17 jun 2019 . 14:48
O romance de estreia de Bárbara Caldas, O apartamento de baixo, é notável por duas razões. A primeira é sua inegável e surpreendente qualidade literária.
Por José Carlos Ruy
A outra foi a ousadia da autora que o publicou por conta própria, em 2004, buscando toda ajuda que pode encontrar, desde a venda de uma valiosa obra de arte que havia herdado dos pais até a “cara de pau” de dirigir-se a alguns nomes muito conhecidos, como Luís Fernando Veríssimo (que escreveu a orelha do livro) ou o artista plástico baiano Chico Liberato, autor da capa.
Ela não os conhecia: era uma jovem estudante de Farmácia que escreveu um livro que os colegas gostaram, acreditou nele e não sossegou enquanto não o viu publicado. O livro foi lançado em São Paulo no Seminário Juventude Cultura e Políticas Públicas, promovido pelo Centro de Estudos e Memória da Juventude, em 2004.
É uma obra literária madura, apesar da juventude da autora; relata a partir de um ponto de vista feminino contemporâneo o início de um relacionamento entre uma moça da classe média carioca e o porteiro do edifício onde mora relacionamento mediado, surpreendentemente, pelo amor aos livros e à leitura, que abre a perspectiva de uma relação humana que vai além dos estereótipos. O trecho transcrito abaixo foi retirado das páginas iniciais do livro.
Leia um trecho do livro O apartamento de baixo
Bárbara Caldas
A água que sai do chuveiro é morna, amaciando a pele para que esta absorva melhor os unguentos que preparam o corpo para o amor.
Os banhos que precedem um romance, se vistos apenas com os olhos-máquina, passam despercebidos, mas a epiderme vê com olhos próprios e insólitos a anatomia formal o futuro próximo que a espera, pelo banho sonhador que denuncia o ritual peculiar de quem anseia pelo ser amado.
A bucha tenra massageia o corpo com sabonete que adquire um perfume mais intenso. As pontas dos dedos percorrem o couro cabeludo com zelo, envoltos pela viscosidade sinuosa do xampu. O condicionador dá aos cabelos a textura e a leveza para que os dedos do namorado mergulhem nos fios sem interrupções abruptas, gozando da liberdade outorgada para que estes percorram todos os meandros da compleição que a eles se oferece e entrega. A água cessa e a pele recebe o carinho sólido da toalha que a tonifica e recolhe o líquido que a limpou. Seguem as loções e cremes específicos nos cuidados com o corpo, rosto, pés, mãos e ainda os da região dos olhos. Os cabelos são penteados com doçura pouco cotidiana e o corpo é finalmente vestido de modo que nele se ressaltem as suas partes maia valorizadas.
Nara põe em prática seu rito com a displicência de quem já o faz sem saber se por puro instinto feminino, narciso e vaidoso, ou se pelo resquício de paixão ainda guardado em seu relacionamento já tão desgastado. Sobretudo a alma feminina, com sua natureza romântica, , não prescinde da beleza dos detalhes, perpetuando a magia do banhar-se, pentear-se e vestir-se enquanto houver para quem fazê-los. Mesmo que isentos da paixão dos dias passados, entretanto memoráveis.
Ela olha o espelho e sorri na aprovação do trabalho perfeito. A porta do quarto abre e a mãe entra com seus olhos-máquina que não detectam a fina delicadeza do trato da filha, talvez por já trazer atrofiados os receptores inconscientes de tais canais. Mas o brilho evidente na íris de Nara não deixa dúvidas quanto ao seu inevitável paradeiro nas próximas horas. Isso causa um desgosto na mãe, que conhece a efemeridade de tal brilho e logo cede lugar a uma triste desolação, pois conhece também o autor irremediável dessa façanha.
– Meus votos são de que essa alegria dure até amanhã.
Nara compreendeu a espetada da mãe que já se retirava. Sentiu o estômago contrair-se por saber que, a despeito do sarcasmo embutido em tais palavras, o desejo de quem as proferiu era tão sincero quanto a procedência da preocupação que a inspirou. Mas um coração sem esperanças é um coração morto. E Nara sente o sangue pulsar em suas artérias enquanto espera sinceramente por uma noite maravilhosa de amor e reconciliação.
Saiu do quarto e atravessou a sala pelos cantos com passos ligeiros, numa atitude de quem está inseguro do seu ato, e saiu de casa. Passou pela portaria do prédio dando um cortês boa noite ao zelador, concentrado num livro e indiferente ao que o cercava. Saiu do edifício e sentou-se na mureta do canteiro de sua entrada exatamente às onze da noite, a hora marcada, olhando ao redor da rua deserta.
Era feriado e Nara brigou para que o namorado não viajasse com os amigos para ficar os dias de folga com ela, que passou como um trator, mesmo que legitimamente, pelo desejo de partir do companheiro. Mas agora, sentada na mureta, filosofava lúcida e honestamente sobre a razão que a fizera acreditar possuir o direito de impedir a realização do propósito do outro.
Era um desses lampejos de visão, tão reveladores quanto passageiros. E a origem de tal lampejo era o fato de ela preferir que ele o tivesse feito por vontade própria, e não cedendo a chantagens emocionais.
Avistou um homem que ela julgou suspeito e levantou-se, indo para a porta do prédio. Ele passou alheio ao seu receio. Foi quando olhou para os ponteiros do relógio e percebeu que já haviam avançado quarenta e cinco minutos sem que ela se desse conta, absorta em suas divagações.
Sentiu um calafrio na espinha. Buscou na bolsa o celular, e ao discar para o namorado, recebeu a mensagem enfadonha que informou que o aparelho chamado encontrava-se fora de sua área de cobertura ou desligado.
Nara começou a sucumbir à aflição dolorosa que tingia seu peito com cores venenosas. Ela, novamente sentada na mureta, balançava as pernas ansiosas e chocando com força os calcanhares em suas pedras, entrava num pesadelo familiar, atentando-se a cada farol de carro que despontava na rua como possibilidade do alegre despertar de quem acorda e averigua a ilusão do suplício sonhado.
Mas os calcanhares magoados afloravam a memória física de tantas outras situações idênticas com um desfecho infeliz, trazendo o prognóstico desesperador que sobrepujava quaisquer pensamentos apaziguadores que eram instantaneamente substituídos por outros belicosos. Começava a construir situações imaginárias nas quais ela dizia ao namorado todos os impropérios que julgava que ele merecia ouvir, quando o porteiro a arrancou do devaneio de seu turbilhão mental.
– Desculpe a minha intromissão, mas acho melhor você esperar na portaria. Já passa da meia noite. É perigoso ficar aí sozinha.
Nara olhou o relógio e respondeu com secura que já entraria. Esperou que o porteiro entrasse novamente para fazer a tentativa derradeira de falar com o namorado, recebendo de volta a insuportável e insistente mensagem da companhia telefônica.
Levantou-se e acolheu a recomendação do empregado , sentando-se no sofá da portaria. Pensou que as poucas amigas nas quais ela seria capaz de confiar essa nova humilhação encontravam-se fora do Rio devido ao feriado, indisponíveis para acompanharem-na a qualquer lugar naquele momento. Não obstante, voltar para casa com o rabo entre as pernas, sob o olhar inquiridor da mãe, era o que menos a apetecia em toda aquela situação constrangedora.
“Deus!”, pensou, “prefiro ficar aqui com o Pará”.
Nara riu da própria desgraça ao imaginar o que pensava o zelador ao assisti-la, pela milésima vez, levantar-se da mureta e voltar para casa murcha e envergonhada. Algumas vezes ela ligava para alguma amiga que se dispunha a ir buscá-la, disfarçando o seu vexame, que só não passava impune pelos olhos terríveis do zelador, o qual sempre velava suas esperas.
Livro:
Caldas, Bárbara
O Apartamento de Baixo
3ª Edição, 2014
Editora Mater
isbn 9788568079003
Rio de Janeiro, 2004.
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