trabalho mesmo, era essa a decisão concreta.
Benedito – Foi evidenciado mais tarde, claramente, que parte da empresa que negociou perdeu a vez. E é simples explicar porquê. Tínhamos como fundo o transporte coletivo. Se eles tivessem senso de observação e nos tivessem dado só isso, teríamos ficado satisfeitos. Nessa eles dançaram.
Lúcio – Quem deu a palavra final foi o Guet. Ele havia chegado dos EUA na noite anterior e telefonema para lá, para cá. Mas qual o problema, porque não volta a trabalhar… Porque eles querem transporte. Então dá transporte para eles. Aí o acordo saiu, era umas duas horas da tarde. Acertamos as coisas, fizemos a assembleia e…
Benedito – Aliás, fazíamos todos os dias, até mais que uma por dia. Para esclarecer o coletivo, ponto por ponto.
Lúcio – A cada reunião com a direção da empresa, saíamos e fazíamos uma assembleia. Voltávamos, outra assembleia. E aí o acordo saiu às duas horas da tarde, e pôs fim à greve. Retornamos ao trabalho no dia seguinte. A empresa solicitava que uma vez votado o retorno ao trabalho, esse tem que ser imediato. Vai todo mundo para a seção e começa a trabalhar. O pessoal não aceitou. Trabalho só amanhã. Encerrou a greve, e voltou só no outro dia. Essa foi a primeira greve.
Carmem – Teve demitidos…
Lúcio – Não.
Lúcio – Participamos, lindamente, posso te dizer.
Lúcio – A greve geral na Ford começou da seguinte maneira…
Carmem – Você não estava na reunião dos metalúrgicos que aprovou a greve…
Lúcio – Não. A greve geral do dia 21 aconteceu da seguinte maneira: quando saiu a resolução da greve, começamos a fazer o trabalho de mobilização dentro da fábrica. Assembleias por setores, reuniões na sede…
Carmem – Vocês discutiram no sindicato a greve…
Lúcio – Sim, até o ponto em que o pessoal da noite na fábrica reivindicava uma assembleia para que fosse discutido que horas ia parar. A proposta era na base de greve geral, propunha que a partir das zero horas do dia 21 tudo estaria parado. Como o pessoal entra às seis horas da tarde e sai às quatro e dezesseis da manhã, a pergunta era que se íamos iniciar a greve a partir das zero horas, ou concluir o turno de trabalho e no dia seguinte não ir trabalhar. Como íamos fazer… E a outra, se pararmos à meia noite, como íamos embora para casa… Não tem trem, nem ônibus. E se pararmos às quatro e dezesseis… Imaginava-se, supunha-se, não vai ter trem, metrô, ônibus, nada. O que decidir… Fizemos uma assembleia com o pessoal da noite e a decisão foi que no dia 20, às vinte e duas horas iniciaria a greve na Ford, para o pessoal poder chegar em casa. Outra questão que se apresentava, era que como ficariam os companheiros do refeitório, cozinheiros. Iriam ou não preparar a janta para o pessoal. Porque se fosse preparar, seriam prejudicados, porque o pessoal não ia jantar e eles teriam que ficar até mais tarde.
Benedito – São mais de cem pessoas.
Lúcio – O que se decidiu foi que no dia 20 eles não iam fazer janta. Iam entrar e fazer algum lanche e o pessoal ia buscar para comer até às dez horas da noite. Fazia um café e às dez horas estariam em condições de ir embora conosco. Após dessa decisão, fomos conversar com a empresa. Pedimos uma reunião com a direção. A decisão da turma noturna é que a greve vai se iniciar às vinte e duas horas do dia 20. Queremos discutir também os trabalhos essenciais da fábrica. Bombeiro, guarda, segurança, o eletricista de plantão, o enfermeiro, o médico, o cozinheiro. Para servir esse pessoal de serviço essencial. Depois, a casa de tintas, a casa de máquinas, a casa de força e assim por diante. Negociamos com a empresa toda a lista de nomes e quais as pessoas que poderiam entrar no dia 21, ou permanecer na fábrica no dia 20 a partir das dez horas da noite. Só seria permitida a presença daquelas pessoas que estivessem na lista. Inclusive negociou-se e determinou-se que da parte administrativa, só poderiam estar presentes o gerente geral, o RI e mais ninguém. Só o pessoal de segurança e aqueles serviços essenciais. Foi elaborada a lista, assinamos e foi entregue para os guardas nos portões. O cara que se apresentasse, o guarda dizia, seu nome não está aqui, você não pode entrar.
Carmem – Quer dizer que a empresa colaborou com a greve…
Lúcio – Não é que colaborou. Foi um acordo que fizemos, porque ela tinha absoluta certeza que se não fizesse, ia ter piquete na porta da fábrica. Não entraria nem o pessoal de serviços essenciais. Ela foi esperta nessa questão. Não foi uma colaboração com a empresa. Foi uma condição que se impôs na negociação. Disseram que não iam dar o sinal de saída às dez horas da noite do dia 20. Tudo bem, nem estamos pedindo. Quando foi no dia 20 às dez horas, faltava quinze minutos e os peões já estavam todos no banheiro tomando banho, se trocando. Deu dez horas e picaram o cartão e pernas para que te quero, foram embora. Só a comissão, ficamos na frente da fábrica até o outro dia de manhã. Vamos ficar aqui para montar. Distribuímos a comissão e alguns ativistas em portões importantes da fábrica, para ver e observar. De horista, apareceu apenas um companheiro, que não pôde entrar. Um, de dois mil e quinhentos trabalhadores. Porque era crente e a religião não permite que faça greve. Apareceram vários mensalistas, de grau mais elevado, e não entraram. Aconteceu até um fato pitoresco. Uma daquelas viaturas da rota encostou no portão, onde estava um grupo de companheiros, e perguntou o que estavam fazendo ali. Nós somos da comissão de fábrica, somos funcionários da Ford e estamos aqui. Aí o segurança da fábrica, o guarda e o chefe de segurança imediatamente interferiram, chamaram o comandante da Rota e disseram que o pessoal não estava fazendo piquete. São da comissão de fábrica e não estão impedindo a entrada de ninguém. Porque tem um acordo aqui com a fábrica, que só vai entrar esse pessoal aqui da lista. Então os guardas da Rota ficaram com cara de bosta. (risos)
Lúcio – E foram embora. E então o dia 21 transcorreu para nós na maior tranquilidade possível.
Lúcio – Trabalhamos a questão da greve internamente, como uma greve política. Como uma greve de protesto. Aquilo não significava que íamos botar por água abaixo esse decreto e essa política que está aí e mudar o governo. Não colocávamos que aquele dia de greve, era um dia de protesto, uma greve política. Na realidade assim se alguém estivesse esperando um ganho imediato com aquilo, que tirasse isso da cabeça, que não tinha nada daquilo.
Benedito – E foi bem entendido isso.
Lúcio – Sim, pelo pessoal.
Benedito – Perderam o dia com prazer.
Carmem – A Ford descontou o dia…
Lúcio – Sim, o dia e o domingo. Por aí você vê que não houve conivência da empresa, como você diz. E sabemos que muitas empresas aqui de São Paulo no dia 21, aconteceram acordos de reposição neste dia de greve, em sábado de hora extra.
Benedito – Muitos.
Lúcio – Como avaliamos… Veja bem, eu acho que a greve aqui no Estado de São Paulo, na grande São Paulo, até atingiu o objetivo político dela. Eu não esperava uma paralisação total.
Carmem – Mas foi quase total.
Lúcio – Foi grande, mas não esperava uma paralisação total, esperava até inferior da que ocorreu. E só essa paralisação não foi total, porque o transporte continuou funcionando normalmente. Acho que foi o principal desarticulador do movimento. Agora, por outro lado, nós da Ford não gostamos da forma como a greve foi enfocada pelo sindicato depois, como um domingo, um feriado. Aquelas fotografias de ruas vazias, que não tinha nada de político.
Carmem – Porque você acha que não tinha nada de político fazer uma cidade como São Paulo parar num dia de semana…
Lúcio – Fazer uma cidade como São Paulo parar num dia de semana, é um fato político. Estou dizendo que não é um fato político, da forma como foi trabalhado esse dia de paralisação.
Carmem – É sobre o boletim do sindicato…
Lúcio – A forma de propaganda que o sindicato fez com esse dia parado.
Lúcio – Sim, achei que foi mal aproveitado e de certa forma intencionalmente aproveitado daquela maneira.
Lúcio – Exato. Porque a partir do momento que você não enfoca e não aproveita o fato político enquanto tal, você desmobiliza. Porque não educa. E foi exatamente isso que ocorreu, na minha opinião, e na de muitos companheiros na Ford.
Benedito – Naquele boletim deles distribuído imediatamente depois da greve, matou o intuito em grande parte do movimento. Deu para sentir quando os companheiros pegaram.
Lúcio – Se criou muito aquela imagem de um domingo.
Benedito – Fizeram isso por fazer.
Carmem – Que engraçado, na minha cabeça ficou a imagem ideal. Quem faz esse Brasil se movimentar somos nós.
Lúcio – Desde que você aproveite essa questão politicamente, nesse sentido, com esse objetivo. Quando você não aproveita esse fato político, no sentido de educar, mobilizar. Colocar para os companheiros que não atingimos o objetivo total. Não conseguimos parar totalmente esse estado, essa cidade, esse país. Mas já demos um grande passo. Fica aqui demonstrado o poderio da classe trabalhadora. Agora, solta-se uma puta fotografia, trabalhadores transformam São Paulo num domingo tranquilo no meio da semana.
Benedito – Tinham que ter tratado muito mais a sério.
Lúcio – Uma outra questão que não foi explorada e que deveria ter sido. Você tem o intuito da denúncia, da educação. A diretoria do sindicato quase toda foi presa nesse dia. Muitos companheiros foram indiciados em processos, e estão respondendo até hoje. Só que a categoria não tem conhecimento disso.
Carmem – É mesmo…
Lúcio – É.
Benedito – Quem contou…
Lúcio – A categoria não tem conhecimento disso.
Lúcio – Exatamente.
Benedito – E esse era um fato a ser divulgado, após o acontecimento.
Lúcio – O Luís Antônio foi preso dentro da Metal Leve.
Lúcio – O carro do Hilário, o carro dela ficou preso, durante sessenta dias. O carro da Nair saiu um pouco antes. A prova do crime do caso nos autos era o carro do Hilário. Pode perguntar para qualquer metalúrgico.
Carmem – Eu não vi nenhum boletim deles com isso.
Lúcio – Não se aproveitou o fato político. Porquê… Porque não há interesse em mobilizar a categoria para uma luta mais consequente. Levar a categoria para a luta de classes, concretamente. Essa é a grande questão, infelizmente. A partir disso e alguns outros fatos que começam já nesse período, começa a servir-se mais ou menos tratado como oposição. Porque uma fábrica, que durante todo esse período de vinte anos de Joaquinzão ali e a diretoria no comando do nosso sindicato. Uma fábrica que até 1982 tinha trezentos sindicalizados e que desse ano para frente, logo na primeira campanha salarial, em que na Ford compareciam no máximo quinze companheiros numa assembleia, chega numa assembleia de campanha salarial em 1983 com mais de mil companheiros presentes. Há um salto de 1982 até agora, sem fazer nenhuma campanha dentro da fábrica por sindicalização. Há hoje perto de mil e duzentos companheiros sindicalizados voluntariamente, sem precisar ir à cata de ninguém. Esse número está nesse pé, porque inclusive em 1983 houve uma transferência de pessoal do Ipiranga para São Bernardo, de aproximadamente trezentos companheiros, todos sindicalizados. Senão já poderíamos estar sem fazer nenhuma campanha de sindicalização interna, com quase 80% da fábrica sindicalizada. Na hora que você chega numa assembleia e nas reuniões e começa a levantar e questionar determinados posicionamentos políticos, no que aquilo está concretamente contribuindo para que a categoria avance, se mobilize, minha filha, você começa a sentir visto de rabo de olho. Começa a ser visto como aquele cara leproso que está no meio de pessoas sãs.
Benedito – Foi o que fizeram conosco.
Lúcio – Quando vamos para o 6º Congresso da categoria…
Carmem – Em 1983…
Lúcio – Vamos para o 6º Congresso da categoria e fazemos uma série de reuniões dentro da fábrica. Na sede, na região, discutindo a participação. Atendemos todas as normas estabelecidas e tiramos uma delegação de vinte e dois companheiros, que se apresentam no congresso. A Ford como a única empresa em São Paulo com uma tese própria. Só tinha a tese do sindicato e a da Ford.
Benedito – Uma tese toda discutida com o coletivo, ponto por ponto. Um trabalho caprichoso.
Lúcio – Você chega e começa a ser visto como leproso. Mesmo tendo uma fábrica organizada, um conjunto de companheiros organizados, que atuam, que vêm e participam de tudo. Às vezes você é obrigado, vendo o conjunto todo da categoria, a defender determinadas posições da direção do sindicato numa assembleia, por não querer jogar a categoria no buraco. Então, é forçado a defender os mesmos posicionamentos da diretoria. Enquanto está fazendo o papel tudo bem. Agora, quando passa a não fazer mais, precisamos puxar o tapete, dar cacetada na cabeça. Tudo isso veio crescendo a partir da organização da comissão de fábrica. Durante esse período todo. Quando no processo de preparação da campanha salarial de 1983, a primeira que a Ford participava durante esse período todo, de forma organizada. Discutimos a pauta de reivindicações nas reuniões e nos seminários preparados pelo sindicato. Na Ford não houve problema com a paralisação. Paramos no dia 20. As críticas que tenho em relação aquilo é como o sindicato não aproveitou para politizar, educar a categoria, mostrar o quanto foi importante. Inclusive, o próprio jornal do sindicato publicado na época, saiu como se fosse um domingo, um feriado. Mostrando uma foto, senão me engano, do minhocão, ou então ali perto do Mappin, por ali. Achei um grande absurdo. Não tem sentido nenhum uma propaganda daquele tipo, transformar um dia de luta num feriado. Um dia sem maiores consequências, sem maiores questões políticas. Foi uma greve que houve várias tentativas para a feitura, pelo menos no Estado de São Paulo e até em nível do Brasil. Acho que foi um fato válido, de muita importância. Porque o dia que, realmente, conseguirmos parar esse país na sua totalidade. Não estamos reivindicando mudanças em algumas questões políticas, ou quarenta horas de trabalho por semana. O dia que realmente conseguirmos parar esse país na sua totalidade, estamos tomando o poder dessa desgraça. E esse fato não foi bem explorado pelo sindicato. Não gostei nada, achei que foi uma omissão da questão política. Por outro lado, não me deixa surpreso esse tipo de atitude da direção do sindicato. Toda aquela luta é bem sucedida, tem que ter um final o mais rápido possível. E aí você tem várias formas para que isso ocorra no dia 21.
Lúcio – Sim.
Lúcio – A campanha salarial de 1983, foi a primeira que nós participamos como comissão mais atuante, organizada. Em 1982 tínhamos comissão de fábrica, mas onde realmente ela começa a marcar presença é nessa campanha. Infelizmente, todas, inclusive até agora, algo que não se permite, de forma alguma a direção do sindicato permite isso, é que a categoria se organize e realmente conduza a campanha. Acho que eles têm medo de perder o controle. Então, portanto, não permitem que a categoria se organize para o enfrentamento dessa luta. Em 1983, nós, já por experiências passadas, resolvemos fazer uma pauta de reivindicações específica na Ford. Não que quiséssemos fazer paralela ao sindicato, não é isso. Durante toda a campanha salarial, a Ford foi a que mais gente levou para a assembleia. Foi a que mais participou, inclusive fui desligado da produção durante esse período.
Lúcio – Até ali, ainda tínhamos um bom relacionamento com a direção do sindicato. Como se costuma dizer no meio sindical e político, eu era considerado um cara que estava em cima do muro. Nós da comissão de fábrica como um todo, não havíamos ainda tido um posicionamento político sindical, oposição ou situação. Isso nos permitia um bom relacionamento com o sindicato. Evidentemente íamos aproveitando de todos esses espaços. Sempre com a consciência de que não estava sendo aberto porque tenho olhos verdes e o Mato Grosso tem cabelos brancos. Estavam sendo abertos devido a um trabalho dentro da fábrica. A direção do sindicato tinha todo o interesse em cooptar esse, que não ficava mais única e exclusivamente fechado dentro dos muros da fábrica. Ele saía para a categoria. E com posicionamento político, sindical, de movimentos de massa. A direção do sindicato queria e quer até hoje ter esse movimento interno ao seu lado. Isso nos possibilitava um bom relacionamento. Posso afirmar que foi a empresa que mais participou dessa campanha salarial. E participou com massa, com propostas. Mas sempre foi dito que propostas em termos de organização fossem avante, fossem para frente. Após a assinatura do acordo, inclusive no qual nós da Ford dependemos da sua assinatura não por estarmos de acordo com a proposta da Fiesp, mas por reconhecermos que a categoria não estava preparada para nenhum tipo de movimento. Após isso, o conjunto da fábrica começou a solicitar a comissão um posicionamento mais efetivo, dentro da nossa realidade, com reivindicações específicas. Porque você pega hoje a pauta de reivindicações do sindicato da categoria de São Paulo, ainda hoje tem alguns itens a mais que nós trabalhadores da Ford não temos. Naquela oportunidade, você pegava os setenta e poucos itens que constavam da pauta e começava a examinar tudo aquilo, chegava a uma triste conclusão que a única coisa que interessava aos trabalhadores da Ford era a o aumento. Os outros itens não nos atingiam. Reconheço que é de fundamental importância no quadro de avisos no refeitório em local visível. Já tínhamos mais de vinte quadros de avisos, os quais a comissão se utilizava a todo momento e em qualquer oportunidade. A questão da estabilidade para acidentados, por exemplo.
Lúcio – Não tinha problema porque, inclusive a própria CLT garante essa questão. Questões do tipo eleições da CIPA, democraticamente nós já tínhamos. Equipamentos de segurança, também.
Lúcio – Distante da nossa realidade.
Lúcio – O que precisávamos conquistar: transporte coletivo, por exemplo. Não tínhamos, da empresa para os trabalhadores. Um aumento real mais significante daquilo. Uma outra questão, a Ford não tinha departamento de assistente social. Elaboramos, em cima dessas cobranças do coletivo, uma pauta de reivindicações. Reivindicávamos 6% de aumento real, transporte coletivo, departamento social. Aliás, inclusive, já vínhamos negociando isso durante um ano mais ou menos, a implantação desse serviço. Reivindicávamos proporcional do DSR.
Lúcio – Domingo remunerado. Hoje se você chega na maioria das empresas um minuto atrasado, você perde o domingo. Na Ford você tem quatorze minutos por semana, que podem ser cumulativos. Mas passou desse tempo, perde o remunerado completo. Se você falta um dia, lá vai para o vinagre. O que reivindicávamos era um desconto proporcional, que representa esse remunerado dividido por cinco. Se faltou um dia, perderia apenas aquela proporção. Em cima dessas questões chegamos à greve. Foram feitos três dias de greve em cima disso. Também não aconteceu na base do entusiasmo, sem nenhuma preparação. Quando entregamos essa pauta para a empresa, nos disseram que não iam negociar. Porque não faziam nem quinze dias que a Fiesp assinou acordo com o sindicato. Não vamos discutir aumento real, transporte, nada disso, porque tudo estava na pauta que foi negociada. Insistimos e chamamos o sindicato. Fomos aconselhados para não entrar nessa briga. Vocês podem cometer uma loucura, que estávamos fora da realidade. E que não havia a menor chance. Só que estávamos discutindo essas questões com o coletivo, sabendo o que esse pessoal estava disposto e até onde estavam dispostos a chegar. E aí, numa forma de pressionar a empresa a negociar conosco, numa segunda feira, uma semana antes da greve acontecer, fizemos uma assembleia na porta da fábrica e propusemos que a partir daquele dia, os companheiros, ao invés de chegarem na fábrica e irem para os vestiários se trocar, irem para a seção. A hora que apitar sete horas, já estarem com o dedo no botão da máquina começando a produzir. Propusemos que todo o pessoal durante aquela semana ficasse até cinco para às sete no portão da fábrica e ninguém entrasse.
Lúcio – Pressionar a empresa a negociar conosco. Porque ficamos com uma massa de fora, mais ou menos mil e oitocentos companheiros, até cinco para as sete. Aí entram todos de uma vez para os cartões de ponto. Esses cinco minutos que eles teriam aí, dá tempo de picar o cartão, até sete e dois, por aí. Eles vão até o vestiário, se trocar, tudo. Então a produção concretamente começa a acontecer a partir das sete e vinte e cinco. A empresa, o que ela pode fazer em relação a qualquer desconto do salário do trabalhador… Nada. Ele picou o cartão no horário previsto, então nenhuma punição poderia acontecer. No segundo dia, isso acontece, é um fato interessante. Na hora em que o pessoal começa a se aglomerar no portão da fábrica, fazíamos assembleia todos os dias. O pessoal começa a aglomerar e a empresa manda os guardas abrirem o portão maior e entra todo mundo. Está arrebentado o movimento. Acontece que os guardas abrem o portão e a massa atravessa a rua do outro lado, e começa a vaiar a fábrica e ninguém entra. Por própria iniciativa deles. No horário do almoço, também. O pessoal ao invés de almoçar, sair do refeitório até o apito do retorno da hora, o que dava mais uns dez minutos, até a produção começar a andar. Isso tudo durante o período, a cada dia tinha uns quarenta minutos por cabeça sem produzir, e a firma sem poder fazer nada. Ela tentou algumas medidas repressivas, como é bom não sair ninguém do setor enquanto não apitar para almoçar. Ninguém sai do setor às cinco horas. Só que aí a hora que a empresa começa a fazer isso e os encarregados começam a ficar na boca da linha, vendo quem é que sairia, os peões começam a gozar. Virou parque infantil. Só que esses caras se esquecem que nós ganhamos até cinco horas da tarde, portanto não está sendo cometida nenhuma punição. Assim foi a semana inteira. Não fizemos piquete, não fizemos paredão na frente da fábrica, coisa nenhuma. Foram os cinco dias da semana e nós na safadeza. Além de todo um boicote, desde o início da campanha salarial, a toda e qualquer hora extra na fábrica. E até aquele momento o sindicato ainda nos desaconselhando a fazer o movimento. É loucura, vocês vão se foder, não sei o que lá. Não é por aí, vocês estão fora da realidade. Só que o desfecho da coisa provou: quem estava fora da realidade, quem realmente não estava disposto a nenhum confronto com o patrão, era a direção do sindicato e não nós. E, após uma semana desse tipo de movimento, na próxima segunda feira fizemos assembleia na porta da fábrica. Colocamos que até o momento a empresa não nos chamou para negociar. Só nos resta duas saídas, ou abrimos mão das nossas reivindicações e voltamos ao ritmo normal de trabalho, ou vamos a greve. E foi colocado em votação essas duas propostas. Por unanimidade, foi decidido a greve, a partir daquele momento. A orientação que demos foi que todos entrassem e não tinha sentido ficar até cinco minutos antes da hora com a greve deflagrada. Que todos entrassem, e picassem os cartões, colocassem suas roupas e macacões lá no armário. Todo o pessoal se concentrasse na frente do saguão à paisana. A empresa ainda jogava com a questão de que o pessoal não ia entender, ia subir para os vestiários, se trocar e ficar ali na fábrica. Os caras vão ter que fazer piquetes, arrastão, aí por dentro. Isso tudo porque na sexta-feira à tarde, no final do expediente, a empresa fez uma reunião com todos os encarregados, perguntando o clima que estava. Se havia condições de na segunda-feira entrar em greve. Toda a chefia disse que não havia a mínima condição. Tudo bem, acontece que fizemos reuniões na sexta-feira depois do serviço, no sábado, com os companheiros mais ativistas e na segunda-feira a greve foi deflagrada. O pessoal subiu para os vestiários, guardou a roupa. Era quinze para às sete e estava todo mundo na frente do saguão, aguardando uma assembleia. Sete e meia fizemos, mais proforma. Não tinha nem o que falar àquela altura do campeonato. Fizemos assembleia para o pessoal, e a primeira negociação com a empresa aconteceu que por volta de sete e meia, hora de distribuir o café. O pessoal da cozinha ia com os carrinhos levando os vários botijões para o pessoal se servir. Havíamos decidido que a cozinha não ia parar de trabalhar. A fábrica parava, mas ela, não. Sete e meia da manhã, o café sendo distribuído e a massa ali na frente. Pedimos para o pessoal que ninguém saísse dali, que ninguém fosse para dentro pegar. Íamos levar ali. Fomos e negociamos com a gerência da cozinha que o café fosse servido no pátio. E aí vieram todos os carrinhos. Na hora do almoço, pedíamos para o pessoal que obedecesse seus horários, para que não houvesse tumulto no refeitório. Isso foi feito.
Carmem – O que o pessoal ficava fazendo durante o período de serviço…
Lúcio – Eles ficavam jogando dominó, baralho. No segundo dia de greve, alguns companheiros levaram pipa, ficaram empinando dentro da fábrica. Batuque, levaram violão. E nós ali negociando com a empresa.
Carmem – E a empresa deixava entrar sem problemas…
Lúcio – Sim. Entrávamos normalmente. Picávamos o cartão de entrada e saída, sem maiores problemas. No segundo dia, resolvemos que os mensalistas também deveriam parar. Foi feito tudo organizado, inclusive pelo próprio pessoal da fábrica.
Carmem – Os mensalistas, é o pessoal do escritório…
Lúcio – Sim, o pessoal do escritório. Foram feitos alguns comandos. E o pessoal resolveu que o eles também deveriam parar. Formaram comandos e foram de escritório em escritório, convidando o pessoal. Houve alguma resistência, não física. No primeiro dia foi feito um convite, e o pessoal não saiu. Um grupo maior de companheiros, uns quinhentos, entraram e fizeram aquela espécie de corredor polonês. Ia um na frente e dizia, ou vocês saem, ou não temos condições de segurar esse pessoal, vocês que sabem. Eles iam saindo e evidentemente sendo aplaudidos por terem aderido ao movimento. Ao final de três dias, chegamos a um acordo com a empresa, de equiparação salarial, que dava uma média de aumento salarial de 5,2% e conseguimos a implantação do departamento de assistência social. Vieram algumas outras coisas, durante a negociação acabaram por surgir outros pontos de reivindicações. Eles não abriram mão do DSR proporcional, mas em contrapartida conseguimos em relação ao convênio médico. Porque temos um convênio com a AMICO e Sul América, que é o seguro de vida em grupo. Além disso, temos direito a assistência médica. Só que há um desconto de 2,5% no salário mensal, destinado para o seguro. E a Sul América administra a assistência médica. No ato da consulta, pagávamos uma taxa, um terço da consulta de um preço estipulado e dois terços vinham descontados no salário. Conseguimos que esse terço a empresa absorvesse. Hoje não pagamos mais. Só sofremos o desconto dos dois terços. O transporte coletivo a ser implantado dentro de quatro meses. Os dois dias de greve, os três dias a serem descontados, em duas parcelas, e não sofreriam os domingos remunerados, nem o 13º ou férias. Em dezembro receberíamos, por uma questão de direito, a segunda parcela do 13º do ano de 1983. O abono de emergência deveria ser pago a partir de fevereiro de 1984. Conseguimos que, em dezembro íamos receber a segunda parcela do 13º de 1984, o abono de emergência que ia ser pago a partir de fevereiro, na saída das férias do pessoal e mais dez dias de férias coletivas para todo mundo. Em média, em dezembro, cada trabalhador da Ford recebeu seis salários. Foi um movimento vitorioso e a direção do sindicato realmente assumiu, depois da greve deflagrada. Porque até o momento o próprio diretor do sindicato, numa das assembleias, tentou jogar contra a greve. Tivemos até que desmobilizar um grupo de companheiros, que estava se organizado no sentido de comprar ovos e tomates para jogar na direção do sindicato. E não é chacota, é fato real. Aí a greve foi vitoriosa.
Carmem – Tinha umas coisas que eu queria perguntar. Se nunca foi reivindicação dos horistas passar para mensal, se é vantagem, se o salário, melhora… Essa é a primeira.
Lúcio – Olha, nunca tivemos por parte do horista esse tipo de coisa. Temos sim reivindicações, como, o companheiro, quando é mensalista e tem um “x” por mês, e não por hora. Ele tem uma série de benefícios na empresa, não trabalha quarenta e oito horas por semana, mas quarenta. Ele falta um dia por semana, não perde o remunerado, não tem desconto de férias. O mensalista, enfim, tem uma série de vantagens, que o horista não tem. Porque normalmente essas empresas todas, em relação ao pagamento, tanto faz o horista como o mensalista, ele tem pagamento por quinzena. Recebe, no caso do horista, “x” por cento. No nosso caso, cento e três no dia 25, e o restante no dia 10. Em relação a isso, não há porquê da reivindicação. Ela é mais em cima dos benefícios que o mensalista tem.
Carmem – Nunca teve uma reivindicação de que todos fossem mensalistas… Uma outra coisa, antes que você coloque, é que o nível de reivindicação da categoria é muito abaixo do que tem na Ford. A grande maioria já foram conseguidas. Se extrapolamos esse raciocínio, somos levados a acreditar que as multinacionais têm melhores condições de trabalho e que graças a Deus elas estão instaladas aqui.
Lúcio – Olha, se você leva uma análise fria, crua e nua, dessa forma, é a realidade. É uma realidade. Inclusive, recente pesquisa, vinda de um trabalho feito dentro da Ford um professor que vocês devem conhecer, o professor Leôncio da USP, está presente o resultado: o trabalhador prefere trabalhar na multinacional. É realmente uma realidade, ela te dá a condição melhor de segurança no trabalho, equipamentos e outras coisas. Você não corre o risco do atraso de pagamento. Pode conversar com o companheiro lá que tem vinte e cinco anos de fábrica, e nunca teve um atraso. O salário que ele recebe é superior ao mercado.
Carmem – Tudo bem, sabemos disso. As condições de trabalho são melhores, o nível do salário é melhor que do mercado. Mas nós também sabemos que o nível de exploração também é maior, como fica… Qual o trabalho que é desenvolvido para conscientizar o trabalhador que ele é mais explorado que o mercado…
Lúcio – Eu vou chegar lá. É só você ficar um pouquinho mais calma. Só que antes, queria dar um outro dado, muito recente, inclusive, de terça-feira. É uma reivindicação da comissão de fábrica, que pedimos uma reestruturação de salário na Ford. Foi feito todo um estudo interno e foi feita a apresentação de uma nova estrutura salarial. Simplesmente, o piso de salário da Ford hoje está em 77% acima do da categoria.
Carmem – Mas quantos por cento abaixo do piso para a categoria pago na matriz…
Lúcio – Aí são outros quinhentos cruzeiros. Na realidade, se você for ver o piso salarial na Ford, é exatamente o que deveria ser o salário mínimo no Brasil. Em torno de um milhão e duzentos mil cruzeiros. Isso vem provar que a multinacional não é tão generosa assim como parece. Quanto a questão do ritmo de trabalho, da exploração que um trabalhador de uma multinacional sofre, é mais camuflada, trabalhada cientificamente. Essa é a grande questão. Justamente devido as condições de trabalho que ela oferece. A própria alimentação. Mas isso não significa que na grande maioria das multinacionais, o cara não vai fazer hora extra, no primeiro corte ele está na rua. Elas têm que trabalhar com programas de trabalho. São metas a serem cumpridas durante determinado período. Há um remanejamento de pessoal, aqueles que atenderam e que produziram e os que não foram satisfatoriamente dentro dessa produção.
Carmem – Deixa eu te perguntar uma coisa, a Comissão de Fábrica da Ford tem algum tipo de interferência na decisão do ritmo de trabalho… Se de repente a máquina acelerada a um nível que se torna insuportável trabalhar… Que tipo de interferência hoje tem condições de colocar…
Carmem – E você é culpado pelos acidentes, que aquele ritmo acima do normal pode ocasionar…
Lúcio – Realmente tudo isso ocorre. Conheço algumas multinacionais que, um companheiro trabalhava com determinada máquina, foi implantado um novo método tecnológico naquela mesma produção, e ele passou a trabalhar com quatro máquinas. Normalmente essas empresas, quando há uma modificação de algum sistema de produção, fazem algo que chamam de treinamento de adaptação. Mas na verdade, não é bulhufas nenhuma. Na realidade esse treinamento não acontece. O que acontece é um condicionamento do indivíduo, para que ele se adapte àquele tipo de serviço, com a ameaça de perder o emprego. Isso é o que na realidade acontece. Não especificamente um treinamento técnico, para que ele esteja completamente capacitado a operar aquele tipo de máquina. É uma sofisticação de engodo. Para esse tipo de treinamento, é feito para uma infinidade de pontos, tipo CCQ, trabalho participativo, uma série de outras coisas que no final das contas não isso coisa nenhuma. É uma dupla utilização do cara.
Carmem – Diz uma coisa, dá para sacar dentro da fábrica quando está sendo introduzido um sistema novo… Uma tecnologia nova… A máquina está sendo adaptada a uma coisa nova…
Lúcio – Isso fica a olho vivo, está na cara a hora que vai modificar um sistema de produção. O problema é fazer um enfrentamento a isso. No nosso caso específico, fizemos um enfrentamento sobre essa questão, sobre o alto ritmo, o excesso de horas extras. Fizemos e temos toda uma política em relação a isso. Por exemplo, o primeiro setor a ser atacado dentro dessa questão, começou em meados de 1983, e foi até o início de 1984, foi no setor de peças. É aí que entra a questão do condicionamento do indivíduo. Inconscientemente o trabalhador, por pressão da supervisão, da chefia, passa a ter um total ritmo de competitividade com seu parceiro de máquina. Ou seja, você tem uma produção, que deveria fazer durante o dia mil peças. Então o cara está ali na pressa, ele consegue fazer mil e cem, naquelas nove horas de trabalho. O encarregado da noite, da outra turma depois, chega e fala, você viu o cara, ele é bom à beça, fez mil e cem. Aí o cara larga o pau para ver se consegue fazer mil e duzentos, e aí começa o aumento do ritmo de trabalho. Porque o problema, se o cara não fizer no mínimo as mil e cem, ele vai ser chamado a atenção, vai ser punido. Se o outro conseguiu, porque você não consegue… É onde começa a acontecer acidentes, uma série de coisas. E o culpado sempre é o trabalhador, que não teve atenção, não teve o devido cuidado. Ele precisa ter atenção, cuidado, cuidar da máquina. Que a produção saia boa e ainda produza mais que o outro. Então, essas prensas todas têm uma ficha de produção, que fica pendurada na máquina e que coloca ali quantas batidas por hora elas têm que dar. É uma questão técnica, quantas batidas por hora, quantos homens têm que trabalhar na produção daquela peça.
Carmem – Quem decide isso…
Lúcio – O setor de planejamento da empresa.
Carmem – A empresa! Porque na Alemanha, é negociado. A máquina vai dar tantas batidas por minuto. É negociado.
Lúcio – Não, mas aí que está o problema. A empresa tem um setor de planejamento. Queira ou não, ele trabalha em cima de normas internacionais. Você pode achar duvidosa a coisa, mas ele trabalha. Após feito esse estudo, a cronometragem do tempo necessário para a execução desse trabalho todo, é passada no papel pelo setor técnico. Daí ao cumprimento disso, são outros quinhentos cruzeiros. O cumprimento dessa questão é direto ali na prática. Não é o mesmo que o departamento chegar aí e colocar. É muito difícil e você quase não tem campo de questionamento em relação aos trabalhos técnicos. Daí você negociar o ritmo de produção da empresa. Mas o trabalho técnico em si, é honesto. É um trabalho correto. O problema é o cumprimento dele na produção.
Carmem – Você está querendo me dizer que essa fichinha que está presa na prensa, dizendo que tem que dar quarenta batidas por minuto, e a supervisão manda dar oitenta…
Lúcio – Tem que dar, digamos, quarenta batidas por hora. A supervisão faz com que dê até cem.
Lúcio – Você tem que puxar o saco, o capataz aí na seção…
Carmem – Eu acho até que essas fichas e batidas testadas e imaginadas tecnicamente, são uma maior exploração. Se ao invés de dar quarenta, você dá cem, está sendo super explorado…
Lúcio – Sem dúvida, quanto a isso não tem dúvida, Carmem. Agora o problema é o seguinte: só que essa questão estipulada, você vai pensar esses pontos aqui. O cronometrista, vai ficar ali do lado da máquina. Então, o prensista vai pegar o material ali, colocar na prensa, apertar o botão. Vai tirar o copinho dali, jogar no cesto, assim por diante. O cronometrista vai marcar quantos copinhos ele faz em um minuto, e vai tirar a média. Mas essa, ele vai acrescer o tempo desse cara levar para arrumar o material. É adicionado uma série de outros fatores. Aí se estipula o tempo padrão de feitura disso. O que ocorre é que quando o cronometrista encosta numa máquina, o cara que estava fazendo movimentos lentos, passa a acelerar. Passa a fazer com maior rapidez. Cada ferramenta que vai na prensa já tem no seu projeto, trabalhar num determinado tipo de máquina, em determinado tipo de trabalho. Quando chega na produção, é totalmente alterado, segundo as conveniências do chefe ou da gerência da seção. É aí que digo que não podemos culpar a parte técnica. Que tem os seus arrochos, tudo bem. Mas não adianta negociar com essa parte, se pelo menos você não conquista o cumprimento dessa questão na produção. Porque foi o que nós fizemos, conquistar primeiro a questão da produção. Chegávamos nas prensas, pegávamos a ficha e olhávamos, primeiro essas ferramentas estão em máquina errada, não deveriam estar aqui. Segundo, essa ferramenta deveria trabalhar com quatro operadores e aqui só tem três. Ela tem que dar duzentas batidas por hora e aqui nós estamos vendo que já deu trezentas. Inclusive de conversarmos com a chefia. O que fazíamos, pegávamos os grupos de trabalhadores na hora do jantar, do almoço, no café, no descanso deles, no banheiro e dávamos primeiro aquelas respostas nos caras. Uma resposta mesmo, dizendo que eles tinham que tomar vergonha na cara, largar de serem filhos da puta. Agredíamos os caras, para primeiro levantar neles aquele sentimento de amor próprio. Criávamos aquele clima de revolta, cada um começava a se vigiar, e um vigiando o outro. E íamos negociar com a gerência do departamento. Porque naquela máquina só tem três prensistas e tinha que estar quatro… Então vamos fazer o seguinte, tinha que dar duzentas batidas por minuto com quatro homens, ele vai passar a dar somente cento e cinquenta. Mas você tem que entender. Não temos que entender porra nenhuma, coloca quatro homens e vai dar só duzentas batidas. Isso começou a ser feito, as ferramentas começaram a ser colocadas nas máquinas certas. Ao ponto que o pessoal e o próprio prensista, após uma hora de trabalho, iam lá na ficha comparar. Tem duas batidas a mais. Isso começou a acontecer, todo aquele volume de produção passou a não virar mais. Tudo o que eles diziam, que sempre tinha gente sobrando nas prensas, começou a se inverter. Eles tiveram que admitir gente sobrando nas prensas. Num espaço de dois anos, além de acabar com os estouros da produção, abrimos mais cinquenta vagas. Se criou inclusive o terceiro turno. O pessoal foi consciente e o enfrentamento dessa questão. Hoje se começa a querer puxar um pouco o ritmo, os peões “opa, espera lá”. Uma outra questão que nós depois passamos a atacar, foi a linha de produção. Porque você tem uma produção estipulada por dia, quantas unidades de caminhão vão sair. Na oportunidade em que começamos essa discussão e enfrentamento lá dentro, a produção era em torno de cento e dez unidades por dia. Só que chegava no final, tinha até cento e trinta tiradas. Estavam saindo vinte caminhões a mais, com os peões da linha, “pô, lá na frente os caras não estão mais tirando”. A comissão foi lá e mediu isso. Então, os operários chegavam, vocês têm que vir aqui e não deixar que saia unidades a mais. Usamos o mesmo método. Nos reuníamos com os grupos e chamando de corno, safado e filho da puta. Começávamos a mexer com os brios dos caras. E então começou a acontecer que determinamos um ponto da linha de montagem, em que descem as cabinas dos caminhões. Quando estivesse descendo a de número vinte, já da programação do dia seguinte, parava ali. E no segundo dia mais. A primeira semana foi de plantão mesmo. Chegar em torno das quatro horas da tarde, a comissão de fábrica montar o plantão naquele ponto. Conseguimos controlar também essa produção e isso começou a funcionar como uma espécie de cadeia. Em cada linha tem a ficha de produção diária e por hora, começamos a ter acesso ao planejamento. Ver quantos conjuntos deveriam ser montados, qual a capacidade por hora. O modelo do carro e aquela coisa toda. A capacidade da pintura. A linha de montagem, tem uma capacidade de dezesseis veículos por hora, desde o início até o final. A cabine de pintura tem uma capacidade de quatorze veículos por hora. Para que a linha tenha dezesseis veículos por hora, evidentemente, a pintura vai ter que fazer hora extraordinária para poder dar essa produção no dia seguinte. Isso começou a funcionar em cadeia. Se você chegava e parava a linha de produção às quatro e meia da tarde, daí a meia hora falávamos para o pessoal subir para o banheiro, tomar banho e fim de papo, que seguramos o olhão. Então eles começaram a se sentir seguros. A empresa não tinha como vir nos recriminar, porque jogávamos eles contra a sua própria programação de produção. Eles programaram cento e dez unidades, porque agora estão criando. Então, essa mão de obra de trabalho, consequentemente, começa a acontecer. Durante o dia o pessoal trabalhava um pouco mais folgado, e começamos a reivindicar coisas, como horário para café. Nas linhas de produção não tinha, e a empresa não oficializava isso. Já conseguimos e quando tem 90% na fábrica esse horário é arrancado na marra. O pessoal, sete e meia na hora que o café chega, vai lá, pumba, e fica quinze minutos sentado. Na linha do chassi e na linha final, o pessoal ainda não acreditava nesse pique. Na pintura, conseguimos um revezamento. Porque realmente ela não pode parar, mas tem um revezamento de pessoas. Antes era feito como um turno ali na cabine. O cara trabalhava duas horas e ficava uma hora fora. Hoje o cara trabalha uma hora na cabine e fica uma hora fora.
Carmem – E o que ele fica fazendo nessa hora…
Lúcio – Fica fumando, bêbedo água, batendo papo. É o ritmo de hoje. Foi uma série de coisas que foram aperfeiçoando ali dentro. Então, hoje o ritmo de produção já não é tão acelerado. Temos muito boicote à hora extra. Porque isso é o maior pepino que tem dentro da fábrica. É a briga contra a hora-extra. Porque o peão, quando começa com um excesso, ele começa a reclamar que está cansado, que não aguenta mais. Então você chega e para, faz uma campanha e dá um breque por um mês e meio. Aí o salário cai, o cara começa: não está dando para pagar minhas contas. E começa de novo, na hora-extra. Daí dois meses e cara está arrebentado de novo e começa a reclamar. É um troço muito complicado. Optamos por utilizar da questão da não feitura de hora-extra para negociações com a empresa, uma barganha de algumas conquistas. Não se faz aquela campanha sistemática contra. Quando surge essa questão da estafa do cara, você aproveita, para com a hora-extra por dois meses e negocia com a empresa alguma reivindicação. Tivemos um enorme avanço, principalmente na produção. Até outubro do ano passado, 1984, a média por trabalhador ali da linha de produção era em torno de cinquenta horas por mês. Em dezembro, assinamos um acordo com a empresa em termos de produção, que limita essas horas em dezoito por mês.
Carmem – E isso é um avanço…
Lúcio – Pelo contrário. Eles estão querendo romper com esse acordo, atualmente, no sentido de não fazer mais nem essas dezoito horas. Tem um grande número de companheiros que reivindicam isso, que atualmente a produção trabalhe dois sábados por mês alternados. A empresa a semana passada nos chamou, que a média de presença durante esses anos não ultrapassa 50%.
Lúcio – Aos sábados que estão no acordo. E o pessoal todo reivindicando que se rompa esse e que ninguém mais venha fazer hora-extra de produção aos sábados. Também chegamos a solicitar que fosse feito para a comissão de fábrica uma exposição de como é feito o cálculo de tempo padrão por peça, por unidade. A empresa, num primeiro momento, se recusava a dar esse esclarecimento. Até que ela chega e resolve fazer uma primeira exposição. Veio o setor técnico explicar como era calculado o tempo. O cara fez uma exposição de quase duas horas, tabelas, explicando. No final da conversa, perguntou se estávamos esclarecidos. Respondemos que não era nada disso que queríamos saber. Portanto, não valeu bulhufas. Continuamos reivindicando. E aí reivindicamos um estágio de um elemento da comissão nesse departamento técnico, para conhecer o mecanismo. Foi feito uma segunda exposição, que também acabou por não satisfazer. Então foi uma briga que temos atualmente. Embora, já tenhamos furado de vários lados, e conseguido várias informações de como a coisa se dá, ainda continuamos reivindicando um elemento da comissão nesse departamento. Temos a visão que não vai ser tão já que vamos conseguir. É uma questão que, principalmente, agora que você tem de uma forma superficial, a produção mais ou menos controlada. E qualquer serviço que começa a puxar um pouco mais, o peão passa no telefone e chama a comissão de fábrica. Hoje nós sabemos por exemplo qual a velocidade que a linha de produção precisa ter, onde o botão do relógio tem que ficar. No início, qualquer supervisor chegava lá e mexia. Hoje conseguimos que onde está esse botão, foi feito uma caixinha com vidro e metido um cadeado, que fica na engenharia. O supervisor não tem mais condições, mas de vez em quando vem um gaiato e mexe. Mas a linha começou a andar um pouco a mais, chama nós e para tudo. O cara vem e volta lá no lugar e tudo bem.
Carmem – Isso de certa forma coloca a Ford em posição privilegiada em relação a outras montadoras. A empresa de alguma forma vai querer ser ressarcida desse tipo de prejuízo…
Lúcio – Por enquanto, ainda a Ford não está preocupada com esse tipo de coisa. O que conseguimos atingir, até o atual momento, não é praticamente uma interferência de controle da produção. E sim a garantia de que a questão técnica colocada pela própria empresa seja mantida. Nós conseguimos fazer com que o excesso obtido fosse cortado. E aí você pega um cara que estava sendo obrigado a trabalhar, num ritmo de trabalho e hoje ele trabalha dentro de determinados padrões técnicos de avaliação desse tempo de produção. Ele fala, “pô, joia”. Nesse momento ele não tem essa preocupação ainda. A preocupação começa quando concretamente começamos a interferir nesses cálculos técnicos. Por enquanto nós não temos ainda esse acesso.
Carmem – Mas acho que mesmo assim ela já está se preocupando, sabe por quê… Por esse aumento do ritmo. Pode ser até que eu esteja errada, mas é uma super exploração.
Lúcio – Sim, mas você tem que levar em conta que…
Carmem – E a colocava no mesmo nível das outras do mercado…
Carmem – Sim, estou colocando ela enquanto competitividade de mercado.
Lúcio – Sim, Carmem, mesmo assim. Porque exatamente o que define a competitividade dela no mercado é aquele preço do produto calculado em cima desses padrões técnicos. De quanto ela tem capacidade de produzir por hora, de colocar no mercado no final do mês. Se ela estava tendo um superávit de produção no final do mês, isso acaba. Até por ser diluído nas grandes mordomias, que a própria chefia e a gerência acabam por ter. Que tem muitos lucros acima dos estimados. Então que não há preocupação de quanto material está gastando a mais ou menos. Porque o lucro está bem.
Carmem – Quantos almoços a mais ou a menos…
Lúcio – Quantos caras estão enchendo o tanque de gasolina por semana, por dia, isso aí não está interessando. Agora, você começa a fazer esse controle dentro dos padrões técnicos, sente claramente quais são, inclusive da própria gerência da fábrica. Uma série de mordomias passam a ser cortadas automaticamente. Mas isso não está afetando no lucro das empresas e na competitividade, em relação ao mercado. Ela continua competitiva do mesmo jeito, porque está dentro daqueles padrões preestabelecidos.
Lúcio – Paralelamente a isso, nesses últimos dois anos abrimos controle de hora extra, de produção, e encheram de saco em cima de revezamento de pessoal. Abrimos cerca de seiscentas vagas na Ford. Tudo em cima disso. E é um crescendo a conscientização do pessoal. São três anos de comissão e quatro anos que não há dispensa na Ford. Não se faz mais dispensa. Uma série de coisas que foram sendo conquistadas a partir da comissão de fábrica, quando você começa a discutir com o trabalhador o seu problema do dia a dia, e vai conscientizando o pessoal. E hoje para você fazer uma greve, uma paralização, uma manifestação é uma questão de segundos. Você não tem maiores problemas.
Carmem – Lúcio, vamos voltar para a campanha salarial de 1983.
Lúcio – Isso são alguns desdobramentos da coisa. Esse nosso movimento de 1983, foi plenamente atingido e vitorioso. Conseguimos a implantação de cinquenta linhas de ônibus. Isso foi um dado importante. Hoje podemos dizer que o transporte fornecido pela Ford Ipiranga, se não é o melhor, está entre os primeiros das indústrias automobilísticas de qualquer indústria de São Paulo e do Brasil. Isso por um simples fato: o planejamento de linha, e a forma de transporte, não foram feitos pela empresa, mas pelos trabalhadores. Fizemos pesquisa interna do interesse de todo mundo. Vilas por vilas, região por região. Traçamos as linhas no mapa de São Paulo. Fizemos o traçado e pegamos, por cada região, por cada linha dessa, três companheiros que moravam naquele trajeto e conseguimos quatro carros da empresa. Em horário de trabalho, colocávamos o peão e íamos percorrer essa linha. E fazia o trajeto. Está bom, vamos mudar aqui, invés de ir por aquela rua, vamos por essa, porque fulano de tal mora aqui, o outro mora ali, e fica mais perto. Assim foi feito. Todas as linhas começaram a correr por um período de quinze dias experimental. Botava o ônibus para fazer aquele trajeto e dentro de quinze dias, algum erro que tivesse, ainda dava uma ajeitada nos trajetos. Atualmente estamos com cinquenta e sete linhas, conseguimos mais sete.
Carmem – Qual o tempo máximo dessa linha…
Lúcio – É meio difícil dizer para você, porque hoje temos ônibus que vão até Poá, até Cumbica e uns outros mais centrais. Tem ônibus que vão para lá de Santo Amaro, até o Grajaú. Então você tem uma linha de ônibus, que é a que o sujeito toma, que vem de Poá. Tem 57km de extensão. A um preço de dez mil cruzeiros por mês.
Lúcio – A Ford paga.
Carmem – Esse preço é por extensão de linha ou todo mundo paga…
Lúcio – É geral, uma viagem dessa fica em torno de duzentos mil cruzeiros para a Ford. O preço que nós pagamos no transporte, não dá 15% do total do custo.
Lúcio – Não, isso é feito por empresas contratadas.
Lúcio – Essa foi uma das maiores conquistas que tivemos lá, a questão do transporte. Hoje em média, cada trabalhador gasta uma hora de manhã e uma à tarde de trajeto. Tínhamos companheiros que gastavam em média por dia, seis horas, só de locomoção para o trabalho. Três horas para vir de manhã e três, à tarde.
Carmem – Sai de ônibus, pega outro, pega trem.
Lúcio – Tinha companheiro que pegava até quatro conduções. Em média hoje, estariam gastando vinte mil cruzeiros por dia em condução.
___: Não, vinte por dia é muito caro.
Carmem – Dez.
Lúcio – A limitação definitiva do ônibus, se deu a partir do dia 1º de junho de 1984, a oficialização. Aconteceu um troço genial. No dia da inauguração, o pessoal da fábrica resolveu tomar a iniciativa e passaram uma lista arrecadando dinheiro para fazer uma festa. Na oportunidade, arrecadaram em torno de setecentos cruzeiros. Deram esse dinheiro na mão da comissão, para organizar. Tudo bem. Compramos trinta dúzias de foguetes e negociamos com a empresa. Liberamos seis companheiros durante o dia, para fazer a bateria. Outros companheiros fizeram um balão de não sei quantas folhas…
Carmem – Que cores…
Lúcio – Vermelho, branco e preto. E aí fizemos a festa.
Carmem – Onde foi…
Lúcio – No pátio da empresa. Um grupo de pintura fez uma música para a comissão. A empresa chegou e nos chamou depois, querendo nos dar o dinheiro dos foguetes. Não, nós pagamos, afinal de contas é uma festa que nós, pá-pá-pá. E dissemos que o pessoal contribuiu para isso, vamos fazer uma consulta, se eles quiserem que vocês paguem, tudo bem. E fizemos, muito superficial até, e os peões mandaram a Ford enfiar no rabo. E não aceitamos. E foi feita a festa na saída dos ônibus. Inclusive se deliberou que familiares do pessoal que quisessem participar, viriam com os ônibus na parte da tarde. Viriam normalmente dos pontos iniciais. Depois, voltariam todos de ônibus. Algumas famílias vieram e foi feita a festa. A Ford aprontou dúzias de rosas e foi distribuir para as esposas e os filhos do pessoal. Um dos refrãos da música que o pessoal fez, dizia mais ou menos que “Olha, gente, o nosso ônibus chegou, vem a comissão guerreira que batalhou o ano inteiro e conquistou…”, depois termina dizendo assim, avisava a gerência da Ford que “se ela quisesse guerra, guerra ela ia ter”. Filmaram isso tudo e ficaram passando na fábrica. Foi isso, a campanha de 1983.
Lúcio – É, entramos em 1984. Ia-se a ano eleitoral em São Paulo, no sindicato e fomos convidados para participar da Chapa Um.
Lúcio – Da comissão, só. Para entrar na Chapa Um. Esse convite veio com oferta de cargo, a vice-presidência ou secretaria geral. Primeiro, conversei com os companheiros que fizeram esse convite. Coloquei para eles que não havia condições de estar nessa chapa. Primeiro por condições de princípios. Eu não tinha a mínima condição de estar numa mesma chapa que o Joaquinzão. Isso tudo por questões políticas e de forma de condução de luta. Não concordava com a forma que o Joaquim conduzia isso. E uma outra questão é que o coletivo da Ford tinha uma tradição de oposição. Não ao sindicato, mas ao Joaquim. Como representante da comissão de fábrica, eu tinha um compromisso com aquele coletivo. Tinha e tenho até hoje. Quisesse ou não, tinha que me submeter a sua vontade. Tentaram argumentar, que eu tinha todas as condições de fazer com que aceitassem a minha decisão, em relação a participar da chapa. Se dispunham, a me ajudar nesse trabalho na Ford. Porque a essa altura, a direção do sindicato era bem aceita na Ford, devido ao trabalho que foi desenvolvido na própria formação da comissão. E argumentaram outras coisas, que naquele momento ainda precisaríamos ter o Joaquim na cabeça da chapa, porque ele ainda representava um guarda-chuva para qualquer tipo de intervenção. Porque ele tinha planos de CNTI. Dentro de um ano ele estaria fora do sindicato, e aí a direção estaria na nossa mão. Disse que não concordava com esse posicionamento, porque julgava isso uma traição, e uma atitude carreirista e oportunista. Era uma terceira razão pela qual não participaria dessa chapa. Mas iria discutir isso com o coletivo da fábrica. Defendia a realização de uma convenção na categoria. Se ela determinasse que o Joaquim estivesse nessa chapa, tudo bem. Mas seria uma decisão de uma convenção da categoria, que o sindicato deveria convocar. Chegamos até a fazer uma reunião na sede, com o coletivo da fábrica, onde foi discutido isso. Eles defenderam uma convenção da categoria. Só que a direção do sindicato evidentemente foi contra, pulou fora.
Betty – Me diz uma coisa, você defendia uma convenção, que determinasse a chapa. Como vocês entediam a questão do trabalho conjunto… Uma oposição que sempre negou a trabalhar junto com o sindicato, mesmo com os diretores eleitos em 1982, que eram mais combativos, representativos. Como você via a dificuldade do coletivo aceitar uma chapa que misturasse o Joaquim com essa oposição, que é radicalmente contra a figura dele, não só o que representava, mas pessoalmente…
Lúcio – Olha, Betty, em primeiro lugar, tenho certo comigo o seguinte, mesmo em 1984, o Joaquim não passaria por uma convenção.
Betty – Se não passasse o Joaquinzão, ia passar, junto com o Luís Antônio, o Magela, o Walter, como você. São posições bastante diferentes. Em que eles teriam um trabalho de base de unificação da categoria, que vocês ainda não tinham.
Lúcio – Olha Betty, acho que a condição de funcionamento, é determinada pela própria categoria, quando ela participa.
Betty – É isso que estou perguntando, você acha que tinha condições de superar essas diferenças político-partidárias…
Lúcio – Aí é que está, acho que através de uma convenção. Porque qual o primeiro objetivo de uma convenção na categoria… Era primeiro romper com os conchavos políticos. Romper com os acordos partidários para a formação de uma chapa. É a primeira coisa. E evidentemente, uma convenção que fosse convocada livre na categoria, soberana, convocada amplamente. Você romperia com uma série de problemas políticos dentro dessa categoria e marcharia para uma chapa única.
Carmem – Você acreditava…
Lúcio – Eu acreditava. Uma chapa única, por exemplo. Isso mesmo com todo sectarismo de alguns elementos da oposição tradicional. Após uma convenção dessas, com uma série de acusações que não tenho dúvidas que acabariam por sair, poderia até sair uma chapa de oposição sem a mínima condição de nada. Acho que esse seria um grande avanço. E aí a razão, do porquê a composição da época dessa diretoria, não aceitava a convenção.
Lúcio – Eu acho que agora em 1984, nessa mais atual diretoria, acho que a coisa está mais complicada ainda.
Lúcio – Sei lá, tenho minhas dúvidas. Porque a direção que acaba de ser eleita, é composta segundo interesses políticos partidários, e não interesse do trabalhador. Está aí a grande diferença. Acho essa atual diretoria, muito menos representativa para a categoria, do que a diretoria que tinha em 1984. Esse é um fato comprovado, que está aí para todo mundo ver. Você tem alguns agrupamentos dentro da diretoria, com influências e atuação de determinados setores. Em que nenhum momento esses trabalhos se cruzam, se ajustam.
Lúcio – Certo. Não aceitei a participação na chapa, por esses motivos. Por achar exatamente que era uma proposta de uma composição, que estava sendo feita muito calcada no carreirismo, no oportunismo, que nada tem a ver com as lutas do trabalhador. E continuo com essa mesma opinião até hoje, em relação a essas pessoas que vieram conversar comigo. Até cito nomes, é o Flores, o Luís Antônio e o Tarcísio. Mais recentemente, tive oportunidade de colocar isso na frente deles, com o Joaquim, numa reunião de diretores do sindicato.
Carmem – Tarcísio estava presente, quando te propuseram que compusesse a chapa…
Lúcio – Aí resolvemos chamar o pessoal da oposição sindical para uma conversa. Porque também ninguém ali da Ford que não militasse na oposição sindical. Chamamos um pessoal para uma conversa e uma possível articulação. Queríamos fazer parte dessa que eles já vinham fazendo. PT, igreja e por aí afora. Jogamos a proposta dentro da oposição, de uma convenção na categoria, para se tirar uma chapa única. Para não se sair três chapas de oposição. Nesse meio tempo, ficamos conversando. Conversei com o pessoal do PT, do PCdoB, do PC, da oposição sindical. Essa articulação foi se estreitando, até que se chegou a convenção dentro da Ford, para a indicação de dois nomes para compor, para não compor. Mas candidatos à convenção final. Fizemos com a participação de mais de quinhentos companheiros. Nós fizemos isso no refeitório da empresa. Se apresentaram três candidatos para serem escolhidos dois. Fizeram cédula, ata, urna, tudo. Cada candidato teve oportunidade de colocar o porquê, e aí a votação e a apuração. E nessa daí ganhei, eu e o companheiro Carlinhos. Havia um receio muito grande por parte da oposição no sentido de eu sair na cabeça da chapa.
Carmem – E a que você atribui esse receio… Uma das avaliações que foi feita depois, é que a oposição não teria ganho porque você não estava na cabeça da chapa.
Lúcio – Esse receio não é um problema que acontece só no pessoal da oposição mais tradicional. É um problema que ocorre no movimento de base da igreja – que tem uma veiculação muito grande com a posição tradicional. E ocorre dentro do próprio PT. Digo na esfera metalúrgica, de São Paulo. No pessoal do partido, sei que ocorre isso. Mas não é o nosso caso. Na oportunidade, fazia três anos que estava em São Paulo. Nunca militei na base, então, era uma cara novo, que chega na Ford, se articula com os demais companheiros, consegue e conquista a comissão de fábrica. Organiza a fábrica, essa coisa toda. Uma outra coisa, trago o rótulo na testa, de 1964 até 1972, de ter pertencido ao Partidão. Embora esses companheiros batam no peito e digam que são socialistas, que são de esquerda, mas quando sabem que algum elemento é oriundo do Partidão, do PCdoB, de onde quer que seja, pera lá, vem a primeira suspeita. Será que ele está dentro de alguma articulação, é elemento do PC ou não… Vem essa idiotice toda.
Betty – Você acha que isso é um sentimento anticomunista na base, ou é contra o PC…
Lúcio – O que acho realmente, dentro da oposição, desses vários segmentos do movimento sindical, você tem realmente companheiros que são comunistas, que são socialistas, que são realmente de esquerda. Agora, eles não conseguiram ainda ou não entenderam, que brigar contra propostas reformistas é uma coisa. Se utilizar dessa crítica, que deveria fazer em cima da reforma colocada pelo PC, como é colocada por vários partidos, não diferenciar essa questão de um discurso anticomunista, é um outro troço. Infelizmente, é o erro que esse pessoal incorre.
Carmem – Acrescido de que a oposição tem uma grande base na igreja.
Lúcio – Exato.
Carmem – Por mais progressista que a igreja seja, ela é igreja.
Betty – Isso que eu queria saber. Na apuração, lembro bem, um grupo gritava, reformistas puxa-saco. O outro falava, comedores de hóstia, atrasados…
Lúcio – Era um troço muito confuso. Hoje é uma das minhas grandes brigas, dentro da oposição sindical. Que você faça e tenha um discurso contra a reforma, que não seja anticomunista. Se você não tiver cuidado, daqui a pouco vai estar atacando a reforma toda, numa linha anticomunista, reacionária. Mais que a própria direita. Outro troço que não aceito, não concordo, é também dizer Igreja progressista. Para mim, isso é conversa mole para boi dormir. Que é a mesma coisa, capitalismo. Não tem capitalismo selvagem, é capitalismo do mesmo jeito.
Carmem – Eu acho que tem diferenças entre a igreja católica e progressista, podemos discutir isso.
Lúcio – Existe essa diferença, por uma questão de conjuntura pura e simplesmente. Isso não quer dizer que porque eles são progressistas, mas são antirrevolucionários, são anticomunistas, são filhos da puta e por aí afora. Essa é a grande questão. Na hora de dar o tiro, sei para onde eles vão, vai ser exatamente para trás. Uma das questões era essa. O pessoal tinha muito receio, o Lúcio na cabeça de uma chapa, como é que fica, nunca acreditou na oposição. Só que fui predisposto, e disso não abria mão em momento algum, a formação de uma chapa única. Não me interessava se eu estivesse na cabeça. Sempre tive comigo que não era por aí a questão. Sim realmente fazer uma chapa de oposição em que conseguisse juntar todas as forças de São Paulo, contra um inimigo comum. Essa era a grande questão. Nessa convenção, um grande receio do pessoal era que a Ford ia para a assembleia do sindicato com novecentos companheiros. Numa convenção para a formação de uma chapa, e se a Ford aparece aqui com quinhentos caras, quem vai tirar a cabeça do Lúcio. Agora, nós também, eu em particular, não me preocupei em fazer nenhuma mobilização desse tipo. E mesmo assim vai para a convenção em torno de cento e cinquenta pessoas da Ford. O sindicato se encarregou de fazer uma outra parte, mobilizou em torno de cento e cinquenta pessoas para votar contra mim. E mesmo assim, fazendo toda essa jogada, perdi por uma diferença de trinta e três votos.
Betty – Onde…
Lúcio – Na convenção.
Betty – Ah! Na convenção…
Lúcio – É, perdi por uma diferença de trinta e três votos. Mas, como já disse, o intuito principal era uma chapa única de oposição. Tinha que dizer isso da convenção e da eleição. Pode até parecer demagógico, mas muito bem, acredite quem quiser. Tinha comigo, nunca comentei isso lá com os companheiros, se ganhasse a cabeça e isso significasse a saída de uma terceira chapa, renunciaria e abriria mão, para qualquer outro companheiro.
Carmem – Na primeira vez que você falou comigo, lá nas eleições no primeiro escrutínio, na rua, você faz uma avaliação. Você dizia: “É uma chapa que não tem muita cabeça…”
Lúcio – É uma realidade. E aí deu nisso tudo. No dia seguinte, foi uma semana desgraçada dentro da Ford, porque o coletivo encostou na parede. Estiveram várias vezes na sala da comissão, pedindo que eu renunciasse a chapa. Não, não vou renunciar. Vou continuar, porque o buraco é mais embaixo. Não é aí onde vocês estão pensando. Vamos para o pau, vamos colocar força. E aí aconteceram algumas coisas, que sei lá. Abriu o olho de muita gente, ou os caras acordaram mesmo. Sempre achei que você não conquista espaço, não só no movimento sindical, como no político, com discurso. Você conquista com ação. Então, nunca estive preocupado com discurso, mas sempre com luta e ação concreta. No primeiro escrutínio, dos setecentos e poucos votos que tivemos na Ford, em torno de seiscentos e oitenta votaram. Foram cento e cinco votos para a Chapa Um e o resto para a Chapa Dois. No segundo escrutínio, a Ford Ipiranga estava em férias coletivas. Não tinha gente dentro da fábrica, somente a ferramentaria, com em torno de cento e oitenta votos. O resto da fábrica todinha em férias coletivas. A Chapa Dois aumenta a votação e o Joaquim baixa para setenta votos. O número de votantes aumentou, o pessoal em férias coletivas foi para a fábrica e votou.
Betty – Como você explica que alguns votos do primeiro escrutínio foram para você, no segundo…
Lúcio – Isso daí é até fácil de explicar. O pessoal da fábrica, após o primeiro escrutínio fez uma espécie de levantamento, de quem poderia ser os possíveis eleitores do Joaquim. Saíram de cabeça em cabeça, explicando uma série de coisas para o pessoal. O que deu para percebermos, é que essas pessoas votavam no Joaquim, por uma questão de desabafo. Em cima das sacanagens que a Chapa Dois fez conosco na convenção. Bastou uma discussão política com esses companheiros, assim tête-à-tête. Conversou-se, explicou-se uma série de coisas e houve essa intervenção, de valores. E agora estamos aí.
Carmem – Ele é engraçadinho, de julho de 1984, quer passar para agora… O quebra-quebra foi no primeiro escrutínio ou no segundo… Foi no primeiro…
Lúcio – No segundo.
Betty – Como você viu o desenrolar das eleições, que acesso a Chapa Dois teve a lista dos votantes das fábricas… Como foi organizada a campanha…
Lúcio – Olha, eu já vi safadeza, já vi sem-vergonhice no meio sindical e político, mas nada no nível que vi em 1984, no sindicato. E comando inclusive por uma assessoria bastante capaz em todos os sentidos. No político, como no da sacanagem, também. E aí não escapa nenhuma pessoa, nenhuma organização, que não estivesse com a Chapa Um naquele momento. O troço mais escroto possível.
Carmem – Por exemplo…
Lúcio – Um dos exemplos é a questão da própria listagem de votantes.
Carmem – Sabemos que a listagem é importante e a reclamação do acesso das listagens votantes é…
Lúcio – Você tem, além da lista de votantes. Tem a questão da própria propaganda em si, as mentiras que são levantadas durante a campanha. Que nós estávamos com a proposta de acabar com o ambulatório médico. A forma como isso se dava. Mas não tenho como te provar concretamente. O sindicato pegou cinco milhões de cruzeiros da CNTI para dar o voto pela aprovação de contas de lá, para gastar o dinheiro na campanha.
Carmem – Mas isso não é nada…
Lúcio – Não é nada agora.
Betty – Era no passado.
Carmem – Nem era. Numa campanha que custou milhões, cinco não era nada.
Lúcio – Tudo bem, tudo bem que não fosse.
Betty – Ele só disse isso porque realmente não é um bom método de angariar fundos.
Carmem – Tudo bem, mas para uma campanha que custou setecentos milhões, cinco…
Lúcio – Não sei se a campanha custou setecentos milhões. Mas, tudo bem, pode ter custado por parte do sindicato. A utilização de todos os carros do sindicato, em função da campanha. Gasolina, carros…
Carmem – Jamais foi do sindicato.
Lúcio – Funcionários contratados e pagos com o dinheiro do sindicato. Não sei se a quinze mil cruzeiros por dia. Com mais refeição, almoço, cigarros e outras coisas mais. Pagos com o dinheiro do associado. A utilização da gráfica do sindicato, trabalhando única e exclusivamente para isso. O aliciamento e ameaça que era feito por intermédio dos barbeiros, colônia de férias, uma série de coisas.
Carmem – A secção dos direitos de uso…
Lúcio – A forma como se buscou aposentados para votar. Tive oportunidade de ver nego chegar de maca, com soro no braço, para votar. É passagem paga do Paraná para cá. A contratação de marginal para dar porrada, para agressão. Essa coisa toda, por parte do sindicato. Inclusive, agora recentemente, até é um troço muito até folclórico. Não sei se vocês viram a um mês atrás, o jornal “Notícias Populares”, traz uma fotografia de primeira página, um assaltante mata um açougueiro, na zona sul. Entrou para assaltar, o cara estava com uma camiseta azul, Chapa Um Metalúrgicos de São Paulo. Tudo bem, é agora que aconteceu isso. Sei lá qual era a condição desse indivíduo, na época. Esse cara pode não ter nada a ver.
Carmem – Vai ver ele assaltou um metalúrgico e roubou a camiseta dele.
Lúcio – Sei lá, e coisas assim. A polícia federal dentro do sindicato, contratada pelo próprio. Tive a oportunidade, num dos primeiros dias, aqueles guardas que ficavam fardados, na entrada do departamento jurídico. Morenos, altos. Estavam lá fardados e no dia seguinte, à paisana. O que está fazendo… Estou ganhando meus troquinhos… Quem tomava conta da listagem que ficou à disposição dos associados para fazer consulta, era funcionário do sindicato ou era um elemento da polícia federal… Aquele baixinho, gordinho, delegado do DOPS que ficava permanentemente lá dentro… Enfim, todo o aparelho do Estado, prefeitura, em função da campanha da Chapa Um. Aquele quartel que foi montado, para os desenhistas, com linha direta para o Sindicato dos Metalúrgicos. O QG da polícia militar instalado, a serviço da direção do sindicato. Estávamos preparados para enfrentar uma disputa eleitoral e não…
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