1961: O Golpe Derrotado, Flávio Tavares

17 jul 2012 . 11:06

golpe-11961: O Golpe Derrotado. Luzes e sombras do movimento da legalidade

Flávio Tavares

Por Dênis de Moraes

A leitura de O golpe derrotado comprova o papel decisivo de certos homens públicos como agentes históricos em defesa da democracia e das possibilidades de se fazer política com compromisso social. Leonel Brizola foi um deles nos treze tensos e memoráveis dias que separaram a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart como presidente, ainda que sob o parlamentarismo, em 1961. Enfrentando corajosamente o golpe de Estado tramado pelos ministros militares para impedir que o vice-presidente assumisse o cargo vago, Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, demonstrou excepcional capacidade de organizar e liderar a resistência popular, afinal vitoriosa com o apoio do III Exército comandado pelo general José Machado Lopes.
Flávio Tavares descreve as peripécias da rebelião que evitou a guerra civil no país não apenas com o toque de Midas próprio dos escritores sensíveis, como também com as qualidades do memorialista que já nos havia dado a obra-prima Memórias do esquecimento (1999), sobre os anos de chumbo pós-1964. Flávio foi testemunha ocular da história, como jornalista credenciado no Palácio Piratini, tendo vivido a urgência das horas ao lado ao governador gaúcho e solidário ao Movimento da Legalidade.
Além da perfeita contextualização dos acontecimentos, ele revela as ações astuciosas de Brizola para reagir ao cerco do Rio do Grande do Sul, desde a utilização do rádio para exortar a população a resistir até a emissão de dinheiro pelo governo estadual, passando pela formação de comitês de mobilização da cidadania em Porto Alegre e pela obtenção de combustível junto ao governo do Uruguai.
Numa narrativa de tirar o fôlego nos momentos de clímax, Flávio Tavares oferece definitiva contribuição ao entendimento da crise de 1961 e nos permite avaliar como a frustrada tentativa dos chefes militares de rasgar a Constituição foi, na verdade, o ovo da serpente que viria à luz, dois anos e meio depois, com a brutalidade do golpe de Estado de 31 de março de 1964.

Dênis de Moraes é Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense.

 

Abaixo, leia um trecho do 1º capítulo do livro:

A JANELA OVAL

Tenso, olhei para o alto e não vi o céu ou o azul das nuvens, nem me interessei pelo sol. Nada disso me importava naquela tarde fria do inverno de agosto de 1961, em que sentíamos calor a cada passo e em cada gesto. Porto Alegre e todo o sul do Brasil tinham ainda temperaturas baixas, e o nevoeiro úmido, às vezes, só se dissipava a partir do meio-dia. Todos vestíamos roupas de lã e, sob o vento gelado, ao abrir a boca exalávamos vapor, lançando um bafo brincalhão sobre as vidraças. E cada vidraça transformava-se em tela de pintura na qual, com o dedo, os tímidos escreviam o próprio nome e os mais atrevidos desenhavam um coração com o nome da amada. Talvez por isso, naquele tempo e naqueles invernos, as janelas exerciam sobre nós um fascínio ingênuo, tão secreto quanto inexplicável.

Olhei para o alto e nada vi. Ou vi apenas o vitral da janela em forma de elipse, no alto da parede do Palácio Piratini. Ali fixei a mirada e, como se aquele calor interno instalado dentro de mim me guiasse em pleno frio, gritei incisivo e forte:

– Um martelo e uma escada comprida, que chegue ao teto! Mas rápido!

O soldado da Brigada Militar do Rio Grande do Sul assentiu com a cabeça, em silêncio, e saiu em correria rumo ao pátio do Palácio, levantando um dos braços ao ar para o fuzil não esbarrar em ninguém.

Pronunciei a frase num tom direto e duro, como uma ordem, não por ter condições de dar ordens ou por ostentar algum posto militar ou civil com autoridade de mando. Eu era tão só um jornalista. Simplesmente, soltei a frase vencido pelo cansaço e guiado por uma espécie de torpor onírico que dava às palavras um ímpeto cru, como aqueles bêbados que esbravejam no auge do porre, mas são suaves e quietos na realidade do dia a dia, quando sóbrios. E o soldado obedeceu, talvez porque fosse treinado para cumprir ordens ou porque estivesse exausto também, sem ânimo para raciocinar.

Era o início da tarde de domingo, 27 de agosto de 1961. Na sexta-feira, 25 de agosto, em Brasília, Jânio Quadros havia renunciado à Presidência da República, num gesto tão inesperado e intempestivo que, há dois dias, nos provocava uma insônia de atemorizada e constante vigília. Eu havia dormido apenas três horas na madrugada de sexta-feira para sábado e, de pé já às 7h da manhã, desde então nem sequer cochilara nas cadeiras duras ou nos sofás fofos do Palácio, onde passamos a noite ao telefone ou batendo no teclado da máquina de escrever. Aos 27 anos pode-se fazer isso, sem sacrifício e sem contar as horas! Desde o sábado eu tinha me instalado no berço das notícias – o Palácio do governo gaúcho -, ali onde as situações novas podiam nascer a partir do que lá se sabia do que ocorria em Brasília, no Rio, São Paulo e no resto do Brasil. A situação era grave. Afinal, por que Jânio Quadros renunciara, se nem sequer completara sete meses no poder que exercia de forma quase imperial?

No dia 28 de agosto, segunda-feira, ele iria instalar a Presidência da República na capital do Rio Grande do Sul, naquela ideia de governo-itinerante, que começara em Recife, meses antes. Tudo estava preparado para recebê-lo com o Ministério inteiro.

Durante três dias, o gabinete presidencial funcionaria nas salas do comando do III Exército, na Rua dos Andradas, aquela que todos chamam pelo nome antigo de Rua da Praia, mesmo que agora não exista praia alguma nem a lembrança de quando o rio chegava até ali. Tudo estava preparado para receber a cúpula que comandava o Brasil. Nos municípios distantes, os partido conservadores (que apoiavam Jânio) armavam comitivas rumo à capital, onde também estariam os generais das guarnições espalhadas pelo interior, para prestar continência ao presidente e seu ministro da Guerra. Por decisão do governador, os alunos das escolas primárias estaduais, com bandeirinhas do Brasil e do Rio Grande, receberiam o presidente ao longo do trajeto do aeroporto ao centro. Porto Alegre dispunha-se a retumbar como capital do Brasil por três dias.

Não foi isto, no entanto, que fez com que, nas horas seguintes à renúncia, o governador Leonel Brizola descesse do seu gabinete e, das janelas do piso térreo, num discurso para as trezentas pessoas do povo, que se aglomeravam com improvisadas faixas e cartazes defronte ao Palácio, fizesse um apelo ao renunciante Jânio:

– Venha, presidente, venha para a capital gaúcha e instale o governo da República, como previsto. Aqui, o governo estadual e o povo inteiro, civis e militares, garantem a continuidade do seu governo. Aqui não há pressões. Venha, presidente, no Rio Grande do Sul há garantias!

1961: O Golpe Derrotado. Luzes e sombras do movimento da legalidade

Flávio Tavares

Ed. L&PM, 2012

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