27 maio 2019 . 15:30
Por Carolina Maria Ruy e André Cintra
Com o detalhismo possível apenas para quem viveu a história, Vargas Netto desbrava, nesta entrevista, os meandros do ano de 1968 no Brasil e seus mais emblemáticos eventos: a comoção em torno da morte do estudante Edson Luís, as greves dos metalúrgicos de Contagem e de Osasco, o 1º de Maio da Praça da Sé, a Marcha dos 100 mil, as lutas universitárias, o Congresso de Ibiúna. Segundo ele naquele ano, até a decretação do A-I5, havia espaço para uma resistência democrática, mas entre atropelos, radicalizações e posições extremistas, o desfecho do ano, em 13 de dezembro, foi a vitória da repressão. A vitória da ditadura descarada.
Carol – A ideia da nossa entrevista aqui é falar sobre 1968.
André – O que você fazia no começo dos anos 60? O que você estava aprontando na época?
João – Em 1968 eu era dirigente da executiva do comitê estadual do PCB da Guanabara. Naquela época era Guanabara. A grande luta dos comunistas era contra a ditadura, obviamente, mas também pela sobrevivência do partido porque havia muita divergência e muita ruptura. Por exemplo, havia sido criado, na Guanabara, a FER, Frente (nossa) de Esquerda Revolucionária, que iria dar depois no MR-8. Então, além da luta de resistência à ditadura, os comunistas, também, lutavam para manter a sua integridade, para recompor as bases que haviam sido destruídas por divisão, abandono ou perseguição.
Em 1968 os grupos de repressão estavam sendo montados. Não estava, ainda, articulado todo aparato que veio a ser montado. Um exemplo: não existia, durante o ano, uma censura de imprensa feroz como a que veio acontecer depois.
Carol – Depois do AI-5?
João – Depois é que vai apertar. Movimentos se agrupavam: o movimento universitário, estudantil e o próprio movimento operário saíram da fase das intervenções, da repressão, e entraram em uma fase de eleições sindicais. Claro, dentro do contexto da ditadura, mas era um ano em que existia movimento democrático de resistência. Do nosso lado, de quem era contra a ditadura, foi também um ano da exacerbação da linha da luta armada. Em cada movimento, nitidamente, a gente via uma tendência do movimento se reagrupar e se desenvolver reivindicando, reagindo e, dentro desse movimento, os companheiros partidários da luta armada, com as suas várias correntes, tendências e opiniões estratégicas, trabalhando para que o movimento fosse uma antessala da luta armada.
Não podemos olhar 1968 partindo do AI-5
João – A gente não pode olhar 1968 porque aconteceu o AI-5. Foi um ano de grandes realizações, em termos, por exemplo, de articulação política, de reforço de mandatos e, ao mesmo tempo, de reação da ditadura, querendo reprimir etc.
Carol – Teve golpe em 1964, e em 1968 estava mais ou menos rearticulado?
João – O golpe de 64 foi rapidamente institucionalizado, tanto que, em 1965, houve eleições em São Paulo, na Guanabara, Minas Gerais, Rio Grande do Sul. Não tinha censura à imprensa. Circulavam os jornais. O Partido Comunista tinha um semanário legal, a Folha da Semana. Saía toda semana. Ele era redigido, composto, editado. Isto durante o governo Castelo Branco, depois de institucionalizada a revolução, como eles chamavam, ou seja, cassações, fechamento de sindicatos etc., houve um refrigério, entende? Em 1968, por exemplo, você fazia reuniões estudantis, de sindicatos. Não havia um clima de terror, de repressão. Do nosso lado, da resistência democrática, burguesa, havia esse problema dos companheiros que queriam resolver a crise na perspectiva da luta armada e recrutar militantes no movimento universitário. Existia essa contradição.
Comensais do Calabouço
João – Logo no início do ano a questão do custo de vida agravou a situação dos estudantes secundaristas. O Calabouço[1] era muito ruim, mas era comida.
André – A comida era péssima?
João – Mas comia-se.
Carol – Era o que tinha.
João – Comia-se. E era a tábua de salvação do jovem estudante pobre. O Calabouço se caracterizava por uma agitação permanente, e era muito engraçado o chavão: você estava comendo na mesa, de repente, o agitador pulava em cima e gritava o famoso “comensais do Calabouço”. Significava que ia começar o comício. Poderia ser discurso anti-imperialismo, contra a comida ruim, escola que cobra, tudo. Era diário. Aí a PM reprimiu, de uma maneira estúpida, e um debiloide de um subcomandante disparou um tiro mortal no peito de um menino. Bala de calibre alto. Portanto, cometeu um ato assassino. Quando mataram o Mineirinho, que foi um criminoso famoso, o corpo dele teve, se não me engano, treze balas. A Clarice Lispector, comentando isso na televisão, disse: “Uma bala matou o Mineirinho, as outras doze foram pela vontade de matar”. Então, desta mesma forma, esse tenentinho, comandantinho, devia estar com vontade de matar. Atirou no menino e o matou.
O Calabouço era onde é a parte nova do Aeroporto Santos Dumont. A União Metropolitana de Estudantes era desse lado e a minha faculdade, perto, era núcleo de agitação. O aterro tinha sido recém-inaugurado, era ainda vazio. As árvores não estavam crescidas, sabe? Pegaram, então, o cadáver do Edson e saíram em passeata. Ali começou a dramaticidade, quer dizer, um corpo morto de um jovem menino. Eu não me lembro agora a idade precisa, mas o slogan que emergiu espontaneamente foi “mataram uma criança/podia ser seu filho”. Aquilo criou uma comoção, ampliando para a classe média. Houve o enterro, muito acompanhado, e isso foi uma fagulha nos estudantes universitários. Encostou no excedente criando um amplo movimento de repúdio à ditadura nas universidades. Com isso o eixo se deslocou, na Guanabara, dos secundaristas para o movimento universitário. Com os movimentos se manifestando fortemente para as grandes escolas.
A partir de março, abril, maio, começou uma efervescência diária. Fazia-se uma manifestação na Candelária, a polícia reprimia. E isso era fotografado. No dia seguinte, tinha um ato de protesto contra aquela repressão que tinha acontecido.
Aí, basicamente, o partido, aliados do partido e acossados pela esquerda, veem nesse processo a possibilidade de resistir democraticamente. O círculo vicioso que estava em curso era o seguinte: repressão, manifestação, repressão, mais manifestação, mais repressão. Numa situação em que as nossas forças se mostravam exangues, porque você não pode ficar movimentando, fazendo passeata e tudo.
A executiva da Guanabara se reuniu para falar sobre essa situação, ou seja, esse círculo vicioso. Identificamos claramente essa linha que, no conflito, procurava se afirmar: “Está vendo? Eu estou certo. Precisa de luta armada, porque já está havendo”. Impressionante, porque em 1968 a Guanabara foi muito classista, mas não no sentido da classe operária.
A executiva, então, decide que nós tínhamos de intervir para buscar uma alternativa para essa situação e delega para mim e para o falecido Edgar a direção disso, ou seja, então a gente passou a ser a direção. Essas coisas de partido eram assim que funcionavam. Nós começamos, então, a articular com o movimento universitário por meio do Vladimir Palmeira, com o movimento cultural, por intermédio, por exemplo, do Ferreira Gullar, com o movimento de teatro, artistas, com o Movimento Favelado da Rocinha, que era um movimento de grande expressão política popular no Rio na época. Só para vocês terem uma ideia, a Federação das Favelas foi formalizada dia 13 de dezembro de 1968, no dia do AI-5. Então, aquele foi um ano de movimento popular que vinha se desenvolvendo: movimento universitário, movimento secundarista, intelectualidade, jornalistas, teatro…
Passeata dos 100 mil
Nós começamos a pensar na hipótese de uma grande manifestação que encerrasse aquele ciclo de várias manifestações. Tivemos uma ajuda impressionante: havia um conjunto de padres que, diferentemente daqui de São Paulo, não eram necessariamente ligados a movimentos de bairro. Eram padres progressistas e representativos da hierarquia. Esse conjunto se aproximou do cardeal Jânio de Barros Câmara, que era muito reacionário, mas que, à base dessa visão de pacificação, de arrumar uma solução, concordou em criar uma manifestação.
Começou então uma série de articulações. O Negrão de Lima era o governador e, por meio de uma relação que nós tínhamos com dois administradores regionais, o Negrão entrou na articulação.
Combinamos uma grande manifestação, que teria algumas características. Primeiro, seria uma manifestação pela democracia, contra a repressão. Não seria pela luta armada ou por projetos radicais. Era contra a ditadura, pela democracia e pelo direito de se manifestar. Ela seria, também, reivindicatória de mudanças nos termos universitários, de acesso à universidade, currículos, os temas universitários. E, organizacionalmente, ela seria feita, vou usar entre aspas, de maneira “corporativa”: estudantes chegavam juntos, teatro chegava junto, música popular chegava junto, moradores da Rocinha chegavam juntos.
Esse movimento produziu, então, um fato espetacular. O cardeal, de próprio punho, na capa do jornal O Globo, convocou para uma manifestação. Aquilo teve um impacto muito grande, porque foi estampado na capa de O Globo, que era o jornal mais pró-regime… Uma convocação do Dom Jaime de Barros Câmara, de próprio punho, com aquela letrinha de padre, que não é letrinha de médico, é uma letra que todo mundo lê. A manifestação, então, virou um sucesso. Tanto que virou a mitológica Marcha dos 100 Mil.
André – Não estava no escopo de vocês?
João – Como assim?
André – A ideia dos 100 Mil existia?
João – A ideia existia. A ideia era fazer uma coisa grande, tanto que foi muito planejado. Como ter esse tamanho sem transbordar? Então, ela se concentrou na Cinelândia dirigindo-se para a Getúlio Vargas.
Com um detalhe: a manifestação foi muito ordeira. Houve um acordo, por meio do Negrão, de não ter repressão nem provocação. Você pode ver que não houve nenhuma prisão. O único momento de tensão foi quando o Hélio, que hoje é ministro, chegou com seu grupinho de luta armada da PUC soltando fogos e dizendo “a luta armada derruba a ditadura”. Foi o único trique-trique que houve na 100 Mil.
Carol – Era o black bloc?
João – Era o black bloc. Foi o único momento de certa tensão. Foi logo abraçado, isolado.
Carol – O Moreira Franco?
João – É, esse governador. E ele era esquerdinha na época, sabe? Foi o único momento de tensão esquerdista. Você usou o termo, tipo o black bloc da época.
O Vladimir realiza um discurso de massa. Não tinha carro de som. Carro de som é uma invenção mais recente do Sindicato, da década de 1980. Os sindicatos não tinham condições de comprar carro de som porque seria usado para agitação e a ditadura não deixava.
Bem, a manifestação foi um sucesso. Agora, repare como essa dinâmica não foi suficiente para reverter a tendência: imediatamente após a manifestação foi tirada uma comissão para falar com o presidente, e essa comissão foi um desastre.
André – O presidente Costa e Silva?
João – Costa e Silva. A delegação não tinha o que falar porque não captou aquele recado dos 100 Mil. Ela refletiu muito mais a expressão dos grupos de esquerda e, aí, houve uma conversa de surdo. Eles falavam de punho fechado e o Costa e Silva não queria ouvir.
Carol – Mas o que vocês esperavam?
João – Esperávamos exatamente contrariar a tendência de um lado de enrijecimento e endurecimento do regime e, em termos do partido comunista, isolar a luta armada. Isolar, exatamente, a esquerdinha.
André – Fazer um pacto com o governo, um pacto mínimo de…
João – Não era com o governo. Na época não era muito clara a existência de duas linhas que se digladiavam o tempo todo durante a ditadura.
Claro que, visto hoje, tinha muito de ingenuidade, vamos dizer assim. Se você pensar em termos do arrocho salarial é uma dinâmica brutal. Por outro lado, do lado da ditadura, a corrente de repressores vinha tendo proeminência, fazendo suas provocações. E no campo da esquerda, aí sim, começou o florescimento das facções de luta armada que vão acontecer de 1967, 1968 até 1978.
Aí vira uma questão que precisa ainda ser analisada. Foi um erro. Um erro total. Muito mais baseado em questões até mesmo de caráter psicológico familiar, rupturas dentro das famílias, a filha que briga com o pai etc.
Carol – Essa comissão que foi falar com o presidente, o que eles informaram basicamente?
João – Nada, nada. Não firmou suas posições. Só criticou o regime… a comissão não expressou a dinâmica da Marcha dos 100 Mil. Expressou a dinâmica dos grupelhos. Para você ter uma ideia, o partido estava ausente dessa comissão.
Carol – O Costa e Silva os recebeu numa boa e tal?
João – Numa boa não. Recebeu. E tem mais, nós estamos em 1968. Procotolo é procotolo. E eles foram em mangas de camisa. Foi o primeiro problema.
Carol – Em vez de ir de terninho?
João – Foram informais. Se vocês olharem a foto dos 100 Mil, a grande massa ainda está de terno.
André – Você acha que foi uma afronta deliberada?
João – Foi. O PCB foi discriminado na comissão. Olha que coisa interessante.
André – Pelo que você contou aqui o PCB estava na linha de frente da organização da Marcha. E depois vocês foram golpeados. É isso?
João – Isso. Nós fomos golpeados. Há uma armação democrática, vamos chamar assim, de resistência.
O golpe foi prioritariamente contra o movimento sindical
Agora, vamos ver classe operária. A ditadura reprime em 1964 o movimento sindical. Ela respeita a estrutura, mas reprime. A CIA não tinha quadros de reposição. Quando vem o golpe tiveram que demolir a hegemonia petebista e comunista, mas não tinham quadros para repor. A primeira turma sindical que a CIA cria é exatamente em 1965, em outubro. A CIA tinha informantes, mas não tinha quadros. Ela vai tentar formar quadros a partir do golpe. E quem forneceu os quadros de reposição foi a Igreja Católica, por meio dos círculos operários.
A fúria da repressão se orienta simbolicamente em três sindicatos: Bancários e Metalúrgicos do Rio de Janeiro e Metalúrgicos de São Paulo. O Sindicato dos Metalúrgicos do Rio, que tinha sido palco da Revolta dos Marinheiros (em 1964), é literalmente depredado. O nosso Sindicato dos Metalúrgicos (de São Paulo), que ainda era na Rua do Carmo, fica cercado durante trinta dias. E os Bancários, pelo peso que tinham na disputa ideológica.
Em 1965, as intervenções são suspensas e há eleições sindicais. Olha que coisa interessante: eleições sindicais em uma ditadura militar. Óbvio, com características que são folclóricas. Você sabe que as chapas tinham cores, né? E obviamente ninguém escolhia vermelho. Amarelo ninguém queria porque é a cor da traição. Então, as chapas eram azul, verde e tinha uma outra cor que agora me escapou. Não podia ter nome de chapa. Era número e cor. Mas houve as eleições e as intervenções, exceto em casos pontuais, foram suspensas.
O Joaquim (dos Santos Andrade) foi interventor em Guarulhos, e o Clemiton interventor em São Paulo. E depois o Joaquim foi eleito presidente em São Paulo, com o Clemiton secretário.
André – Mas assim cai a intervenção, já havia ocorrido uma depuração…
João – Claro que passou a lixa grossa e muitos dirigentes fugiram. O que eu quero dizer é que a repressão foi brutal contras direções sindicais. Mas a estrutura sindical foi respeitada. Então, as eleições se dão obviamente com esse constrangimento.
No movimento sindical você tem, primeira coisa, uma retração do movimento. O movimento recua. Os trabalhadores recuam. Segunda questão, a primeira grande proposta do grupo Bulhões Delfim foi o fim da estabilidade, criando o Fundo de Garantia.
Então, você tem dois anos de forte recessão, a implantação do Fundo de Garantia com a quebra da estabilidade e o arrocho salarial, em particular o arrocho do mínimo. Se você fizer a curva do mínimo verá que ele começa em 1940, cai, cai, cai com o Dutra, sobe no segundo mandato do Getúlio, atinge o pico com o Juscelino e, depois, com o golpe, vai para o Vale da Morte.
Com Jango ele se mantém. Os pontos da curva são Dutra, Getúlio, Juscelino, que é o pico, e o Vale da Morte com a ditadura. O pior ano do salário mínimo, se não me engano, foi do (Emílio Garrastazu) Médici. E é o ano de PIB: 14% de crescimento do PIB.
Você tem um PIB que dispara, mas a concentração de renda é brutal. Então, a classe operária está paralisada, até mesmo porque o golpe foi prioritariamente contra o movimento sindical. O golpe não foi contra o movimento universitário…
Greves em Contagem e em Osasco
Mas é óbvio que a classe reagiu. A recessão vai gerar, junto com a política do governo, a diminuição de encomendas de materiais de aço para produção, lâminas de metal, trefilados etc. Por isso houve a reação, conjugada com outros fatores.
No caso de Contagem, o que impulsionou foi o custo e vida. Lá havia uma tradição, porque no governo do Juscelino houve o famigerado massacre de Ipatinga[2]. Foi um massacre brutal contra a constituição da classe operária, do que é hoje, o arco metalúrgico de Minas. E isso fica na memória, passa de um para outro etc. Você sabe que ali no Vale do Aço é tudo perto? Tudo se comunica. Tem o elemento custo e vida, ou seja, o empobrecimento, tem esse elemento de recessão das grandes empresas produtoras de chapa de aço, de fibra de aço etc., e tem o acerto de contas histórico.
No caso de Osasco foi ideologia. Em Osasco foram dois elementos. A questão do salário – foi mais relacionado à salário do que à custo e vida – e o grupo do Ibrahim, que fomentou a greve. Sabe, a greve de Contagem, se você for buscar alguma ideologia, ela é da Igreja. Lá é Igreja. Aqui em Osasco não. É do Grupo de Osasco. Esse grupo ideológico de Osasco. A greve foi em abril lá e em julho aqui.
A grande surpresa que o serviço de informação da ditadura teve foi Contagem. Essa realmente pegou de surpresa. Eles não tinham discernimento. Já em Osasco eles tinham toda a experiência acumulada da repressão.
Primeiro de Maio da Praça da Sé
Outro fato que tem de ser analisado é o famoso Primeiro de Maio da Praça da Sé. Ele tem de ser inserido no seguinte quadro: o movimento se reagrupando aos trancos e barrancos, setores de esquerda que querem fazer disso a antessala da luta armada e as vacilações do governo. O PCB negociou com o (governador) Abreu Sodré a possibilidade de uma comemoração legal do Primeiro de Maio. Olha que importante: em maio de 1968 ainda havia, no Brasil, legalidade que sustentasse uma manifestação pública de Primeiro de Maio. No entanto, enquanto o dirigente do partido aqui, o falecido Tenorinho[3], negociava com o Abreu Sodré um ato legal, as pessoas que tinham induzido o Tenorinho, e ele tendo a ilusão de que poderia dominá-los, estavam armando um ato que era a expressão da luta armada. Com essa situação, convida-se o governador para ir ao ato. Porém, os grupos de esquerda consideraram o ato como um treinamento.
Eles já tinham algumas armas e, então, ocuparam os prédios em volta da Praça Sé com a perspectiva de haver tiroteio, coisa que não houve porque foi um “assustado”, compreende?
André – Foi rápido.
João – Foi rápido. Teve pancadaria na frente, retiraram o Abreu Sodré e aí aquilo dissolveu. Não produziu nem correria no centro da cidade. Foi um foco.
Carol – Depois eles foram em passeata até a República?
João – Escassa. O “herói” fala que fez a passeata. Mas, é mentira.
Carol – O que eles esperavam? Era só treinamento mesmo?
João – Treinamento. Criar um clima. Repara: o partido quer democracia e resistir à ditadura, os grupos esquerdistas querem destruir o partido e impor a luta armada. E a ditadura é o adversário e, por sua vez, quer a luta armada.
André – Mas levar o governador no meio dessa heterogeneidade de concepções, num evento público desse… eu estou aqui pensando como a segurança do governador autorizou uma coisa dessas.
Carol – E já tinha a greve em Contagem, né?
João – É porque vocês não percebem que na época não era líquido e certo o Ato 5[4]. O Ato 5 acontece porque todas as alternativas e iniciativas para isolar essa tendência foram derrotadas.
Congresso da UNE em Ibiúna
Então deixa eu explicar mais coisas. Passado isso, mais ou menos em julho, nós começamos a negociar a realização do Congresso da UNE, que vai ser em Ibiúna. Na negociação daquele Congresso, o PCB tinha uma aliança com o Vladimir, que não era pública. E a esquerdinha queria dominar a UNE. A esquerdinha é, como eu digo, a esquerda. Três concepções, pela esquerda, se enfrentavam. Uma era o foco urbano. Franklin Martins, que dirigia na época o FER, que vai fazer o sequestro do embaixador, defendia a ocupação manu militari do prédio da avenida Rio Branco e garantir, com armas, a realização do Congresso da UNE. O povo aqui de São Paulo, o (Carlos) Marighella, queria um Congresso de Ibiúna que fosse uma semente do foco guerrilheiro, portanto, tinha que ser no interior. E o PCB defendia a tese de que o Congresso deveria ser nos limites da legalidade. Os limites da legalidade, quais eram? O Crusp[5] estava sendo construído, mas mesmo não estando terminado ele oferecia condições de albergar pessoas. Então lá existia infraestrutura. Nós negociamos com o Abreu Sodré e, olha só, depois do Primeiro de Maio, ele disse: “Se vocês fizerem um Encontro Universitário, eu garanto o Crusp. Pode ser no Crusp. Então, vocês façam o que vocês quiserem lá em termos do Encontro, mas respeitem a formalidade e chamem de Encontro Nacional Universitário. Não chamem de Congresso da UNE.
A cúpula não aceitou essa orientação. O Zé Dirceu achou que, acobertado pelo Marighella, seria o presidente da UNE. O Jean Marc (von der Weid) achou que, pela AP[6], também seria o presidente da UNE. O Vladimir Palmeira sabia que seria o presidente da UNE porque a gente já tinha contado os votos (aquela coisa, comuna sabe fazer isso, contar os votos antes), e aí criou-se uma coalisão que produziu o Congresso de Ibiúna como um foco da luta armada.
A concepção, o aprendizado e, aí, o ridículo. Agora, olha só como o quadro era. Os militares pressionam Abreu Sodré: “Você está deixando acontecer isso, isso é subversão, você deve ser comunista” etc. O Abreu disse: “Mas isso é um Congresso de estudante” etc. Sabe qual foi o acordo? Os militares não interferirem. A PM dissolve sem brutalidade. Você observou isso? Não houve brutalidade.
Que eu saiba não houve uma encostada de mão. Isto foi um acordo que o Abreu Sodré ainda tentou manter. Quer dizer, “vai ser dissolvido. Mas, não vai ser dissolvido na linha de agravar o quadro. Vai ser dissolvido à minha maneira”. Aí que eu respondo a você, a gente não pode ler o ano de 1968 a partir do 13 de dezembro[7]. A gente tem de ler a partir do que está acontecendo. Claro que 13 de dezembro foi a vitória da repressão. A vitória da ditadura descarada.
Carol – E você acha que foi um erro a UNE ter feito aquele Congresso em Ibiúna?
João – Ah, fazer em Ibiúna foi errado, lógico. Nós tínhamos uma posição que faríamos tudo que o Congresso queria fazer, que era eleger uma direção central da UNE no Crusp. E qual era o preço que você pagaria para isto acontecer? Não usar a coisa provocativa. Mas vigorou a concepção simétrica: “Vamos fazer enfrentando a Ordem. É para valer! Vamos tirar uma diretoria, desafiar…”. Na verdade, se você observar, os participantes de Ibiúna soltos foram o grande viveiro de recrutamento da luta armada. Surgiu ali um conjunto, estigmatizado pela própria prisão em massa do Congresso de Ibiúna suscetível à aventura da luta armada. Desse ponto de vista conjunturalmente o Mariguela ganhou.
Ato Institucional nº 5
André – Deixa eu te fazer uma pergunta. Em Contagem, na primeira greve, o Jarbas Passarinho chegou a ir ao Sindicato, o que é uma coisa inacreditável, e o Costa e Silva fez um pronunciamento para anunciar que teve um reajuste. Os setores das Forças Armadas mais propensos a instigar a radicalização quando veem isso, se sentem meio que traídos pelo Costa e Silva também?
João – O Costa e Silva, nessa luta aí, era “Tigrão”, mas ao mesmo tempo não era como o Médici, por exemplo, o que você segurava não era exatamente o vetor que vai predominar com o Ato 5.
O que acontece é que todo o exemplo que você citou demonstra a tese que existia um espaço institucional de resistência democrática. É isso que eu estou dizendo. Ora, eu dei um exemplo depois da Marcha dos100 Mil, o Costa e Silva recebe uma delegação. É claro que foi conversa de surdo, mas o fato de receber é algo que daí para a frente não terá mais.
André – Qual, em sua opinião, foi a gota d’água? O sequestro do embaixador?
João – Não. A gota d’água foi institucional. Era o Marcio Moreira Alves.
Carol – Aquele discurso que ele fez… Mmas, havia todo um processo que já vinha se acumulando e tal…
João – Tudo, tudo. Mas aí o Marcio faz um discurso dizendo que as moças não podiam dançar com os milicos. Olha como era o clima. A Câmara não votou a cassação. Presta atenção nesse pormenor: o governo pede a cassação do Marcio, a Câmara derrota o governo. O Ato 5 vem para enquadrar uma Câmara que não quis enquadrar o Marcio. Percebe a contradição do ano? A gente lendo a partir de 13 de dezembro você tem uma leitura. Agora, se você ler no decorrer dos fatos, havia espaço de resistência.
Claro que, à medida que o Ato 5 se corporifica, ele dá a vitória a todos esses setores que defendem a agravamento do poder militar, maior repressão, desmantelamento do movimento sindical, a política da ditadura. O Ato 5 é a ditadura de 64 destilada. Pegaram melaço. Vinha aquele melaço confuso e destilaram…
Carol – Aí depois do AI-5 vieram vários atos bem repressivos.
João – Depois do Ato 5, o que vem basicamente é chanfalho. O que também se coaduna como recuo das forças democráticas, obviamente, e o isolamento dos grupos de luta armada.
André – Acho que o que veio depois do AI-5, e que não está no A-I5, basicamente, foi a censura à imprensa e a Oban, né?
João – E a tortura. Neste contexto, por exemplo, em 1970, na Copa do Mundo, muita gente nossa não queria torcer pelo Brasil. Até começar o jogo. Aí, depois todo mundo entrou no jogo. Mas, em 1970, a tortura estava no auge.
Então, a tese que eu defendo, que quero defender com vocês, é que é errado analisar 1968 e seus acontecimentos, Contagem, Osasco, Marcha dos 100 mil, lutas universitárias, Congresso de Ibiúna, como se 13 de dezembro tivesse acontecido. Não. Pelo contrário. Esses fatos foram fatos em que houve uma disputa entre o setor radical da ditadura e, infelizmente, um setor radicalizado da classe média urbana com luta armada etc. E há muita demonstração de que sim, poderia ter sido diferente se tivesse havido…
Carol – Uma solução mais democrática.
João – Democrática, mais bom senso, mais humildade, mais articulação. Mas, mundo afora havia “maio de 68”, Ofensiva do Tet no Vietnã[8], Che Guevara morto, tudo isto vai formando um caldeirão. Então realmente aí predominou, infelizmente, a ditadura militar mais radical e, durante um período, a ilusão dos grupos de luta armada.
André – Qual é a perda que o AI-5 impõe aos movimentos, olhando em longo prazo?
João – O Ato 5, agredindo a capacidade de aglutinação, vai segurar principalmente, combinnado isso com o desvario da luta armada, uma possibilidade de retomada durante dez anos. O Ato 5 segura por dez anos a situação.
Aí você tem um fenômeno importante um supercrescimento. Índices de 14% ao ano, 11%… você tem a inflação relativamente controlada, porém, você tem um arrocho salarial espetacular. Então, o Ato 5 se caracteriza por produzir passividade, recuo, dispersão. Mas ele se escora para um setor da classe média, na ideia do Brasil grande, do crescimento, o empresariado adere furiosamente, e acontece um arrocho muito grande, que só vai começar a ser revertido em 1978.
Parava o ônibus na praça e diziam: “Quem quer ir pra Volkswagen?”
O 13 de dezembro de 1968 foi uma derrota porque durante o ano não se conseguiu botar de pé essa frente democrática. Não tinha população entre os movimentos de articulação política, a classe operária desbaratada. Desbaratada porque é o período… deixa eu dizer pra vocês: na Volkswagen não tinha água potável, só tinha água industrial. Como é que se recrutava em 68 trabalhadores para a Volkswagen? A empresa recrutadora pegava um ônibus e ía em Catulé do Rocha, parava o ônibus na praça e dizia o seguinte: “Quem quer ir para a Volkswagen? O salário é xis”. Merreca. Mas, em Catulé do Rocha era uma fortuna. Lotava o ônibus. Chegavam e os trabalhadores iam direto para a linha de produção. Tanto que a grande dificuldade que a Volks tinha era ensinar aos trabalhadores que o mictório não era bebedouro. Repara no que estou contando pra vocês. Uma efervescência e ascensão social da classe operária em condições de arrocho.
André – Há um arrocho, mas tem um contraponto que é o emprego.
João – É o que eu estou dizendo. A Volks recrutava na “bacia das almas”, não tinha seleção, não. Emprego. Arrocho mas emprego. E nessa perspectiva, então, na Volks, como não tinha água potável, os trabalhadores bebiam água do mictório. O camponês saía direto do Catulé do Rocha para a linha de montagem. Era esse o quadro de 1968.
Os militares não destruíram a estrutura sindical e o golpe atual quer desestruturar
Carol – Se a ditadura queria acabar principalmente com o movimento sindical, por que eles mantiveram a contribuição então?
João – Porque a estrutura sindical é estruturante. E o golpe atual quer desestruturar. Os militares não destruíram a estrutura sindical porque eles queriam modificar os agentes, mas queriam agente com estrutura. A lição que eu tiro: a lei celerada tem de cair porque é um fator de desestruturação, de instabilidade. Agora, existiam setores militares que queriam realmente avançar. Houve várias tentativas e, aí, você tem de levar em conta o peso, por exemplo, da burocracia da Justiça do Trabalho, tem de levar em conta o peso da burocracia próxima dos sindicatos da cúpula das confederações. Tudo isto são forças que ajudam a não deixar a desestruturação. O que houve hoje, Carol, é ponto fora da curva nas relações de capital e trabalho no Brasil. Essa lei celerada é ponto fora da curva. É um exagero!
O que acontece é o seguinte, mesmo em defesa do mundo empresarial você não pode desprezar a necessidade estruturante, porque a regra da sociedade é fundamental: pau que dá em Chico dá em Francisco. O único senador que compreendeu isso na discussão do Senado, quando o Senado aceitou essa baboseira, o único que votou contra e expôs a posição foi o (Fernando) Collor. O Collor disse: eu vou votar contra essa lei porque ela viola a harmonia social. Ela é um fator de insegurança social. Essa lei vai criar tumulto. Então, se você pensa estrategicamente, no curto prazo, em uma empresa, na microeconomia, tudo bem, mas do ponto de vista estratégico. E depois, amanhã, como fica? Como é que a empresa se reorganiza? Com três salários numa mesma linha de produção? Com dois tipos de pessoas trabalhando, uma com contrato e outra sem? E que padrão isto vai criar de desorganização produtiva? Estamos vendo isto. A lei não criou emprego. Como é que você vai praticar aquela teoria que é o hoje o apanágio da teoria das gestões empresariais do colaborador?
Então, a ditadura militar teve muitos crimes, muitos erros, mas ela tinha concepção nacional estruturante. Vamos olhar o setor estatal que eles desenvolveram. A estratégia da ditadura militar era uma estratégia estruturante. Há uma diferença com o golpe atual, que é desestruturante. Hoje, o governo está pouco ligando em conservar a Amazônia, em construir um País viável, integrado, em formar universitários qualificados, em emprego inovador. É desmanche!
[1] Calabouço era um restaurante popular frequentado por estudantes.
[2] No dia 7 de outubro de 1963 os funcionários da Usiminas, em Ipatinga, Minas Gerais, protestavam denunciando as más condições de trabalho e a humilhação que sofriam ao serem revistados antes de entrar e sair da jornada de trabalho. De cima de um caminhão, dezenove policiais militares atiraram nos trabalhadores. Oficialmente, oito pessoas morreram (inclusive uma criança no colo de sua mãe) e 79 ficaram feridas.
[3] Luiz Tenório de Lima foi diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Laticínios de São Paulo e fundador do Dieese em 1955.
[4] Ato Institucional nº 5, ou AI-5
[5] Conjunto Residencial da USP
[6] Ação Popular
[7] 13 de dezembro de 1968 é a data em que foi decretado o Ato Institucional nº 5
[8] Ofensiva do Tet foi um ataque surpreendente em três fases lançado pelos vietcongues contra as forças americanas e seus aliados do Vietnã do Sul em 30 de janeiro de 1968, durante a Guerra do Vietnã. A onda de ataques não teve grande impacto militar, mas foi fatal para o governo americano. A partir disso o apoio à Guerra do Vietnã começou a cair e Washington cogitou negociar uma retirada do país (Fonte: Estadão).
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