02 abr 2020 . 17:49
Neste momento tenso que atravessamos, em que duas grandes crises se encontram, o governo Bolsonaro e a pandemia do coronavírus, a batalha entre economia e saúde traz à cena chavões que os liberais prefeririam ver sepultados: o papel do Estado e a velha conhecida luta de classes.
No início da quarentena oficial em São Paulo, o painel do caderno Mercado, da Folha de São Paulo, de 24/03, publicou uma pequena amostragem de mesquinharia de classe frente à necessidade de um grande pacto social para defender a nação.
São depoimentos de empresários como Alexandre Guerra, ex-sócio dos restaurantes Giraffas (destituído do cargo por seu próprio pai, dono do estabelecimento, após a postagem), que disse: “Você que é funcionário, que talvez esteja em casa numa boa, numa tranquilidade, curtindo um pouco esse home office, esse descanso forçado, você já seu deu conta que, ao invés de estar com medo de pegar esse vírus, você deveria também estar com medo de perder o emprego?”.
Como o do presidente do Santander, Sergio Rial, que “falou em deserção para se referir a quem quis trocar o trabalho presencial pelo home office na crise do coronavírus”.
Do famoso fanfarrão e apoiador do presidente Jair Bolsonaro, Luciano Hang, dono da Havan, que disse, nas redes sociais que, apesar da crise, ele teria dinheiro para ir para a praia. Mas teria de mandar 22 mil colaboradores embora.
E o depoimento do dono do restaurante Madero, Junior Durski, que gravou um vídeo que circulou nas redes sociais dia 23/03, no qual também criticou o isolamento para conter o avanço da pandemia de coronavírus e disse que o Brasil não pode parar por conta de “5 ou 7 mil pessoas que morrerão”.
Os depoimentos dos empresários contradizem a recomendação de isolamento social da OMS para conter o avanço do coronavírus e semeiam na mente dos trabalhadores a angústia frente a possibilidade do desemprego.
Burguesia têxtil paulista da década de 1920
Esta concepção arcaica e escravocrata, que prioriza a produção de lucros sobre a necessidade de salvar vidas humanas, e que despreza o necessário papel do Estado em contornar crises, está enraizada na elite brasileira.
Isso fica claro quando comparamos os depoimentos citados com as informações sobre a mesquinharia da burguesia têxtil paulista da década de 1920, levantadas pelo historiador Felipe Loureiro em sua tese de mestrado[1].
Segundo Loureiro, naquele período não havia ventilação nas fábricas e a iluminação era irregular. As instalações sanitárias eram, em sua maioria, sujas e fétidas e a ocorrência de mutilações era frequente. E, diante da eminente criação de Leis de proteção aos trabalhadores, como Lei de Férias, de 1925, que garantia quinze dias de descanso remunerado, e o Código do Menor, de 1926, que proibia o trabalho noturno para quem tinha entre quatorze e dezoito anos, os burgueses têxteis lançaram mão de argumentos absurdos, como os expressos no documento “Memorial apresentado ao Sr. Ministro do Trabalho Indústria e Comércio pelo Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão”, de 28/11/1930, que afirma que: “o cérebro do operário não despende energia, logo eles não precisam de descanso”, que “o lar sem conforto do operário não lhe proporcionará descanso” e ainda que o “trabalho na fábrica era leve e suave”.
Hoje, quase um século depois, as injustiças sociais saltam aos olhos não apenas nas falas de empresários, mas também em políticas públicas como a MP 927 de Jair Bolsonaro que, em tempos de pandemia, prioriza as empresas em detrimento do martírio dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que o governo autoriza a liberação de bilhões para salvar os bancos[2].
Não é surpresa, portanto, que Guerra, Rial, Hang e Durski sintam-se à vontade para exibir seu verdadeiro descaso com a vida… dos outros.
“Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minoria das elites”
Mas, de onde vem e como se sustenta esta acentuada divisão entre pessoas que usufruem de privilégios e pessoas que são obrigadas sacrificarem sua saúde, ou a vida, pela própria sobrevivência?
Sobre tal questão que perpassa toda a sociologia, a economia e a filosofia, vou contribuir com algumas pistas que tenho levantado em leituras e entrevistas.
Em seu interessantíssimo livro “Sapiens: Uma breve história da humanidade” (LPM, 2012) o historiador Yuval Noah Harari explica que entre a pré-história e o surgimento dos primeiros impérios “brotaram governantes e elites vivendo do excedente dos camponeses e deixando-os com o mínimo para a sobrevivência”. “Esses excedentes de alimento confiscados (…) construíram palácios, fortes, monumentos e templos” afirma, complementando: “Até o fim da era moderna, mais de 90% dos humanos eram camponeses que se levantavam todas as manhãs para trabalhar a terra com o suor de sua fronte. Os excedentes que produziam alimentavam a ínfima minoria das elites – reis, oficiais do governo, soldados, padres, artistas e pensadores”.
Ao longo dos milênios tais divisões se consolidaram. Harari cita, por exemplo, a Declaração da Independência dos Estados Unidos, de 1776, como um documento que estabeleceu uma hierarquia entre homens “que se beneficiavam dela” e mulheres “desprovidas de autoridade”, uma hierarquia entre “brancos que desfrutavam de liberdade” e “negros e indígenas considerados humanos de espécie inferior”. Segundo ele “a ordem norte-americana endossou a hierarquia da riqueza, que alguns pensavam ter sido ordenada por Deus e outros viam como a representação de leis imutáveis da natureza”.
Isso ficou demonstrado, por exemplo, no Brasil, durante a Greve Geral de 1917. Segundo o senador italiano e jornalista, José Luiz Del Roio[3], um dos maiores conhecedores daquela Greve, a burguesia industrial brasileira à época tinha uma “concepção escravocrata” do trabalho, “tanto é que os primeiros italianos que vieram para cá chamavam esses trabalhadores de squiave bianque, os escravos brancos”. As reivindicações dos trabalhadores, na época, eram elementares: “Não eram políticas, eram estritamente econômicas. Mais do que isto, eram de sobrevivência”.
Luta civilizatória
Se a tese de Harari está certa (o que parece razoável), a história que ele conta não ocorreu em linha reta, ou sem contradições. A luta entre oprimidos e opressões marcou a evolução da humanidade. Luta que é muitas vezes desigual, dada a natureza da situação (os mais ricos detêm mais poder de fogo), mas necessária e civilizatória, uma vez que, sem ela, estaríamos em uma situação de exploração ainda mais selvagem.
No Brasil o amadurecimento e a ação dos sindicatos marcam passagens que separam o trabalhador de hoje do trabalhador de cem anos atrás. A regulamentação da jornada de trabalho, o 13º salário, um piso mínimo para os salários – o salário mínimo, descanso semanal remunerado, saúde e segurança do trabalhador, enfim, condições que proporcionam dignidade ao trabalhador, foram direitos conquistados a partir do crescimento, consolidação e processo de politização do movimento sindical depois de 1930.
Mas, neste permanente embate travado nas entranhas das relações humanas, as conquistas populares estão sempre ameaçadas. A atual e profunda crise dos sindicatos desde a reforma trabalhista de 2016, que, apoiada pela elite empresarial, deu uma rasteira na CLT, e a eleição de um presidente da República declaradamente inimigo da classe trabalhadora, o Jair Bolsonaro, são demonstrações de como os direitos sociais são vulneráveis.
Como afirmou Harari a desigualdade social não é natural, mas também não há justiça na história. Não existe uma justiça divina e não existe uma justiça biológica, que funciona conforme as leis da natureza.
Por isso, aquilo que entendemos como justiça, ou justiça social, é algo que precisa ser criado e conquistado a cada dia.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
[1] “Nos fios de uma trama esquecida: a indústria têxtil paulista nas décadas pós-depressão, 1929-1950”, FFLCH, 2006.
[2] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/23/bc-compulsorios-coronavirus.htm?utm_source=twitter&utm_medium=social-media&utm_content=geral&utm_campaign=noticias
[3] Entrevista para André Cintra para a revista sobre os 100 anos da Greve de 1917, do Centro de Memória Sindical.
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