Zuzu Angel

07 mar 2014 . 09:24

zuzu

Zuzu Angel

Brasil, 2006

Sérgio Rezende

Com Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Luana Piovani, Leandra Leal

O filme Zuzu Angel levou, enfim, ao conhecimento da sociedade a luta de Zuleika Angel Jones, 30 anos depois de sua morte. Entretanto, sua harmonia técnica e estética processa os horrores da ditadura até eles se tornarem palatáveis e “agradáveis” para o gosto da classe média.


Por Carolina Maria Ruy

Zuzu Angel é até um filme agradável de ver. E isso é um fato interessante. Agradável não é o adjetivo adequado para descrever o sumiço de um militante de esquerda sob os desmandos do Estado.

Entretanto, apesar desta palatabilidade o filme traz suas “faces secretas sob a face neutra (1)”, das quais cito três:

A primeira é o encontro de Zuleika Angel Jones, a mãe do estudante, militante do grupo guerrilheiro revolucionário MR-8, Stuart Edgart Angel Jones, com o pai do Capitão do Exército Brasileiro, que desertou em 1969 tornando-se um dos comandantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Carlos Lamarca, militar. Este breve momento do filme revela sutilmente duas das várias formas da resistência contra a ditadura: de um lado a mulher bela, sofisticada e arrojada, de outro o homem humilde, operário, resignado. De um lado o movimento estudantil com seu ímpeto de luta contra a repressão. Do outro o movimento operário, com sua necessidade de luta contra a opressão. Duas realidades que se cruzam sob o mesmo drama, o sumiço de um filho nas mãos dos agentes do Estado e a busca inglória dos pais.

A segunda face que se desprende do filme é a demonstração de como a “moda” pode ser tanto uma demonstração de status quanto uma atitude política e de rebeldia. Zuleika foi uma importante estilista brasileira e à medida que ela se envolvia com a busca por pistas do paradeiro de Stuart, suas criações expressavam cada vez mais contestação e engajamento. Seu estilo original misturava tecidos, temas e estampas regionais, além de pedras brasileiras e fragmentos de bambu. Assumir esta brasilidade na alta moda, em uma época em que o “chic” para a cafona elite nacional era copiar descaradamente as vestimentas dos habitantes dos países dominantes do capitalismo, era algo transgressor. E esta atitude iria ainda mais longe. Zuzu, que sempre abordou a alegria e riqueza da cultura brasileira, depois do sumiço de seu filho, criou uma coleção estampada com manchas vermelhas, pássaros engaiolados e motivos bélicos. O anjo, uma das marcas de suas criações, aparecia agora ferido e amordaçado, fazendo referência ao filho.

A terceira “face secreta” que cito é a canção “Angélica” de Chico Buarque de Holanda. Abordo a música aqui como representação de todas as canções compostas de forma cifrada sobre situações geradas a partir da ditadura militar. Chico não apenas “usou” tal história para compor uma música. Ao contrário: ele usou sua música para contar uma história que lhe foi confiada.

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Isso porque uma semana antes da emboscada que causou sua morte, a estilista deixara na casa do músico um documento que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse. Nele Zuzu afirmava que “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”. Previsão que se confirmou na madrugada de 14 de abril de 1976, quando um suspeito acidente de carro na Estrada da Gávea, Rio de Janeiro, pôs fim à vida de Zuzu e à sua busca pelas explicações, pelos culpados da morte do filho.

Como, naquela época, a censura impedia os artistas e jornalistas de descreverem situações que “manchassem” (de sangue) a fachada do governo militar, obras inteiras foram compostas com base em uma linguagem alegórica. Músicos, escritores e demais criadores comprometidos com a resistência à ditadura exerceram malabarismos linguísticos, buscando formas de expressão, de combinações de sons, imagens e palavras que driblassem os censores e transmitissem ao povo, da forma mais abrangente possível, o que de fato acontecia nos porões das instituições das altas patentes.

Neste contexto, em 1977, Chico compôs “Angélica”, em homenagem à estilista.

O elementar direito de uma mãe enterrar o corpo de seu filho morto, a simples notícia da morte e a insistência da mãe em repetir o relato daquela situação para um contingente de autoridades surdas àquela mulher foram crueldades relatadas nas entrelinhas dos versos: “Quem é essa mulher/Que canta sempre o mesmo arranjo?/ Só queria agasalhar meu anjo/E deixar seu corpo descansar”.

E ainda, no verso “Só queria embalar meu filho/Que mora na escuridão do mar”, Chico insinua que, como acontecera com muitos outros militantes, o corpo de Stuart fora atirado em alto mar.

O que de fato aconteceu com o jovem estudante não se sabe. A versão mais conhecida e aceita de sua tortura e morte foi contada pelo ex-guerrilheiro Alex Polari, que assistiu da janela de sua cela as torturas feitas contra Stuart. Dele, os militares queriam a informação da localização do Capitão Lamarca, o grande procurado pelo regime. Ambos, Stuart e Lamarca foram assassinados no ano de 1971.

O filme cumpre um papel. Ele levou, enfim, ao conhecimento da sociedade a luta de Zuleika, 30 anos depois de sua morte. Entretanto, sua harmonia técnica e estética equilibra e processa os horrores até eles se tornarem palatáveis e “agradáveis” para o gosto da classe média.

Um relato histórico que finge assumir e denunciar uma realidade vergonhosa, à qual a emissora compactuou, é o máximo que se pode esperar de uma produtora que é o braço cinematográfico da TV Globo. A verdade sobre o que fizeram os militares no governo brasileiro, entre 1964 e 1985, é muito mais feia.


Carolina Maria Ruy é jornalista, coordenadora de projetos do Centro de Memória Sindical
(1) Citando Carlos Drummond em Procura da Poesia.

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