21 mar 2014 . 12:25
Botinada: A Origem do Punk no Brasil
Brasil, 2006
Gastão Moreira
Com Ariel, Clemente Tadeu Nascimento, João Gordo (nome artístico de João Francisco Benedan), Kid Vinil (nome artístico de Antônio Carlos Senefonte)
Revelado na cultura, sobretudo na música e na moda, o punk resgatou os ideais anarquistas do início do século 20 e jogou luz sobre uma situação social que atingia a juventude.
Por Carolina Maria Ruy
O punk no Brasil surgiu das mãos de jovens de famílias operárias, na segunda metade da década de 1970, sobretudo da Vila Carolina, zona norte de São Paulo.
Segundo depoimento do músico Ariel, um dos 77 entrevistados para o filme Botinada, a vila “punk” chamada Carolina, encravada entre o Bairro do Limão e a Freguesia do Ó, na periferia paulistana, era basicamente proletária, rodeada por fábricas e pelo comércio popular. Ariel justifica o nascimento do punk naquela região afirmando que: “só nos restava o conformismo de ser como nossos pais ou ir contra a corrente que nos prendia a uma triste realidade”.
E o grito de liberdade viria através da (difícil) importação de discos de bandas estrangeiras como The Stooges, Ramones, Sex Pistols e The Clash, espalhando-se através de cópias em fitas cassete.
Aquelas bandas inglesas e estadunidenses, que plantaram na mente dos jovens o sonho de encarnar em si mesmos a possibilidade mudança, mostraram que eles também podiam criar seus recursos e fazer rock a partir de suas angústias. Eles, que se pretendiam “destruidores”, surgiram da própria destrutividade do sistema capitalista, incorporando a capacidade de transformação.
E era natural que a contra-cultura punk, mesmo importada, parecesse nascida e criada na Vila Carolina. Afinal, onde quer que estivessem, os punks eram frutos do processamento da pobreza, da falta de trabalho e da exclusão social. Por isso sua música desarmônica encontrava identificação em ambientes geograficamente tão afastados.
A força da cena punk dos anos de 1970 e 80 era embriagante. Mas o que havia por trás dela? O punk foi uma revoada de farrapos, mera diversão, cultura ou chegou ao patamar de um movimento social?
Para o Clemente, da banda Os Inocentes, não, não chegou.
Segundo ele não se tratava de um movimento que lutava pela justiça social. Para o punk, disse Clemente, o inimigo podia o vizinho ao lado, podia ser os punks de outras facções, ou até o sistema social. Eles queriam “destruir” para “transformar”.
Entretanto, discordando do músico, avalio que aquela revolta podia ser interpretada como uma postura política.
Está claro que eles não estavam organizados em alguma instituição social reconhecida por órgãos oficiais ou governamentais. Não eram partidos, ONGs, Sindicatos ou o que quer que o valha.
Mas, se uma das características fundamentais do punk é a rebeldia, é legítimo que eles existissem enquanto movimento social à revelia dos padrões sociais.
Além disso, para muito além dos modismos, os punks originais se identificavam pela forma como se colocavam na sociedade, repudiando as instituições e os códigos que segmentam as pessoas em classes. E, seu rudimentar discurso anarquista definia, em última instância, uma visão de mundo e um ideal de transformação.
Com isso podemos dizer que, mesmo não tendo surgido para ser um movimento, os punks se configuraram espontaneamente como um grupo nitidamente reconhecido na sociedade.
A imagem agressiva da garotada era, antes de tudo, uma denúncia sobre as mazelas do mundo injusto em que viviam, mesmo que esta denúncia se fizesse de forma muito mais intuitiva do que intencional.
Eles não entraram na disputa, não defendiam grandes projetos, nem almejavam aceitação. Nada entre os punks parecia ocorrer de forma organizada e linear.
Tanto que sua origem no Brasil foi marcada pela rincha entre gangues. Naquela época, fim da década de 1970, diferenças entre os punks de São Paulo e os do ABC motivaram uma violência cega e inconsequente.
Somente a partir do início da década de 1980, sobretudo depois do festival O Começo do Fim do Mundo, em 1982, no Sesc Pompéia (SP), o movimento começou a sair do gueto e assumir uma forma cultural.
Isso tudo de um modo passional e desordenado. Longe, muito longe, do politicamente correto ou da pecha de “vítimas da sociedade”.
Em linhas tortas o punk cumpriu o seu papel: cuspiu na cara da sociedade, chutou o balde e escancarou a ironia que rege nossas relações.
Carolina Maria Ruy é jornalista, coordenadora de projetos do Centro de Memória Sindical
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