Luiz Tenório de Lima

06 ago 2012 . 15:36


A história de vida de Luiz Tenório de Lima, o Tenorinho, do Sindicato de Laticínios de São Paulo, Santo André e Mogi das Cruzes, fundador do Dieese.

História de Vida

Identificação

Meu nome é Luiz Tenório de Lima. Eu nasci na cidade de Palmares, Pernambuco, em 23 de junho de 1923. Antiga Estação Ferroviária de Palmares, PE

Meu pai se chamava Francisco Tenório de Lima.

A minha casa era uma casa geminada e meu pai tinha comércio de cereais na cidade de Palmares. Ele tinha um box dentro do mercado municipal, e o depósito era a casa geminada onde a gente nasceu, onde ele fazia o estoque dos produtos que ele vendia. A casa a rua Coronel Austriclínio, nunca vou esquecer esse nome, número 65, em Palmares. E a infância foi como a de todo garoto daquela época. Éramos ainda 11 irmãos, e a nossa mesa completava-se com mais a minha mãe, meu pai, aí eram 13, a minha avó materna, 14, um tio que trabalhava com o meu pai, irmão da minha mãe, 15, e mais um outro filho adotivo que meu pai já tinha, éramos 16, e às vezes um convidado ou outro, eram 17 pessoas pra uma mesa só, porque naquela época era comum as famílias se juntarem.

Às oito horas da noite eu e meus irmãos tínhamos que estar recolhidos; eles podiam aprontar o que quisessem isso até esse horário fora de casa, aí às oito horas tinha que comparecer e se preparar para dormir e se recolher. Essa era a rotina. A gente ia ao cinema, tinha um cineminha lá que a gente ia. A gente gostava muito e muitíssimo de jogar futebol. Eu fui um bom meia-esquerda naquela época, na infância e na juventude. Tinha o rio Una, que é o rio que cruza a cidade, e ali ainda a gente tomava banho, a gente nadava, aproveitava as enchentes de inverno, chovia, a gente tirava a roupa, saía tudo pelado, então a molecada gostava disso, tomava banho de chuva na rua, brincava um com o outro, pulava, era uma rotina, era uma vida agradável apesar de a cidade não oferecer muitas opções, mas as opções estavam no sistema em que os filhos são criados.

Aos seis anos fiz a primeira comunhão, nós tínhamos aula de catecismo, frequentávamos a igreja, íamos à missa todos os domingos, e aos seis anos fazia a primeira comunhão, com aquela roupa branca, aquela vela com fita, muito bonito. Era uma – vamos dizer assim -, era um momento muito agradável, muito gratificante pra criança e os pais ficavam felizes de levar o filho à igreja, bem vestido, de terninho branco especial para fazer a primeira comunhão. Claro, também nós tínhamos as brigas de rua, isso todo moleque que se preza faz. Tinha briga de rua com os vizinhos, com outro e tal, o moleque que se metia, a gente não podia ser menos do que o outro. Nós éramos proibidos de brigar na rua, mas também era proibido de apanhar na rua de qualquer moleque. Se chegasse em casa dizendo que apanhou e não deu dez porradas no outro, aí ia ser castigado. E havia isso, o filho maior, o irmão maior, ser responsável pelo menor, pela formação do menor. Então dava uma assessoria, uma assistência, cuidava e tal, em cima dos princípios de ensinamentos do cristão, da igreja, isso da fraternidade. Isso era um momento, assim, de infância que marcou muito, entre outras coisas.

Em 1930, as forças armadas da Revolução ocuparam a cidade, e a gente ia brincar nas trincheiras, ia pedir aquelas balas já usadas pra fazer canivete. Enfim, a gente usava pra fazer essa brincadeira, de repente houve um tiroteio na cidade, não sei por que, quem foi queCartazes da Revolução de 32 atacou quem, sei que um sargento morreu, foi tiroteio pra todo lado. E o meu pai – e eu me lembro como se hoje fosse -, disse: “Entra todo mundo!” E ele pôs todo mundo para dentro. Veio o levante de São Paulo contra exigindo, como é que se diz, uma nova constituição contra a ditadura do Getúlio, porque ele subiu pelas armas e ele só podia se impor mesmo pelas armas naquela ocasião. Isso eu lembro bem. Ele contrariou os cafeicultores, que eram os donos da economia, os produtores de café e exportadores, produtores de matéria-prima produtores de cacau, enfim, todo o setor agrícola e o latifúndio que dominava o poder, ele teve que enfrentar para poder superar as forças. 32 foi aquela Revolução, São Paulo se levantando, e eu me lembro muito bem do recrutamento de nordestinos para formar nas fileiras das tropas getulistas em defesa da Revolução contra o separatismo que São Paulo queria realizar.

Trajetória Profissional  

Meu pai vivia desse comércio muito pequeno de cereais lá no mercado, e as coisas se complicaram, e aí a dificuldade financeira, a dificuldade em casa, porque nem sempre a gente tinha o almoço garantido ou a janta garantida naquele período de 30, 31, 32. Foi um negócio Mas o meu pai era um homem que tinha muita personalidade, era muito forte e muito confiante em si mesmo, aí achava que essas coisas a gente superava e tal. Ele fazia amizade com todo mundo, e nisso aí nós atravessamos essa crise. Nesse momento ele inventou de plantar arroz, plantar feijão, milho num sítio perto da cidade. O dono da fazenda lá era um amigo dele e cedeu para ele, aí eu ia aprender… Eu, naquela idade, oito anos, sete anos, ia pra lá com ele, acompanhava, eu e mais dois ou três, aprendemos a plantar feijão, a plantar milho, a plantar mandioca, a fazer farinha. É um negócio, assim, divertido, e a gente comia lá mesmo. Era um feijão cozido com um pedaço de jabá, quando a gente conseguia, ou então mandioca. E o prato era um cavaco, era umas peças de cavaco assim, era quase que um coxo, e ali a gente se alimentava, e de noite tinha que ainda carregar pra casa, carregar para casa gravetos e coisas como lenha, combustível para em casa fazer alguma coisa.

Meu irmão trabalhava na farmácia e – eu acho que foi em 1934 – ele jogou no bicho numa centena ou numa dezena e ganhou um dinheiro, naquele tempo, bastante significativo, que deu pro meu pai… Era assim, a família era o pai, o chefe e acabou… a gente não fazia nada sem passar por ele. E com esse dinheiro, o meu pai comprou uma padaria na cidade de Palmares e aí nós aproveitávamos as tardes pra vender pão, pão que era chamado pão sovado.

Depois comecei a trabalhar e fiquei lá quatro anos de trabalho na Usina Santa Terezinha. Eu tinha dois químicos, que eram os meus chefes e ao mesmo tempo meus professores, por sinal, dois químicos russos. Um era assistente do Instituto do Açúcar e do Álcool, Sérgio Lebedeff, e o outro chamado Anatoli. Muita coisa a gente aprendeu mais ou menos na marra, porque não queriam ensinar, era natural, porque a gente era muito curioso. Muitas vezes a gente via, quando eles faziam aqueles cálculos de análise, éramos nós que apanhávamos as amostras de produto, manipulava, fazia análise, e o resultado ficava documentado, de polarímetro, teor um de sacarose, teor outro disso, teor outro daquilo, e com aquilo eles faziam os cálculos para chegar os resultados, como ia render o que devia render, o açúcar no bagaço, perda disso, perda daquilo. Eles pegavam aquilo e rasgavam e jogavam, e a gente, muitas vezes, depois que eles saíam, ia no lixo, pegava aqueles pedacinhos todos, emendava, punha num papel e ia aprendendo na prática aquilo que eles não ensinavam. Mas muita coisa eles ensinavam mesmo, os dois ensinavam para nós, até porque precisavam da nossa colaboração.

Em 1944, a segunda Grande Guerra acontecendo, eu saí dessa empresa. Eu fui levado para Sergipe por um químico, filho de russos, já não eram mais esses dois, porque esses dois, acho que as pessoas que eram proprietárias da usina conseguiram dispensá-los utilizando a prática dos que trabalhavam com esses químicos. Esse químico era recém-formado, já havia trabalhado comigo na outra empresa e me Levou ao Recife. Aí ele se lembrou de mim, veio com o usineiro e mais um engenheiro técnico lá, sócio do engenheiro que foi governador de Sergipe, o Maynard Gomes, e chegou lá, me convidou. Dali, fui pra Sergipe, contratado, quando cheguei lá já estava contratado pra trabalhar na refinaria… na destilaria de álcool, era a primeira destilaria que tinham montado no estado de Sergipe. Naquele tempo era um negócio fabuloso porque era combustível para guerra. Eu tinha vinte anos. Eu participei da montagem da destilaria com intuito que os funcionários fossem se familiarizando comigo.

E foi o que aconteceu. Alguma coisa assim, rapidamente, eu me identificava muito com os trabalhadores, eu fumava muito, gostava, batia papo, porque eu também aprendia alguma coisa de montagem, de negócio de mecânica, de mapa, e aquele negócio de planta, aprendi a fazer solda elétrica. Eu gostava, e aquele entusiasmo, e eu vestia macacão, comprei um macacão, andava de macacão, de gorrinho, e entusiasmado. Eu me entusiasmava com a União Soviética. A União Soviética era a vanguarda da luta contra o nazi-fascismo no mundo. Ela estava na Aliança, mas era vanguarda. E nós aprendemos a querer bem, aí comecei a aprender, eu já vinha estimulado pelo Partido Comunista sem eu saber.

Na usina eu assisti a uma primeira greve, antes de sair de lá houve uma greve e puseram todo mundo pra rua, mas eu não sabia que tinha Partido Comunista, nunca tinha ouvido falar nisso, e os que foram denunciados foram denunciados como comunistas,- foi a primeira vez eu vi isso. E eu vi aquela greve, os patrões fizeram tanta violência, jogaram as famílias, tiraram das casas e levaram pros canaviais, largaram em qualquer lugar, demitiram todo mundo. E aquilo marcou muito, aquele choque de classes, que eu não sabia o que era, mas instintivamente eu me incorporei àqueles acontecimentos, quando eu cheguei em Sergipe, eu tinha aquela vida do admirador dos comunistas, li aquele livro, me deram aquele livro do Jorge Amado, Cavaleiro da Esperança, e pronto. E o diretor, usineiro, Prado Franco, é um homem que chegou a ser governador de Sergipe, um dia ele me chamou assim: “O senhor não vai poder continuar assim, o senhor se mistura com trabalhador, o senhor acende cigarro com eles, o senhor prosa com eles, o senhor usa macacão.” Aí, ingenuamente, eu disse: “É o estilo soviético.” (RISOS) Ingenuamente, eu disse essa resposta. Eu, com entusiasmo, mas ele deve ter ficado apavorado. Mas ele me tolerou e eu fui muito bem sucedido no empreendimento, uma refinaria que tinha sido montada com uma garantia de produzir oito mil litros de álcool por dia, eu consegui, com o que eu já sabia, com o meu conhecimento e minha experiência consegui elevar essa produção ao dobro, pra 16 mil litros por dia. Aí eles não sabiam como me tratavam mais, né? Quer dizer, eu fui dobrar a perspectiva deles de lucro, de dinheiro, de tudo, e naquele tempo não se acumulava produto porque os caminhões faziam fila, faziam fila esperando para encher, e aí me tratar como, se eu era lucro certo?

Depois, eu saí dessa empresa e em Pernambuco eu não achava nada, pois o mercado estava saturado. Eu vim pra São Paulo, e foi em São Paulo que entrei para o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Laticínios, porque era laticínios e continua sendo laticínios, café e açúcar. Eu entrei já porque eu tinha, em Sergipe, sido eleito presidente do sindicato lá dos trabalhadores do açúcar e do álcool, e no dia da posse, o Dutra intervém em todos os sindicatos do Brasil. Ali foi a minha primeira associação, meu primeiro partido. Era 1950 mais ou menos nós viemos aqui pra São Paulo onde eu já tinha esse irmão Pedro, ele me recebeu muito bem. E aqui haja se bater pra arranjar emprego, é a coisa mais horrível do mundo. Eu aparecia nas portas das fábricas, pedindo um lugar pra ser varredor, andava para todo lado, pois não tinha nem dinheiro para o ônibus, para o bonde, e eu me orientava pelo Edifício do Banco do Estado, ali no centro. Meu irmão mais jovem, Francisco, tinha uma amizade muito boa no Instituto do Açúcar e do Álcool, ele sabia fazer muito boas relações, me Edifício Matarazzoapresentou ao delegado do Instituto do Açúcar e do Álcool dizendo minha situação, minha profissão. Falou: “Olha, um pedido seu a gente vai ver. Deixa aqui o currículo que geralmente os usineiros procuram aqui profissional como você.” Menos de uma semana depois chegou no cortiço onde morava o meu irmão, um contínuo das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. Entregou-me uma carta, que eu fui ver, era um convite pra comparecer ali nas Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo no Viaduto do Chá, onde era a sede do Banespa – agora, Prefeitura. Eu fui aprovado em alguns testes, passei por uma entrevista e fui contratado com o dobro do salário médio para trabalhar em Minas Gerais. Fui embora pra lá, pra cidade de Engenheiro Dolabela, no Vale do Jequitinhonha, as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo tinham uma fábrica de álcool, açúcar e éter e foi aí que eu conheci esse negócio. Mas o de imediato era o açúcar, eu tive sucesso, deu tudo certinho.

Trajetória Sindical

Minha ação sindical, começou em Pernambuco, foi interrompida e, em Sergipe eu retomei. Fui presidente do sindicato e fui destituído no dia de tomar posse, lembrando que em Pernambuco eu já aos 16 anos, eu já era delegado sindical. Então a minha vida sindical começou por ali, passou por Sergipe nas condições que eu disse. Quando chegou em Minas Gerais, realmente estava tudo pronto pra começar. Eu lá não podia me identificar como militante do Partido Comunista, que eu já era, eu já vim de Sergipe com esse galardão, mas não podia me identificar. Aí alguém me procurou, um operário me procurou, não sei se foi alguém do partido que me conhecia, recebeu a orientação e me procurou pra falar sobre a atuação deles, o salário atrasado, uma dificuldade muito grande, a usina em pleno funcionamento. “Puxa, como é que nós vamos fazer?” “O senhor sabe, tal, nós queremos… nós estamos pensando aqui em fazer uma paralisação.” Primeira vez que essa palavra surgia naquela empresa do Matarazzo. Eu olhei pra um lado… “Você ficou louco?” “Não, doutor, o senhor sabe…” “Eu acho que alguém o indicou. E eu, primeira coisa, eu não posso participar disso porque eu sou o preposto da firma. Olha, você quer fazer uma greve?” “É.” “Você tem quem participe com vocês?” Ele falou: “Tem.” “Então, primeira coisa, vocês têm muita razão.” Eu e ele só dentro, trancado dentro do laboratório. “Vocês têm muita razão. Tem que fazer mesmo. É assim, é assim.” Orientei do jeito que o diabo gosta. E não é que no outro dia parou tudo? Mas foi um negócio lindo. E quem era o “cabeça”? E não tinha sindicato, não tinha nada, como é que isso aconteceu? Aí veio o superintendente, parou porque estava com três meses de salário atrasado, nas vésperas do natal, o superintendente, esse doutor Alexandre Crivelli: “Como é que nós vamos fazer? Esse setor é novo! Como nós vamos fazer?” Eu digo: “Como nós vamos fazer? Olha, a lei pune o estrangeiro responsável pelo não cumprimento da legislação brasileira, e é o que o senhor está fazendo aqui. O atraso de pagamento é falta grave perante a lei. O senhor pode ser (RISOS) expulso do Brasil a qualquer momento por conta disso.” “E o que é que eu devo fazer?” “Olha, o senhor vai lá em Montes Claros,” “levanta o dinheiro com o banco e traz o dinheiro pra fazer o pagamento do pessoal e aí seguramente eles vão ficar ‘feliz’.” Aí ele, naquela mesma madrugada, pegou o carro dele com o motorista dele, a equipe, foi pra lá e voltou com as malas cheia de dinheiro, né? Porque aí ele sacou o dinheiro em nome da empresa que ele representava, era o Matarazzo. Aí ele chegou, disse: “Agora está tudo em ordem. E pagou os funcionários. Depois disso, vieram cinco investigadores de Belo Horizonte chefiados por um delegado pra fazer um levantamento pra descobrir quem era o responsável pela greve, “os cabeças”, pra serem punidos, essa coisa toda, e olha que coincidência: como nós éramos da administração, eles tinha que almoçar com a gente, conversar com a gente, ouvir a gente. Eles especulavam tentando descobrir quem incitara a greve. Eu disse: “Olha, eu não identifico cabeça. Houve um descontentamento geral, eu acho que não tem cabeça nisso, isso eu posso avisar o senhor, é a responsabilidade. Eles ficaram nove dias investigando, voltaram sem arrumar nada. Nesse ínterim, eu consegui orientar a formação de um sindicato, mas sempre falando para eles: “Se você não guardar segredo, o primeiro a ser denunciado e entregue à polícia é você, porque você vai pôr tudo a perder.” E o cara manteve a palavra, organizamos o sindicato, o sindicato foi reconhecido, foi uma coisa linda, no Vale do Jequitinhonha. Os trabalhadores foram pegando gosto pela coisa, se mobilizando, reivindicando mais, fazendo outras greves, até que fui convidado a me retirar.

Eu consegui um emprego num armazém distribuidor Cyrus que era na rua Borges Figueiredo, onde está a União dos Refinadores, famosa já naquela época, tinha quatro mil trabalhadores. Mas os Distribuidores Cyrus eram uma refinaria de açúcar, com torrefação e moagem de café, uma coisa assim. Eu vi pelo jornal e me apresentei, fiz o teste e na hora me contrataram. Aí, respirei aliviado, pois no decorrer deste período o dinheiro tinha acabado. Pensei comigo “Agora sou gente outra vez, estou empregado.” E primeira iniciativa: saber qual é o sindicato que representa esse setor. E era o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Laticínios e Produtos Derivados, que ficava numa travessinha da rua Florêncio de Abreu. Me apresentei lá no sindicato, meio desconfiado, meio sem jeito e tal e fui apresentado ao presidente, que era um homem muito atrasado – politicamente e também culturalmente – e era um homem entregue, assim, ao comando da Federação aqui de São Paulo – Federação dos Trabalhadores de Alimentação, que manipulava o sindicato. Era um homem de confiança do Consulado Americano, era um homem de confiança da Confederação e desse sistema anti-social que já existia na época. E era anticomunista declarado e estúpido – ele gastava o dinheiro dos trabalhadores, assim, não prestava conta. E tinha assembleia em que ele punha o revólver em cima da mesa. Imagina! “Comunista aqui que abrir a boca, eu dou um tiro!” Era um clima assim. E eu não queria levar um tiro, eu queria cumprir a minha função.

Quando o Pacto de Unidade Intersindical estava sendo fundado, eu consegui que a assembleia dos trabalhadores aprovasse a participação do nosso Sindicato, e eu era o representante do Sindicato no Pacto – o primeiro Pacto de Unidade Intersindical aqui em São Paulo. Isso foi muito gratificante e foi uma aprendizagem: era aquela beleza, era luta, era barulho… Organizamos uma chapa e tal e aí eu me elegi para tesoureiro do Sindicato – eu não podia ser presidente num primeiro momento, mas tinha um cara arrojado lá, que trabalhavaJoão Baptista Ramos aqui no açúcar, e que virou presidente, fizemos aliança e tal, aí já tínhamos cobertura política do deputado João Batista Ramos, que era do PTB do João Goulart. Mas até então, eu não era identificado no meio sindical como militante comunista, não. Era o Tenório, o Tenório do “Laticínios”, essa coisa toda não ia além disso, e nós tivemos um momento muito importante – isso é bom também registrar – que foi o debate sobre a lei orgânica da previdência social que estava em discussão no Brasil inteiro. Nós levamos três anos debatendo a lei orgânica e realizando assembleia, conferência, encontro, essa coisa toda pra transformá-la num projeto com a nossa participação, as nossas opiniões, e que resultou na lei mais avançada de previdência social que o mundo já conheceu e que a ditadura militar acabou.

Trajetória no Dieese

O DIEESE passou por todo um sistema de preparação. Ele não surgiu de um estalo, não, ele foi fruto de todo um acúmulo de aprendizagem. Então, nós fizemos o Pacto de Unidade Intersindical, que começou com cinco sindicatos: gráficos, metalúrgicos, marceneiros, têxteis e vidreiros. Ali na rua dos Cerealistas. Então, naquela rua era uma casa baixa de um sócio, onde funcionava o sindicato, que se transformou em sede e dali nós começamos a “mandar brasa” em tudo. E todas as nossas lutas sindicais durante esse período, as lutas reivindicatórias, elas encontravam a barreira de como provar que era aquela percentagem que os trabalhadores reivindicavam, não tinha como, não tinha um aferidor. O único em que a justiça se baseava – aí vamos chegar no DIEESE – era uma comissão do Ministério do Trabalho, a qual não tinha a nossa presença nem participação, e a Secretaria de Abastecimento de São Paulo, comandada por Ademar de Barros e o secretário era o João Acioli, até um advogado do Sindicato dosRemo Forli na inauguração da sub-sede do Sindicato em Osasco. Têxteis. Então esses dois dados nunca, nunca conferiam com aquilo que a gente achava que era o custo de vida e nós nos batíamos, e só levávamos alguma vantagem quando fazíamos greves enfrentando polícia, enfrentando todas as dificuldades pra fazer uma greve como fizemos em 1953, a chamada “Greve de 700 mil trabalhadores”. Então surgiu a ideia da gente criar o nosso próprio organismo de levantamento de custo de vida. Aí eu, como secretário do Pacto; Salvador Romano Lossaco, presidente do Sindicato dos Bancários – aqui eu rendo a minha homenagem porque sem ele não “tinha” existido o DIEESE; Remo Forli, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos – eram os dois maiores sindicatos época, os mais combativos eram esses dois; nós, do Laticínio, que não era numericamente tão expressivo, mas politicamente era peso-pesado; enfim, nós somamos cinco sindicatos e começamos a trabalhar dia e noite. Mas era até meia-noite, uma hora, duas horas da manhã, elaborando, pesquisando, estudando, e um dos homens-chave nisso aí se chama – foi este que já falei – Salvador Romano Lossaco, que não era do Partido Comunista, era um anarquista nato, mas de uma fidelidade de classe e de uma competência para ficar do nosso lado que era impressionante.

Nós fundamos o DIEESE. Fundamos o DIEESE e pusemos: Departamento Intersindical de Estudos de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Antes era só Departamento Intersindical de Estatística. Aí um jornalista chamado Xavier Toledo – que era um jornalista do Correio Paulistano que trabalhava na Câmara e que acompanhava a gente, era um simpatizante – disse: “Olha, vocês têm que acrescentar, à ‘Estatística’, ‘Estatística e Estudos Socioeconômicos’, porque vocês abrem a perspectiva de se tornarem um instituto.” E nós incorporamos essa sugestão, ficou DI-E-ESE. Foi um negócio muito bonito, uma vitória grande. Do DIEESE, no começo, participaram apenas aqueles sindicatos que não concordavam com o Pacto de Unidade, que já era majoritário e tinha abertamente a hegemonia dos comunistas, embora, é claro, não tinha 100% de gente comunista, mas a maioria dos sindicatos, que acompanhavam o pacto de unidade tinha a hegemonia do Partidão. Então, alguns dirigentes sindicais e alguns sindicatos mais conservadores, mais retraídos, não entravam pro Pacto. Então foi também um caminho que nós descobrimos pra trazermos eles pra participarem da luta conjunta. Por isso, além dos cinco, depois vieram outros. Constam da ata de fundação do DIEESE mais ou menos 19 sindicatos.

Nós tivemos o cuidado de manter sempre o DIEESE como instituição técnica. Nunca aceitamos – inclusive eu não aceitei, mesmo como dirigente do Partido Comunista, que já era naquela época do comando municipal do partido, reagi e não permiti, como os outros companheiros não permitiram – que um partido comunista instrumentalizasse o DIEESE, fizesse dele – vamos dizer assim – um trampolim político para certas ocasiões. Nós nunca fizemos isso pra garantir a unidade daqueles que vinham com o DIEESE.

O primeiro técnico do DIEESE era um homem muito alienado politicamente, um excelente técnico, mas estava pouco se lixando para as lutas dos trabalhadores. Esse técnico fez um bom trabalho nos primeiros 20, 40 dias. Quando nós apresentamos o primeiro resultado, assustou a Federação da Indústria, presidida na época pelo Antônio de Visatti, cuja sede é aqui no Viaduto Maria Paula… pertinho, aqui, da João Mendes. Eles se mancomunaram, estudaram, chamaram esse técnico, triplicaram o salário que tínhamos estabelecido, que era o que a gente podia pagar. O cidadão não deu pra gente nem bom-dia, nem boa-tarde, caiu fora, a gente ficou sabendo que ele já estava lá e que ele não ia mais voltar pro DIEESE.

Então o Partido Comunista, que tinha presença em todas as universidades, em todos os jornais, através do Câmara Ferreira, que era o jornalista responsável pelo jornal “O Hoje”, do Partidão e era o assistente dos universitários, localizou o Albertino Rodrigues. Um homem muito sereno, muito discreto, não era assim “queimadão.” O Câmara Ferreira trouxe “ele”, nos apresentou, nós o acolhemos. Ele então deu estrutura, estrutura do ponto de vista técnico, funcional, e começou o trabalho, e aí ninguém segurou mais. Apuramos um resultado e a Federação da Indústria, pra desmoralizar a gente, apresentou um resultado maior do custo de vida, pra desmoralizar o DIEESE, pensando que a gente ia morder a isca. Então nós fizemos uma reunião de emergência e concluímos o seguinte: “Vamos lançar uma nota afirmando que o dado certo é o nosso, mas pelo tempo que eles nos enganaram, nós aceitamos – e vamos exigir – receber o índice que eles estão dando. Mas os dados reais são os nossos; esses que eles estão apresentando, nós queremos porque é muito maior e eles têm nos dado um enorme prejuízo através dos anos”. Com isso, nós não mordemos a isca e com isso o DIEESE se credenciou, e aí já foi assinado um convênio com a CEPAL, esse organismo das Nações Unidas pra América Latina.

E aí o DIEESE começou com uma credibilidade crescente e uma equipe que foi se revezando até chegar o golpe de 64. E no golpe de 64, eles, os militares, intervieram em tudo: grêmios estudantis, eles destruíram; sindicato, não precisa falar porque vocês conhecem a história. Eu, de uma vez só, eu perdi o mandato de presidente da Federação dos Trabalhadores da Indústria de Alimentação do Estado de São Paulo; presidente do nosso Sindicato de Laticínios; diretor da CNTI; diretor do DIEESE; tudo isso eles caçaram de uma vez e me caçaram também os direitos políticos por dez anos. Essa violência, todavia, não chegou no DIEESE. Eles não tinham como justificar uma intervenção no DIEESE, embora assustassem todo mundo e ameaçassem o Albertino, que teve que se mandar para Portugal. Aí foi quando assumiu a Lenina. De grande qualificação profissional. Em seguida o Walter Barelli. E aí as coisas começaram a caminhar; mesmo dentro da ditadura nós nos reagrupamos e, com o DIEESE, nós conseguimos realizar muita coisa, realizamos inclusive estudo para o MIA. Movimento Intersindical Anti-Arrocho, fundado por nós, nós na clandestinidade, porque a lei salarial que os militares estabeleceram, ela só reajustava o salário na média dos últimos três anos. Era uma lei terrível, mas que tinha que prevalecer, porque a ditadura a impôs através de um ato.

A partir daí é que nós nos firmamos outra vez dentro dos sindicatos politicamente pra poder enfrentar a situação. O DIEESE dando a sua contribuição, nós participando com muita coragem, e eu apresento a minha homenagem a todos aqueles companheiros que tombaram,que se arrebentaram na luta. Eu tive o esquadrão da morte na minha casa, eu tive a minha prisão preventiva decretada por quatro vezes, até que fui pego, por sinal no dia do AI-5, em uma reunião do partido ali na rua Santo Amaro.

Fatos Marcantes

Eu estava saindo de uma reunião do partido, já na clandestinidade, e a polícia, que não estava nos procurando, nos parou. O rapaz que estava comigo ficou nervoso e tentamos fugir, os policiais nos prenderam, pensando que fossemos ladrões de carro. Chegando na delegacia eles descobriram quem eu era, então me algemaram outra vez e me mandaram para o DOPS. Já estavam o chefe do DOPS e cinco delegados quando chegamos lá. O senhor sabe que o senhor está com quatro prisões preventivas decretadas? Vou aproveitar e decretar mais uma! Cinco! Já está aqui mesmo”! Ele deu uma gozada assim. Eles, no primeiro momento, respeitaram e tal, me puseram numa cela, e a partir daí… sabe em que cela eu fui colocado? Na cela de onde tinha saído há três dias o Caio Prado Jr. Fiquei incomunicável por 40 dias. Quando eram 11 horas, meia-noite, abriam a porta da cela e dois tiras com metralhadora me acompanhavam, me levavam pra uma sala especial lá num andar superior do DOPS com gravadores, delegados e investigadores pra interrogar. Claro que aquela presença armada, tudo, era pra apavorar. Eles estavam matando gente em plena luz do dia, de qualquer jeito, e eu consegui equilibradamente ir levando a coisa. Se você fizesse alguma declaração e entregasse o primeiro, tinha que ir até o fim. Aí você ia pra tortura pra entregar o resto. “Eu não sabia de nada, eu vivo a minha vida, vocês estão sendo arbitrários.” “Mas o senhor está clandestino este tempo todo aqui no Brasil fazendo subversão…” Ameaças eu tive de todo tipo. Apanhei, tomei choques, mas consegui me manter. Teve uma hora que aí eu tremi na base. Minha mãe tinha, naquela época, uns 70 anos ou mais, um pouco mais, já estava traumatizada de tanta coisa. E os caras diziam: “Sabe, nós vamos trazer a senhora sua mãe aqui e nós vamos torturar o senhor na frente dela.” Aí você treme na base. Aí eu disse: “Eu não acredito que vocês sejam covardes a esse ponto. Mas se quiserem fazer isso, façam e vocês vão responder pelo crime que vocês vão fazer.” Perdido por perdido, perdido e meio! O que eu ia fazer?” Eu dizia: “Pode trazer. Se vocês são covardes, façam isso. Eu não acredito que vocês sejam covardes a esse ponto.” Bom, finalmente, daquela acabei escapando, quando foi quebrada a tal incomunicabilidade. O delegado responsável pela investigação, responsável pelo documento, pelo depoimento, junto com o chefe do DOPS mais um delegado e outras duas personalidades abriram a cela, entraram e falaram. “Seu Tenório, nós chegamos aqui porque esse aqui é oficial da aeronáutica e esse aqui é um oficial do exército. Eles vieram aqui porque eles não aceitam o seu depoimento. O senhor falou aqui esse tempo inteiro; segundo eles, o senhor não disse nada. Não tem nada que aproveitar no seu depoimento. Eles vão levar o senhor lá pro DOI-CODI.” Naquele tempo, o DOI-CODI pegava e matava, não dava satisfação a ninguém. E foram conversando: “Nós estamos acompanhando a sua vida aqui, o senhor tem na cela rádio, o senhor pega a rádio central de Moscou.” E pegava. “O senhor ouve a BBC de Londres. O senhor faz palestra aqui com os presos. O senhor faz proselitismo e agitação aqui dentro.” E foi enchendo, foi enchendo. Eu disse: “Olha, eu não faço agitação aqui dentro.” “Quem está fazendo agitação desde o Oiapoque ao Chuí nesse país é o Partido Comunista, o Partidão. E está fazendo na clandestinidade, e vocês sabem o que isso vai virar, nós vamos sair na crista da onda.” Acredite se quiser, a reação do delegado chefe. Olhou assim, disse: “Mas o senhor é testemunha que eu nunca bati em comunista aqui”. Querendo dizer que não aceitava a minha acusação contra ele. ”E os caras foram embora, o delegado os levou até a porta e voltou. “Olha, o senhor está brincando. Esses homens levam o senhor pro DOI-CODI e o senhor vai ver. Aqui nós te poupamos, mas lá eles vão te torturar até a morte.” “Vamos fazer um acordo. Eles podem fazer o que quiser. Eles estão com o poder na mão, podem fazer. Agora quem vai responder pelos crimes são eles, não sou eu, porque atrás vem a classe operária aí disposta a retomar a linha de combate e assumir o poder nesse país.” E dias depois, minha irmã, que é freira lá no nordeste, aparece no DOPS: conseguiu uma visita, conseguiu através de meu advogado, doutor Aldo Luis e Silva. Aí o carcereiro chegou assim e disse: “Olha, tem uma freira aí, diz que é a sua irmã, mas tem hora pra visitar o senhor. Comunista desse perigoso, comunista nessa situação tem uma irmã freira?” E ela toda preocupada falava: “Mas por quê?” Eu respondi: “E olha: em primeiro lugar, pra irmã Beatriz, eu quero manifestar o meu agradecimento por tudo que você fez por mim, pelo que você está fazendo agora. É realmente um gesto que é coisa de nordestino, a solidariedade da gente nordestina é uma coisa muito séria, mas tudo o que eu fiz, tudo o que eu estou fazendo, foi vocês que me ensinaram. Não é amar o próximo como a si mesmo? Foi o que nós fizemos: lutar pelos humildes, pelos injustiçados, pelos trabalhadores. Não é esse o ensinamento de Cristo? Não foi isso que você me ensinou no catecismo? Não foi isso que eu aprendi, e não é isso que eu estou fazendo?” Quase que eu recrutei ela lá, (RISOS). Ela saiu muito encorajada, tinha uma personalidade muito forte.

 Um dia me pegaram às duas horas da madrugada, meteram dentro de um camburão, saíram pela garagem do DOPS, pra me intimidar; metralhadora e tal num camburão fechado. “Vamos dar uma volta, vamos dar um passeio!” E eles tiravam os caras, assim, pra matar. Aí eu já não senti mais a certeza de que eu ia voltar. Aí eu tive a sorte de ter um papel e lápis. No escuro, eu consegui um pedaço de papel, eu escrevi não sei se escrevi pra alguém ler ou se alguém leu ou não leu, mas a gente usa todos os recursos que tem. Escrevi: “Sou Luiz Tenório, preso político do DOPS. Estou sendo tirado agora às duas horas da madrugada pelo fundo da garagem pra ser assassinado. E os companheiros que tiverem oportunidade, qualquer pessoa, denuncie isso logo que pegarem esse papel.” Seria um milagre alguém achar na avenida Tiradentes – eu estava indo em direção à avenida Tiradentes. Joguei, foi uma tentativa. Eles na cabine resolveram apavorar, criar pânico. “Está na hora de ‘apagar’ esse…” Mas eles não tinham ordem pra “apagar”, então tinham que voltar. Foi só para me pressionar mais. Na outra semana, nada mais do que o bispo Dom Acácio Brandão, o bispo vem me visitar. Aí a coisa mudou mais ainda. “Bom, mas o bispo?” Concederam a entrevista, ele veio, conversamos muito, ele disse: “Olha, minha presença aqui, seu Tenório, é que o senhor escreveu uma carta pra irmã Beatriz” – eu tinha feito uma carta pra ela justificando tudo aquilo. “Essa carta, ela passou pra nós, essa carta foi lida na conferência dos bispos e eu recebi a missão de vir ouvir o senhor, trazer solidariedade e tal.” Foi só ele sair, dois dias depois, sabe o que fizeram? Me tiraram no DOPS e o boato que corria era o seguinte: a igreja trama a fuga do Tenório. Então dois dias depois me levaram pro quartel do Barro Branco. Mas chegando lá, olha a sorte, os tiras que me levaram apresentaram o documento do comandante a um coronel da polícia militar, que me recebeu assim: “Seu Tenório? O senhor é meu parente! Sou da família Tenório também! Ah, vamos ser amigo aqui.” Aí a conversa já virou toda a meu favor. Na palavra dele, ele realmente foi um cara muito democrata, não permitiu nada além do que um tratamento respeitoso e tal. Mais uma semana, me levaram… aí sim pra um quartel onde existe até hoje a carcaça ali no Parque Dom Pedro, 4º Batalhão de Infantaria do Exército. Ali foi… ali era provocação, uma em cima da outra. Estava preso comigo um japonesinho que eles mataram, que chamavam ele de Hoshimin, um cara valente. Mas esse japonês era louco. “Senhor, nós estamos lhe tratando aqui com tanto…” “Eu não pedi pra vir pra aqui, vai tratar assim a puta que te pariu!”, disse o japonês. “Eu não estou aqui… não pedi pra vir pra aqui, não. Vocês são covardes, são golpistas.” Bom, no fim, arrumaram um jeito de tirarem ele de lá e mataram ele numa rua de São Paulo, saiu na imprensa, dizendo que ele fugiu e reagiu à polícia, reagiu à prisão. Então também tive momentos muito, mas muito marcantes, na cela do DOPS. Vou contar um, pra não perder esse episódio. No DOPS eu recebia a comida também num prato de lata, com uma colher enferrujada, era feijão com arroz e um pedaço de salsicha, era esse tipo de comida assim. E um dia – que nós estávamos incomunicáveis – chega um cidadão assim na janela e bate assim: “Seu Tenório…” Aí eu ouvi, escutei. “Olha, ninguém nos ouvindo não, viu? Eu sou seu amigo. O senhor não me conhece, mas eu era da Usina lá de Minas Gerais do Matarazzo, quando o senhor fez aquela greve e nós ganhamos nosso aumento de salário. O senhor foi o melhor amigo dos trabalhadores. Se o senhor tiver algum recado pro seu advogado, o senhor prepara aí que eu levo.” Foi aí que quebrou a incomunicabilidade. Eu fiz um bilhete com o endereço do Aldo Luis e Silva, ali na rua Xavier de Toledo. Ele levou lá, ninguém sabia que eu estava preso e onde estava. O Aldo com aquele bilhete foi no Tribunal Superior Militar e quebrou a incomunicabilidade. Quer dizer, um episódio assim tão gratificante, tão bonito na vida da gente, dá tanta coragem pra gente continuar. No fim, me levaram para a Casa de Detenção. Ali no Carandiru tinha cem mil presos políticos. Todos os crimes enquadrados no Código Civil e Penal e muitos outros que não tinha nem como enquadrar, de tão hediondos, eram crimes. E a gente saía junto pra tomar banho de sol. Aí eu fiquei muito famoso, fiquei conhecido. Os bandidos diziam assim: “Aquele cara é o ‘quente’. Aquele cara está com 30 anos aí, condenado a 30 anos,” que eu já tinha sido julgado. Aí eu passava no banho de sol, eles passavam: “Bom dia, seu comunista.” Eles tinham um respeito muito grande porque eu disse numa reunião com o chefe da cadeia, o tal Fernando Fernandinho, que era diretor da prisão, eu disse coisas que nenhum preso podia dizer, porque senão, se dissesse, estava perdido. Eles metiam numa cela isolada e matavam o cara, como mataram muitos assim. E eu disse coisas pra eles que os outros ficaram felizes por dentro e ficaram gostando de mim porque eu tinha essas atitudes. Fiquei preso três anos e alguns quebrados, que era a soma também de outras prisões que eu tinha, prisões temporárias tipo subversão por greve, essas coisas todas, e já estava mais ou menos cadastrado e conhecido. Agora, o que eu posso dizer é o seguinte: eu posso ter errado muito no varejo; agora, no atacado, eu não errei, não. Eu não errei porque eu estou… hoje eu sou uma pessoa que em qualquer sindicato do Brasil, de qualquer corrente política, eu sou aceito e recebido como um companheiro, um amigo, um dirigente sindical a quem se pede informação, que gosta de ouvir, gosta de fazer… enfim, no Brasil inteiro. Não tem um sindicato nem federação, nem confederação nesse país onde o Tenório não seja – vamos dizer assim – acolhido quando chega como um companheiro de luta, um companheiro respeitado, um companheiro digno, e isso é gratificante, e eu não vou mudar agora, até porque não dá mais tempo de mudar, não interessa mudar.

 Avaliação/Dieese

O DIEESE, na mão do Walter Barelli, foi crescendo, foi se consolidando, tinha uma equipe, formou um sistema que vocês todos conhecem, o Brasil inteiro respeita, o mundo respeita. Estudo do DIEESE é citado e respeitado por qualquer parte do mundo. Por quê? Porque se transformou num elemento sério. E eu considero o DIEESE, uma das maiores realizações do movimento sindical na segunda metade do século XX, porque está provado que o trabalhador é capaz de construir quando lhe dão oportunidade. E, por isso, a gente nunca perdeu a esperança de um dia ver as coisas diferentes. E nós lutarmos por um mundo melhor, que não cai do céu! E aí eu sou de família católica apostólica romana e me lembro que há uma frase na Bíblia que diz: “Faz por ti, que Deus te ajudará.” Cada um de nós tem que fazer por nós mesmos, não esperar que caia pronto do céu. A vida é uma aprendizagem permanente. É claro que há grande acúmulo de informação, conhecimento e experiência em 65 anos de militância política e sindical ininterrupta – porque nem a ditadura interrompeu, como vocês já viram aqui. Mas o mundo é dinâmico, a situação evolui. Se você pensar que já sabe tudo e que as coisas são do jeito que você começou, você não pode nem contribuir. Eu procuro me inserir, me atualizar e sinto que estou atualizado. Não tenho medo de dizer isso não. Eu sinto que estou atualizado. A tecnologia e a ciência avançaram em favor de quem? Essa é a pergunta. Avançaram em favor dos detentores do poder. Na globalização, a gente entra com as pessoas e eles entram com a corda.

Avaliação/Projeto Memória

É uma homenagem à minha geração. Eu, aqui, eu diria, como alguém já disse em certa ocasião, não me lembro se foi o Otávio Mangabeira quando voltava do exílio, sei que foi um desses políticos da Revolução de 30 que, voltando do exílio, disse essa frase, que ficou gravada em mim. Eu acho que o homenageado aqui não é o Tenório. O homenageado aqui é a minha geração. Eu sou apenas, tento ser e vou tentar honrar sempre esse mandato, certo de ser o porta-voz de uma geração que marcou a história, que fez história e está fazendo história, e sua semente está sendo germinada com o mesmo vigor com que a gente sempre fez.

Futuro do Dieese

O DIEESE não é uma instituição pra ficar aqui, não. O DIEESE tem futuro, e tem futuro para qualquer, eu diria, estágio de evolução social nesse país, e tenho certeza que os trabalhadores deram essa contribuição. Não é por acaso que o DIEESE é prestigiado como é no Brasil inteiro. Então o DIEESE é um mensageiro, não do Tenório, mas daquilo que o movimento sindical implantou e faz crescer, e germinar com frutos positivos. O que é que eu vou pedir mais pro movimento sindical nessa altura dos acontecimentos? Sou um homem realizado. Só que eu não sou um homem que me dou por satisfeito. A mensagem que eu posso dizer é que vocês estão de parabéns se vocês conseguiram fazer e seguir aquela linha do DIEESE, somar os valores, construir a história, criar a estrutura de uma cultura que o nosso povo é capaz de valorizar, integrar a sociedade tendo a fraternidade como bem comum. A nossa esperança é a juventude, porque nós somos materialistas. Vamos pensar que nós vamos ficar eternos e nós somos os bons. Não. Bom é o que vem depois de nós para fazer crescer mais ainda o amor à sociedade, à fraternidade, à igualdade, como foi a palavra de ordem da Revolução Francesa, Egalité, fraternité et liberté. Allons enfants de la patrie! Obrigado a vocês.

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O Centro de Memória Sindical reproduzirá semanalmente, depoimentos de sindicalistas e militantes feitos na ocasião do 50º aniversário do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), em 2006.

Fonte: Todos os depoimentos foram gravados no ano de 2006 e estão hospedados no site http://memoria.dieese.org.br/museu

 

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