Um operário cujo crime era ler A VOZ OPERÁRIA.

30 abr 2012 . 11:28


Metalúrgico é vítima da Oban
 
A morte por tortura do metalúrgico paulistano Manuel Fiel Filho durante a Operação Bandeirantes (Oban), nos porões do DOI Codi, a exemplo do assassinato de outras pessoas inocentes como o estudante Alexandre Vannucchi Leme (morto em 1973) e o jornalista Vladimir Herzog (morto em 1975), marcou o início do descrédito ao governo dos militares e da pressão popular pelo fim da ditadura no Brasil.
 
Criada pelo Exército do Brasil em julho de 1969, a pretexto de constituir um centro de informações e investigações (que na prática se traduzia em repressão às organizações de esquerda e de oposição ao governo), a Oban só foi institucionalizada e expandida para as principais capitais do País através do sistema DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) criado no segundo semestre de 1970.
 
Tais operações consistiam em – sem mandado judicial – prender e interrogar sob tortura qualquer suspeito de realizar atividades políticas de esquerda ou de oposição ao governo. Para a historiadora Mariana Joffily, além de ser um meio de obter informações, a tortura funcionava também como uma demonstração de poder dos agentes repressivos sobre os militantes políticos. Segundo Joffily, tal técnica levantava informações rapidamente, com baixo custo financeiro. Mas, no longo prazo, apresentou um elevadíssimo custo moral e político.
 
Fiel Filho: provocação da linha dura
 
Até o dia 16 de Janeiro de 1976, Manoel Fiel Filho era operário da fábrica Metal Arte, filiado ao Partido Comunista e ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Nesta data, diante de sua mulher, Tereza de Lourdes, o operário foi detido às 12:00h por dois agentes policiais e levado ao DOI-Codi. Em documento confidencial encontrado nos arquivos do antigo DOPS/SP seu crime seria receber o jornal Voz Operária. Ao sair Manuel ainda tentou acalmar Tereza, dizendo que voltaria logo. Mas ele não voltaria. No DOI-CODI do II Exército foi torturado barbaramente até a morte. Ele nada confessou aos seus torturadores.
 
No dia seguinte um homem, dizendo ser do Hospital das Clínicas, parou em frente à casa de Tereza e informou-lhe secamente que Manoel se suicidara. Ela não teve dúvidas e gritou: – Vocês o mataram, vocês o mataram…
 
A liberação do corpo de Manuel foi dificultada pelos agentes da polícia e do governo. O corpo só foi entregue com a condição de que não fosse visto por ninguém, que fosse sepultado rapidamente e sem muitos comentários. Em 18 de janeiro, um domingo, às 8:00h da manhã houve o sepultamento. No velório militares à paisana rodeavam a família e vigiavam os acontecimentos. Mas antes do enterro os parentes pressionaram pela abertura do caixão. As marcas do corpo reforçavam a suspeita de assassinato.
 
Somando-se às evidências que contrariaram a versão oficial de suicídio, o então preso político Antônio d’Albuquerque que, no DOI Codi, foi levado para ver o cadáver de Fiel Filho, afirmou em depoimento sua constatação das marcas da tortura. Além disso, não haveria outro motivo, que não o crime contra o operário, para justificar o afastamento do general Ednardo d’Ávila Melo do II Exército de São Paulo, três dias após a divulgação da morte de Manuel. Entretanto, o processo foi arquivado.
 
Joaquinzão (Joaquim dos Santos Andrade, 1926-1997), presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo até 1987, foi o único presidente de todos os sindicatos de metalúrgicos brasileiros que, em janeiro de 1976, protestou pela morte do operário Manuel Fiel Filho. O sindicalista logo que tomou conhecimento da morte de seu colega, enviou um telegrama ao governo federal exigindo apuração dos fatos e punição aos culpados.
 
Em abril de 1979 a viúva Tereza resolveu mover na Justiça uma ação cível contra o Governo, requerendo indenização pela morte de seu marido. Seus advogados, Marco Antonio Barbosa, Samuel McDowell Figueiredo e Sérgio Bermudes, anexaram depoimentos de presos que estiveram no DOI-Codi, além de colocarem em dúvida a versão do suicídio, usando os fatos da época e os laudos necroscópicos como o laudo de exame necroscópico do cadáver do operário, feito pelo Instituto Médico Legal de São Paulo, cuja conclusão era de morte por estrangulamento. Foi incluído o depoimento de um dos peritos, afirmando que casos de estrangulamento configuram homicídio e não de suicídio. Em 1980, a União foi condenada a pagar seis salários mínimos mensais a Tereza, reconhecendo a responsabilidade pela morte do operário.
 
A morte trágica de Manoel Fiel Filho evidenciou a divisão interna entre os próprios comandantes da ditadura. A morte de Vannucchi Leme e de Herzog já expusera demais a violência e arbitrariedade da polícia oficial. Morto na mesma carceragem deste último, e com a mesma desculpa de "enforcamento", da parte general d’Ávila Melo, Fiel Filho serviu como provocação da linha dura à chamada linha moderada, que já atinava para uma abertura lenta e gradual.
 
A ação da Oban, como dos demais órgãos de repressão, só começou a arrefecer a partir da "abertura lenta e gradual", já no governo de Ernesto Geisel, quando a ditadura encontrava-se profundamente desgastada. O desmonte do aparelho repressivo ocorreu de forma ambígua, de maneira a preservar a impunidade daqueles que executavam a tortura. Segundo Joffily, assim como sua instituição dera-se através de uma diretriz interna do Exército, sua extinção foi realizada, sem grandes alardes, por meio de uma instrução administrativa.
 
Ao manter a impunidade dos torturadores e de seus facilitadores a transição para a democracia (a partir de 1985) realizou-se de maneira superficial. Mais de vinte anos depois desta transição, a marca deixada pelo sistema DOI-CODI está longe de ser superada. A luta pela qual morreu Fiel Filho avançou, mas ainda apresenta desafios nas entranhas da sociedade.
 
Carolina Maria Ruy
Jornalista e pesquisadora

Comentários

Show Buttons
Hide Buttons