19 nov 2014 . 17:31
Por Ricardo Flaitt, Alemão
Manoel de Barros brincou com a gramática. Eterna criança, fez do verbo o seu instrumento de libertação. Sua brincadeira era construir o mundo desconstruindo-o com palavras.
Garrincha, gênio, anjo, brincava e voava com a bola e desconstruía os adversários com dribles, que também eram difíceis de serem lidos. Derrubava os zagueiros no chão, bagunçava o esquema tático, assim como Manoel de Barros bagunçava a Língua Portuguesa.
Os dois amavam os passarinhos, Garrincha, até tinha o nome de um. Os dois, em tabela, quebraram a ordem para estabelecer uma nova ordem nos olhos de quem os lia nos sulfites dos livros e nas páginas dos gramados.
Não tinham vocação para frescuras, apenas para o desnecessário, mas que para o povo era o essencial. Suas verdades não precisavam de teorias, materializavam-se nas retinas e atingiam o fundo das redes da alma, onde a sensação não encontra o de explicar.
Em suas nobres simplicidades, desconheciam o termo nobreza, apenas existiam, apenas eram e faziam o além ser nada além disso. Ainda que a crítica buscasse o metafísico para explicá-los, eram desprovidos de adjetivos na vida.
Mané e Barros ultrapassavam os sistemas econômicos, as nomenclaturas, a busca incessante pela catalogação. O Capital era apenas um termo ermo na vida inventada pelos homens.
Fico imaginando um diálogo entre os dois gênios. Manoel de Barros, por um poema seu, fazendo a preleção do jogo da vida com Garrincha:
Prefiro as linhas tortas como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.
Não é por me gavar
mas eu não tenho esplendor.
Sou referente pra ferrugem
mais do que referente pra fulgor.
Trabalho arduamente para fazer o que é desnecessário.
O que presta não tem confirmação,
o que não presta, tem.
Não serei mais um pobre-diabo que sofre de nobrezas.
Só as coisas rasteiras me celestam.
Eu tenho cacoete pra vadio.
As violetas me imensam.
Neste mundo pasteurizado e politicamente correto ainda carece de um alfabeto para compreender a língua dos pássaros e dos anjos . Pena que Deus não combinara com os russos para que eles fossem eternos.
Ricardo Flaitt (Alemão) é assessor de imprensa do Sindicato Nacional dos Aposentados, estudante incompleto de Filosofia (Unesp), cursa o último ano de História e, sobretudo, é um cronista-torcedor apaixonado pelo São Paulo | E-mail: flaitt.ricardo@gmail.com | Facebook/rflaitt | twitter.com/flaittt
Fonte: Lance
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