Leite Derramado, Chico Buarque de Holanda

13 jun 2012 . 17:39

leite-1

Leite Derramado

Chico Buarque de Holanda

Com quantas Capitus se faz uma literatura?

Ou melhor, quantos Bentinhos e Capitus cabem em uma literatura? Pelo recém lançado romance de Chico Buarque, Leite Derramado, sempre cabe mais um, apresentado de forma nova, enriquecida por multiplas determinações, para usar a famosa expressão cunhada por Karl Marx.

Eulálio e sua sonhada Matilde, o casal desencontrado, protagonista das memórias de um centenário, recoloca, em outra circunstância, antagonismo semelhante ao que atormentou a consciência do primeiro Betinho, o de Dom Casmurro (Machado de Assis, de 1899). Um registro mais recente do mesmo drama é o caso de Nina e Valdo, de Crônica da casa assassinada (Lúcio Cardoso, de 1959). São tramas em que uma leitura superficial, e corriqueira, ressalta a traição feminina como tema, sem perceber o que há de mais profundo nelas: o pavor masculino da traição da mulher. O problema, nesta variante de leitura, é masculino e não feminino.

Mas isto é apenas o enredo para expor uma problemática mais complexa: o auge e a decadência de uma mesma oligarquia. Em Machado, ele é exposto com maestria em Dom Casmurro, e faz parte da aguda análise daquela elite que compõe seus romances da maturidade. Em Lúcio Cardoso, o cenário da lancinante decadência é um pequeno município da Serra da Mantiqueira, onde os Menezes tentam manter a mesma ultrapassada hierarquia social herdada dos séculos anteriores e que agora está completamente fora da realidade.

As memórias de Eulálio d´Assumpção – com o d´ e o p nobilitantes no sobrenome – não tem esse sofrimento. É como se fosse o ponto de chegada da trajetória, ladeira abaixo, daquela mesma elite. Seu avô, um figurão do Império, dono de fazendas de cacau na Bahia e de café em São Paulo, estariam à vontade nos romances de Machado de Assis. Eulálio, já sem fortuna, relata – na verdade, delira – suas memórias no leito de um hospital público, às vésperas de completar cem anos. Desfila preconceitos de classe da mesma forma que essas famílias decadentes que fazem o teatro das grandezas sociais das gerações passadas, e agora perdidas.

Não há registro de dor nas memórias de Eulálio, mas de alienação em relação à própria decadência. Alienação nítida na incapacidade de ver sua situação atual com realismo, refugiando-se num passado mítico. A memória congela o tempo, e Eulálio vê seu neto?, bisneto? tataraneto?, sem saber em que lugar genealógico colocar aquele rapaz que traz, no sobrenome, o sinal da mudança e da aristocracia perdida: Eulálio d´Assumpção Palumba, onde Palumba indica a mistura daquela elite com os plebeíssimos imigrantes que vieram para o Brasil.

O texto de Chico Buarque chega a ser cruel em relação à autoimagem da oligarquia. Um exemplo é a apresentação cheia de ironia da pretensa ausência de preconceito racial. Sua existência é transparente na referência aos pares Eulálios / Balbinos que se sucedem em três gerações da família d´Assumpção, onde evidentemente os balbinos (escravo, o primeiro; ex-escravos seus descendentes) ocupam as posições subalternas. Esse preconceito mal disfarçado – cuja negação é um mecanismo para sua reafirmação e permanência – perpassa a relação entre Matilde, “a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai”, e a sogra, as freiras do colégio aristocrático onde teria estudado, ou os amigos franceses de Eulálio. Verbalizando, sem julgamento moral, a fantasiosa autoimagem daqueles que se colocam acima dos demais, a descrição que faz deles é ao mesmo tempo a negação explícita e crua de palavras que não correspondem aos fatos reais, mas são usadas para amenizá-los ou ocultá-los.

O realismo é visível também no cuidado com que transforma em arte a errática memória de um idoso, que é fragmentária, com repetições sucessivas a partir das quais, como num quebra cabeças, os cacos das lembranças permitem a construção de um conjunto coerente. Aqui se revela o domínio da escrita que transforma o processo mental do idoso, observado cuidadosamente pelo autor, em matéria prima para a literatura. “A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas”, diz Chico Buarque pela fala de Eulálio.

No futuro, talvez Chico Buarque de Holanda venha a ser reconhecido mais como escritor do que como o fantástico músico que é. Os poemas de suas canções já bastariam para colocá-lo entre os mestres da língua portuguesa. Com Leite Derramado, ele ombreia com os grandes prosadores do idioma, não só no bordado cuidadoso das palavras e das frases, mas sobretudo na arquitetura da obra.

José Carlos Ruy, jornalista

Chico Buarque
Leite Derramado
São Paulo, Cia das Letras, 2009

Comentários



ÚLTIMAS DE

Dicas de Leitura

Fotos históricas

Documentos Históricos

  As fotos estão em ordem cronológica Remo Forli e Conrado Del Papa, no lançamento da pedra fundamental da sub-sede de Osasco do Sindicato dos Metalúrgicos...

VER MATÉRIA

Visão geral do acervo

Arquivo

Centro de Memória Sindical – Arranjo do Acervo

VER MATÉRIA

Arquivo – Sindicatos

Arquivo

Catálogo de coleções de sindicatos, acondicionadas em caixas contendo documentos em papel de variadas tipologias. Documentos de datas esparsas entre as décadas de 1930 e...

VER MATÉRIA

Jornais

Arquivoc

Catálogo de coleções de jornais. Jornais de datas esparsas entre as décadas de 1920 e 2010. Acondicionamento em pastas.

VER MATÉRIA

Música e Trabalho

PLAYLIST SPOTIFY MEMÓRIA SINDICAL

Show Buttons
Hide Buttons