31 out 2018 . 17:18
Gabriela Sá Pessoa, Estadão
O Ministério Público Federal denunciou três autoridades do regime militar pela morte do militante político Olavo Hanssen em maio de 1970 e a omissão nas investigações sobre o crime.
O ex-delegado Josecir Cuoco é acusado por homicídio duplamente qualificado, enquanto o procurador da Justiça Militar aposentado Durval Ayrton Moura de Araújo e o juiz da Auditoria Militar aposentado Nelson da Silva Machado Guimarães devem responder por prevaricação.
Esta é a primeira denúncia do MPF contra membros do Ministério Público e do Judiciário que atuaram para legitimar as práticas da ditadura.
Hanssen morreu após ser submetido a intensas sessões de tortura nas dependências do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), no centro de São Paulo.
Ele foi preso em 1º de maio de 1970 enquanto entregava panfletos numa celebração intersindical em comemoração ao Dia do Trabalhador na Vila Maria, zona leste da capital.
Integrante de um movimento operário trotskista, o militante já havia sido detido em outras quatro ocasiões durante a ditadura, sempre por entregar materiais gráficos considerados “subversivos”.
As sessões de tortura ocorreram entre 2 e 8 de maio sob o comando do então delegado Josecir Cuoco e com a participação do chefe da equipe de interrogatórios preliminares do Dops, Ernesto Milton Dias, e do investigador Sálvio Fernandes do Monte, ambos já falecidos.
O trio queria informações sobre as atividades do movimento operário do qual Hanssen fazia parte e a localização da gráfica onde panfletos e jornais do grupo eram impressos. Sem conseguir romper o silêncio da vítima, os agentes tornavam as agressões cada vez mais brutais.
No dia 5 de maio, Hanssen foi torturado durante mais de seis horas ininterruptas. Josecir e os demais o obrigaram a despir-se e o submeteram a afogamentos, espancamentos no “pau de arara” e à “cadeira do dragão”, assento revestido de metal onde presos políticos eram eletrocutados com pernas e pulsos amarrados, geralmente molhados e com sal na boca para aumentar os efeitos da corrente elétrica.
Choques também foram aplicados com o aparelho conhecido como “pianola Boilesen”, cujas teclas liberavam diferentes cargas de energia quando pressionadas.
Segundo testemunhas, levado de volta à cela, Hanssen estava atordoado, urinava sangue e apresentava ferimentos por todo o corpo. Um médico foi chamado a pedido dos demais presos, mas nada fez além de medidas paliativas.
Apesar do agravamento do quadro de saúde do militante nos dias seguintes, os agentes o torturaram novamente no dia 8, quando, provavelmente já em coma, ele foi encaminhado para o Hospital do Exército da 2ª Região Militar.
Hanssen morreu horas depois, na manhã de 9 de maio, por insuficiência renal aguda.
INVESTIGAÇÃO
A morte do militante causou grande repercussão. Inicialmente, os órgãos policiais criaram uma versão falsa indicando que Hanssen teria morrido por causas naturais e que seu corpo havia sido encontrado em um terreno baldio.
Porém, diante das pressões de parlamentares e da opinião pública, forjou-se uma nova versão, segundo a qual a vítima teria se suicidado com veneno e falecido no hospital do Exército, e determinou-se a instauração de um inquérito.
O novo relato oficial possibilitou a tramitação do caso no âmbito da Justiça Militar, que, alinhada às ordens do Executivo, concluiria pelo arquivamento da investigação.
Durval de Araújo e Nelson Guimarães atuaram diretamente para o desfecho do inquérito. O primeiro, representante do Ministério Público Militar, descartou a necessidade de mais diligências e limitou-se a endossar o teor do relatório policial emitido pouco mais de três meses depois do crime.
Baseando-se em laudos periciais forjados e sem efetiva apuração, o documento narrava que Hanssen havia se suicidado com a ingestão de pesticida agrícola.
“É bem provável que ele a tenha ocultado em suas vestes ou então em partes de seu corpo”, disse o parecer sobre o fato de a substância não ter sido encontrada com o militante apesar das minuciosas revistas a que foi submetido.
Embora os sinais de tortura constassem do laudo necroscópico, essas informações não foram mencionadas na manifestação do procurador.
A sentença proferida por Guimarães em novembro de 1970 também foi omissa quanto às circunstâncias da morte. Ao determinar o arquivamento do inquérito, o juiz da 2ª Auditoria do Conselho de Justiça Militar, ainda que tenha recusado a falsa versão de suicídio, afastou as evidências de tortura e estabeleceu inexistirem, nos autos, elementos objetivos que indicassem causa criminosa do óbito.
“Olavo Hanssen, se estava distribuindo aludidos panfletos numa concentração pacífica de trabalhadores, era, ao mesmo tempo, mais um agente e vítima do sistema de ideias mais abominável e desumano que a mente humana até hoje elaborou”, concluiu a decisão.
“A atuação dos denunciados Durval e Nelson buscou apenas ‘legitimar’ a morte de Olavo, omitindo-se no dever de investigar e perseguir os responsáveis pela tortura e a morte da vítima. A omissão tinha o claro propósito de assegurar que os responsáveis pela morte ficassem fora do alcance da Justiça, o que realmente ocorreu”, destacou o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia do MPF.
De acordo com ele, a conduta de ambos fazia parte da sistemática de repressão do aparelho ditatorial, contribuindo para que o Ministério Público e o Judiciário da época não apurassem torturas e mortes ocorridas no período.
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Nelson Guimarães admitiu estar convencido de que Hanssen havia sido morto em decorrência da tortura.
Questionado se tinha conhecimento das agressões cometidas em unidades das Forças Armadas, o juiz aposentado disse que sabia de episódios não só nas dependências militares mas também em órgãos policiais.
Além da condenação pelos crimes apontados, o MPF quer que a Justiça Federal determine, ao final do processo, a cassação de aposentadorias ou quaisquer outros proventos dos denunciados e a perda de condecorações que tenham obtido ao longo da carreira. Durval de Araújo e Nelson Guimarães, por exemplo, receberam a Medalha do Pacificador, homenagem prestada pelo regime ditatorial a seus mais destacados colaboradores.
O ex-procurador também foi sucessivamente promovido com elogios nos quadros do Ministério Público Militar, sempre incumbido de elaborar manifestações que afastassem a responsabilidade criminal de agentes da repressão.
Em 1975, ele chegou a ser indicado para atuar no caso Vladimir Herzog com a missão de comprovar a versão de suicídio apresentada pelo regime, apesar das claras evidências de que o relato oficial havia sido forjado para encobrir o fato de o jornalista ter morrido sob tortura.
SEM ANISTIA
A morte de Hanssen é imprescritível e impassível de anistia, uma vez que foi cometida em contexto de ataque sistemático e generalizado do Estado brasileiro contra a população civil, o que caracteriza o episódio como crime contra a humanidade.
O Brasil já foi alvo de duas condenações da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) por não dar sequência à investigação e à responsabilização dos agentes envolvidos em delitos desse tipo. A mais recente, de março deste ano, refere-se ao caso Herzog.
A anterior, de 2014, está relacionada ao desaparecimento de 62 pessoas na chamada Guerrilha do Araguaia, também na década de 1970.
As sentenças da CIDH proíbem a Justiça brasileira de barrar os processos com base na Lei da Anistia, inválida para afastar a responsabilidade penal dos oficiais. As decisões ressaltam que a lei assinada em 1979 para eximir de culpa todos os autores de crimes políticos cometidos desde 1961 não passa de uma tentativa de perdão para apenas um dos lados, responsável pelo desaparecimento e o assassinato de centenas de opositores. Submetido voluntariamente à jurisdição da Corte desde 1998, o Brasil tem o dever de acatar todas as determinações da CIDH, sem apelar a medidas do ordenamento jurídico interno para deixar de cumpri-las.
Esta é a 38ª denúncia ajuizada pelo MPF os últimos seis anos em todo o país contra envolvidos em crimes relativos à ditadura militar. As acusações foram apresentadas à Justiça Federal nos estados de Goiás, Pará, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.
Ao todo, 59 agentes de Estado ou pessoas a serviço da União foram apontados como autores de graves violações de direitos humanos cometidas contra 50 vítimas.
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